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New Trends in Qualitative Research

versão On-line ISSN 2184-7770

NTQR vol.13  Oliveira de Azeméis set. 2022  Epub 08-Set-2022

https://doi.org/10.36367/ntqr.13.2022.e692 

Artigo original

Conviver com HIV: Os sentimentos dos homens

Living with HIV: Men's feelings

Mirian Dias dos Santos1 
http://orcid.org/0000-0003-3324-5154

Cássia Regina Fernandes Biffe Peres1 
http://orcid.org/0000-0002-8430-0400

Sílvia Franco da Rocha Tonhom1 
http://orcid.org/0000-0001-7522-2861

Magali Aparecida Alves de Moraes1 
http://orcid.org/0000-0001-5888-1638

Luciana Cristina Parenti2 
http://orcid.org/0000-0003-4186-7914

1Faculdade de Medicina de Marília, Brasil

2Faculdade de Medicina de Botucatu, Brasil


Resumo:

Introdução: Apesar dos avanços nos serviços de saúde em disponibilizar tecnologias de prevenção, a incidência de HIV na população brasileira continua a aumentar principalmente no sexo masculino. Diante dessa constatação, observa-se a dificuldade que essas pessoas enfrentam no seu dia- a- dia em relação ao tratamento e às redes de apoio. Assim, essa pesquisa partiu da seguinte indagação: “Quais as vivências e os significados de ser diagnosticado e conviver com o HIV e as implicações na vida cotidiana?” Objetivos: Compreender os sentimentoso dos homens que convivem com HIV. Método: Pesquisa qualitativa, realizada por meio de entrevistas semi-estruturada com 35 homens que fazem acompanhamento em um Serviço de Assistência Especializada em HIV/Aids no interior do do estado de São Paulo, Brasil. Os conteúdos das entrevistas foram submetidos a análise de conteúdo, na modalidade temática. Resultados: A análise possbilitou emergir três temas relacionados aos sentimentos, quais sejam, o medo, a culpa e a solidão. Conclusão: A condição sorológica trouxe a necessidade em lidar com diferentes situações, sendo que a reorganização dessa fase direciona para a mudança no sentido da vida. Identificou-se como um saber aprendido que o HIV não tem cara, assim, os relaxamentos de medidas de proteção são práticos que não devem ocorrer, embora sejam negligenciadas. A educação em saúde foi considerada como potente estratégia para ampliar os conhecimentos para prevenção de doenças e promoção da saúde, especialmente no que se refere à transmissão do HIV e outras Infecções Sexualmente Transmissíveis. Nesse sentido, destacou-se a importância do vínculo e acolhimento dos profissionais de saúde.

Palavras-chave: Homens; HIV; Acontecimentos que mudam a vida.

Abstract:

Introduction: Despite advances in health services in providing prevention technologies, the incidence of HIV in the Brazilian population continues to increase, especially in males. In view of this finding, it is possible to observe the difficulty that these people face in their daily lives in relation to treatment and support networks. Thus, this research started from the following question: “What are the experiences and meanings of being diagnosed and living with HIV and the implications for everyday life?” Objectives: To understand the feelings of men living with HIV. Method: Qualitative research, carried out through semi-structured interviews with 35 men who are monitored at a Specialized Assistance Service for HIV/AIDS in the interior of the state of São Paulo, Brazil. The contents of the interviews were submitted to content analysis, in the thematic mode. Results: The analysis made it possible to emerge three themes related to feelings, namely, fear, guilt and loneliness. Conclusion: The serological condition brought the need to deal with different situations, and the reorganization of this phase leads to a change in the meaning of life. It was identified as a learned knowledge that HIV has no face, thus, the relaxation of protection measures are practices that should not occur, although they are neglected. Health education was considered a powerful strategy to expand knowledge for disease prevention and health promotion, especially with regard to the transmission of HIV and other Sexually Transmitted Infections. In this sense, the importance of bonding and welcoming health professionals was highlighted.

Keywords: Men; HIV; Life Change Events.

1.Introdução

Os primeiros relatos do vírus da imunodeficiência humana (HIV) ocorreram no início de 1981 nos Estados Unidos, sendo os primeiros casos identificados em homossexuais masculinos, pessoas portadoras de hemofilia e que receberam transfusão de sangue, usuários de drogas, crianças nascidas de mães infectadas e parceiros sexuais de indivíduos infectados (Sabino, Barreto & Sanabani, 2015). As formas de transmissão da doença foram identificadas e relacionadas a comportamentos e práticas sexuais de grupos específicos, aos quais foram denominados como “grupo de risco”. A utilização desse conceito contribuiu para o aumento da discriminação e preconceito contra homossexuais, profissionais do sexo e usuários de drogas (Ribeiro & Veras, 2015). A partir dos anos 90 passou-se a utilizar os termos comportamento de risco e vulnerabilidade. Segundo o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids ([Unaids],2017, p.26), vulnerabilidade “se refere as oportunidades desiguais, exclusão social e outros fatores sociais, culturais, políticos e econômicos que tornam uma pessoa mais suscetível à infecção pelo HIV e ao desenvolvimento da Aids” Estima-se que em 2020 cerca de 37,6 milhões de pessoas em todo mundo viviam com HIV. No mesmo ano cerca de 1,5 milhões de pessoas foram infectadas. Desde o início da pandemia morreram aproximadamente 34,7 milhões de pessoas por doenças relacionadas à Aids. Em 2020 foram 690 mil mortes decorrentes de doenças relacionadas a Aids (Unaids, 2021a). No período de 2007 a junho de 2020 foram notificados no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) um total de 342.375 infecções pelo HIV, sendo 69,4% casos em homens e 30,6% casos em mulheres. A razão de sexos para o ano de 2019 é de 26 homens para cada dez mulheres (Brasil, 2020). Os homens possuem comportamentos que aumentam a vulnerabilidade em adquirir uma infecção sexualmente transmissível, inclusive o vírus do HIV. Dentre os comportamentos destacam-se: início precoce das relações sexuais, múltiplas parcerias, o imaginário de que não se contaminará, a dificuldade de acesso aos serviços de saúde e a não utilização das barreiras de proteção (Teixeira, 2016). O diagnóstico de HIV/AIDS está relacionado a inúmeras mudanças, não limitando-se apenas ao processo saúde-doença, mas também implicando questões sobre a vivência da sexualidade, aspectos familiares e éticos, estilo de vida, entre outros (Souza, 2008). Diante desse contexto, formulou - se a pergunta norteadora da pesquisa: quais sentimentos são expressos por homens relacionados à vivencia com HIV? Assim, o objetivo desse estudo foi compreender os sentimentos dos homens que vivem com o HIV.

2.Método

Estudo descritivo, com base na pesquisa qualitativa (Minayo, Deslandes & Gomes, 2016), realizado em um Serviço de Assistência Especializada em HIV/Aids do estado de SP, Brasil, o qual é referência para 15 municípios da região e onde são realizados atendimentos para pessoas que vivem com o HIV desde o diagnóstico até o tratamento. Os participantes do estudo foram 35 homens que vivem com HIV em acompanhamento no referido serviço. Os critérios de inclusão foram idade superior ou igual a 18 anos e tempo diferente de diagnóstico, sendo esse último de no mínimo seis meses; concordar em ser participante da pesquisa mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A escolha dos participantes foi intencional, buscou-se diversificar com diferentes idades e variação no tempo de tratamento. A coleta de dados foi realizada por meio de entrevista semi- estruturada, agendada previamente no Serviço de Atendimento Especializado no melhor dia e horário para os participantes, com duração média de 40 minutos. As entrevistas foram realizadas pela primeira pesquisadora e os depoimentos gravados e transcritos na íntegra para posterior análise. Para garantia do anonimato, as falas foram identificadas por códigos, os quais são letra E para a entrevista seguida da numeração para o entrevistado. Inicialmente foram coletados os dados de caracterização dos participantes referentes a idade atual; idade que recebeu o diagnóstico; sexo; gênero; estado civil; escolaridade; ocupação; possuir filhos e tempo de tratamento. Em seguida foi aplicada a entrevista semi-estruturada norteada por um roteiro com questões referentes aos sentimentos relacionados à vivencia pessoal com HIV. A totalidade dos participantes foi determinada por saturação teórica dos dados, ou seja, o momento que não apareceram mais elementos que novos que permitiam compreender a complexidade do objeto de pesquisa (Turato, 2003). Nesse estudo a saturação foi atingida na 35ª entrevista. A análise dos dados obtidos foi realizada por meio da Técnica de Análise de Conteúdo, modalidade temática, seguidas três fases: pré-análise; exploração do material e tratamento dos resultados (Bardin, 2016). Na fase de pré-análise, buscou-se a organização do material e reconhecimento das ideias iniciais do texto, tendo sido realizada leitura de cada entrevista, com o objetivo de reconhecer o texto e nos aproximarmos das impressões e orientação para iniciar a análise dos dados propriamente dita. Na fase de exploração do material, o texto foi submetido a um estudo aprofundado, orientado pelos objetivos e referenciais teóricos, desmembrando-se as unidades de registro, possibilitando atingir uma representação do conteúdo para categorização. A codificação foi feita por frases, em cada uma das entrevistas. Cada frase representou uma unidade de registro, ou seja, uma unidade de sentido a exprimir um pensamento. Assim surgiram indicadores que possibilitaram uma classificação por temas. Os temas emergentes foram: “os sentimentos de se conviver com o HIV”; “saberes aprendidos em se conviver com o HIV”; “cuidado contínuo e ampliado: potências e desafios”. Este artigo se propõe a apresentação da primeira temática.(Quadro1)

Quadro 1 Tema e Núcleos de Sentido, derivados da análise de dados das entrevistas, 2021 

Fonte: Elaborado pela autora

No momento do tratamento dos resultados foi estabelecida a articulação entre os dados obtidos e os referenciais teóricos, respondendo às questões e objetivos da pesquisa, procurando relações entre o concreto e abstrato, o geral e o particular e entre a teoria e a prática. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos da Faculdade de Medicina de Marília -SP, sendo aprovada pelo parecer nº 4.025.007.

3.Resultados e Discussão

3.1 Caracterização dos participantes

A população do estudo foi composta por 35 homens, sendo a maioria com idade entre 18 e 47 anos. No que se refere a orientação sexual, vinte (57%) se declararam homossexuais, onze (31,5%) como heterossexual e quatro (11,5%) bissexual. Com relação ao estado civil vinte e cinco (71,4%) eram solteiros,sete (20%) eram casados e três 8,6% eram divorciados. Quanto ao grau de escolaridade, seis (17,2%) não haviam completado o ensino fundamental, um (2,8%) com ensino fundamental completo, vinte (80%) possuíam o segundo grau completo ou curso superior, completo ou incompleto. No que se refere às informações sobre religião, dezoito (51,5%) eram católicos, nove (25,7%) eram evangélicos, dois (5,7%) eram espíritas, quatro (11,4%) declararam não ter religião e dois (5,7%) referiram ser pagão e politeísta. Em relação ao tempo de tratamento teve uma variação de seis meses a 20 anos, sendo que a maioria trinta (88,6%) dos entrevistados, estavam em tratamento no período de 06 meses a 10 anos.

3.2 Sentimentos de conviver com o HIV

A partir da análise das entrevistas foi possível compreender os sentimentos de se conviver com o HIV, evidenciando-se o medo, a culpa e a solidão. Além das questões biológicas, o sentimento do medo, em seus diferentes aspectos, é presente no convívio com o HIV. Existem três situações que podem desencadear o medo: a vulnerabilidade de não saber o que vai acontecer, a condição de não ser possível evitá-lo e a ameaça a autoestima e a autoconfiança (Damião & Fontes,2021). Situação essa evidenciada nessa pesquisa.

“Conviver com o HIV é um coisa ruim...tipo eu nem sei o que falar direito...eu ter uma relação com alguém e mesmo com camisinha, tipo me dá muito medo ...vai que você vai beijar a pessoa e ela morde sua boca, machuca e aí sai sangue”. (E7)

“[...] todos os dias, todas as manhãs, todas as noites, eu sei que eu tenho e eu tenho medo de ter um relacionamento, eu não me conformei ainda, é muito difícil você saber que está com HIV.Tudo, tudo na sua vida muda porque eu tenho um segredo que tenho que guardar para mim e as vezes quero tentar compartilhar, mas eu não posso, porque eu tenho medo. Eu não sei depois que a pessoa pode fazer, falar ou comentar sobre”. (E27)

Dentre os medos expressos pela pessoa que vive com HIV, um deles está relacionado à vivência da sexualidade, o que leva o indivíduo a ter medo de se relacionar após o diagnóstico, por receio de infectar a parceria sexual, expor o seu segredo (Sá & Santos,2018). Devido ao estigma, ao preconceito, à discriminação e por medo de transmitir a infecção à parceria, os participantes apontam a diminuição da libido e da frequência das relações sexuais ou até mesmo a decisão de se abster.

“O que mudou pra mim, é que depois que comecei a fazer tratamento nunca mais tive parceria sexual e não sei explicar o “por que”, mas não pretendo, não estou com ninguém e nem tenho intenção de estar”. (E4)

“Sexualmente sinto atração sinto, vejo uma mulher, vejo um homem ...nossa olha que bonito, olha. Mais assim se a pessoa chegar assim e então vamos fazer alguma coisa aí dá medo. O medo de assim passar para ela, sei que estou zerado (carga viral indetectável), último exame carga zero, que não é transmissível. Mas mesmo assim dá aquele medo. Dificilmente eu tenho ereção e como eu me afastei sexualmente eu acho que não preciso de ajuda. Teve um bloqueio. Admiro a beleza, mas não sinto prazer”. (E8)

Os depoimentos corroboram com as ideias citadas por outros autores (Sá & Santos 2018; Galano et al. ,2016), que a pessoa que vive com HIV experencia inúmeros conflitos no exercício de sua sexualidade, tais como se deve ou não divulgar a condição sorológica e a preocupação em transmitir o vírus a parceria. A necessidade de introdução de terapia medicamentosa de uso contínuo é também um fator desencadeante de medo nos entrevistados. Para algumas pessoas que convivem com o HIV, o início da medicação pode ser um momento difícil com a incorporação de um novo hábito em sua rotina.

“A rotina de vida muda após você descobrir a doença, tenho que tomar remédios todos os dias”. (E5)

“Quando eu comecei a tomar o medicamento, a hora que a gente começa a tomar o medicamento, é um medicamento muito forte. Nossa eu tomava e via estrelas, deitava na cama assim que parecia que eu estava caindo, parecia que estava viajando”. (E8)

No contexto do uso da medicação diária, há o relato do medo de não ter acesso gratuitamente aos mesmos, bem como o medo de realizar trocas e não obter o efeito desejado, prejudicando os resultados terapêuticos.

“Tenho medo de um dia ficar sem o tratamento ou mesmo não fazer mais efeito”. (E5)

“O medo às vezes, eu fico pensando... meu Deus não pode faltar medicação, eu não posso ficar sem essa medicação nunca na minha vida”. (E18)

“Com relação ao tratamento eu ainda tenho alguns medo e receio. Medo de um dia o Ministério da Saúde não comprar mais e eu ficar sem medicação, eu não vou ter dinheiro para comprar”. (E22)

No Brasil desde 1996 o acesso ao tratamento é garantido, a terapia antirretroviral (TARV) é dispensada gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde. E a partir de 2013 todas as pessoas que vivem com HIV independente dos exames de CD4 e carga viral tem acesso ao medicamento. Com a chegada da TARV o HIV passou a ser considerado uma doença crônica controlável, a adesão satisfatória leva a carga viral a níveis indetectáveis reduzindo o risco de transmitir o vírus e a restauração do sistema imunológico (Paschoal et al.,2014;Souza et al.2019). O preconceito e a discriminação podem ser evidenciados nos mais diversos setores da sociedade. No caso do HIV, o medo do preconceito e da discriminação é evidenciado cotidianamente, conforme destacado pelos participantes:

“Eu não gosto de falar que tenho o HIV, eu acho que as pessoas quando sabem olham a gente de um jeito diferente, esquisito então eu não falo”. (E3)

“Não é fácil por questões sociais, é um assunto muito delicado, carregado de preconceitos e falsas suposições”. (E5)

“Ainda existe muito tabu em torno da doença e as pessoas criam muitos rótulos relacionados à promiscuidade, homossexuais entre outros. E eu tinha muito medo do julgamento e ainda tenho”. (E6)

A discriminação acontece quando a pessoa tem atos que promove a exclusão, separação ou inferioridade do indivíduo por meio de ideias preconceituosas (Unaids, 2017). Em 1989 ocorreu em Porto Alegre/RS o 1º Encontro Nacional de ONG AIDS (ENONG) e foi criada a Declaração dos Direitos Fundamentais da Pessoa Portadora do Vírus da Aids. Essa declaração utilizava o termo “pessoa portadora do vírus da Aids” para se referir às “pessoas que vivem com HIV. Afim de acabar com o estigma e a discriminação a Unaids não recomenda mais a utilização desse termo. A Declaração aborda os direitos à saúde, acesso à informação, sigilo sobre a patologia, proteção contra qualquer tipo de discriminação (Unaids, 2021b). Além da Declaração existem leis especificas para proteger os direitos de quem convive com HIV e proibir a discriminação, tais como: a discriminação no ambiente de trabalho ou escolar em qualquer grau, no setor público ou privado; não disponibilizar emprego, divulgar a condição sorológica afim de ofender a dignidade da pessoa e recusar atendimentos de saúde. Há previsão de pena de reclusão de um a quatro anos e multa em casos de discriminação (Lei nº 12.984 ,2014; Lei nº 11.199 ,2002). No entanto, são evidenciadas pelos participantes diferentes situações que refletem o medo ou o preconceito de fato. Ressaltam vivências no contexto familiar, nas relações sociais, no ambiente de trabalho, na busca por atendimento nos serviços de saúde e nas organizações religiosas, conforme demonstrado nos depoimentos:

“Viver com HIV é um estado de alerta constante, você tenta se proteger o tempo todo. Os remédios eu troco de frasco para a família não ver e quando eles perguntam, mas a minha mãe e a minha irmã perguntam, eu falo que é suplemento de vitaminas. E tento me cuidar certinho, porque imagina se eu precisar me internar e o médico solicitar exame de HIV durante a internação e minha família descobrir, então tudo o que eu posso para me cuidar eu faço”. (E4)

“Apesar do tempo de tratamento quando eu vou entrar no ambulatório eu evito que esteja passando carro...às vezes não tem como...sei lá.... para as pessoas não desconfiarem ...não me verem...passar alguém que eu conheço sabe e me ver ficar falando”. (E7)

“Sabe com o passar do tempo a gente vai ficando meio estressado sabe em ter que faltar dia de serviço para fazer exame e passar por consulta, daí você tem que ficar inventando desculpa para o patrão porque se ele ver um atestado do ambulatório de moléstias infecciosas logo vai relacionar ao HIV, então a gente se sente mal em estar mentindo, mas por outro lado tem que se resguardar. E ainda fica rezando para não encontrar nenhum conhecido da minha cidade para depois não ficar me apontando na rua. Então comparecer ao ambulatório é muito estressante, quando é para vir eu nem durmo direito, me dá uma ansiedade danada”. (E35).

“Agora um dos dilemas em conviver com o HIV é lidar com o preconceito e discriminação. Eu já passei por isso, para mim foi chocante que eu tive que mudar da cidade. Teve um acampamento da igreja católica e minha esposa participou e posteriormente eu fui no de homens e lá no acampamento uma pessoa falou para mim, eu frequento essa igreja católica há 11 anos e vou deixar de frequentar hoje, porque eu ouvi uma coisa muito contundente aos meus ouvidos, eu ouvi o padre falando que se soubesse que você tinha HIV não teria permitido que você tivesse vindo nesse acampamento, nesse retiro espiritual. Então isso para mim, há um preconceito muito grande, muito contundente”. (E23)

O preconceito e a discriminação são barreiras tanto para o enfrentamento da epidemia quanto em causar prejuízos na qualidade de vida e adesão ao tratamento. Apesar do núcleo familiar ser visto como suporte e apoio, no caso das pessoas vivendo com HIV, a grande maioria prefere ocultar a doença afim de evitar julgamentos e constrangimentos (Jesus et al., 2017). O preconceito é sentido de maneira significativa no ambiente de trabalho, ao comparecer às consultas médicas e retirar a medicação, muitos sentem a necessidade de omitir o porquê da ausência ao trabalho para atendimento médico. Nesse sentido é necessária a reorganização na dinâmica e nos horários de funcionamento dos serviços de saúde, com o intuito de acolher as necessidades dos homens trabalhadores (Gontijo, Riccioppo, Molina & Medeiros, 2013). O uso da medicação antirretroviral e a infecção pelo HIV contribuem com alterações na imagem corporal podendo ocasionar prejuízos psicológicos, emocionais, nas relações afetivas e sexuais, evidenciando o medo do diagnóstico ser descoberto devido aparência física (Ivo & Freitas, 2014), conforme a fala a seguir:

“Um dos meus medos em estar magro é alguém desconfiar de alguma coisa, porque eu falo assim é a tireóide..., mas assim todo mundo relaciona uma pessoa que está ficando muito magra primeira coisa tem HIV e segunda coisa câncer...eu fiquei preocupado por que como a gente trabalha no meio de muita gente as pessoas notam a magreza”. (E8)

A descoberta da condição sorológica leva o indivíduo a passar por profundas e inúmeras transformações que conduzem uma nova maneira de viver a vida. E dentre essas mudanças a percepção da própria imagem corporal. No início da epidemia do HIV, a infecção era associada à perda de peso. Quando a pessoa se depara com o próprio corpo emagrecido ela passa por momentos de angústia e ansiedade, o que pode levar ao isolamento social, pois ela sente que está estampado em seu corpo sua condição sorológica (Dantas, Abrão, Costa & Oliveira, 2015). O aparecimento de qualquer sinal ou sintoma infeccioso ou inflamatório deixa a pessoa que convive com o HIV com medo de desenvolver doenças, conforme aponta os relatos:

“Qualquer doença que aparece em você quando você tem HIV, assusta...uma dor de garganta, uma febre assusta...você fica desesperado causa muito medo e fica pensando será que está tudo bem comigo...será que vou morrer”. (E7)

“Eu tenho o receio de pegar alguma outra doença que pode se comportar diferente no organismo de quem tem HIV, como o covid -19, cujos efeitos e tratamento para soropositivos ainda não tenho notícias e por descuido da população pegar outras doenças como um sarampo, tuberculose”. (E28)

A infecção pelo HIV compromete o sistema imunológico, mesmo que a pessoa utilize a terapia antirretroviral e apresente carga viral indetectável, o organismo passa por processos inflamatórios tornando-se mais vulnerável a adquirir outras infecções (Universidade Federal do Rio Grande do Sul [UFRGS],2020). Consequentemente ao medo de adoecer encontra-se o medo de morrer, como mencionado a seguir:

“O maior medo é você pensar em quanto tempo eu vou viver ?”. (E11)

“Quando você recebe a notícia a sensação é que o mundo acabou, que está estampado em seu rosto ...que todo mundo vai descobrir...e a pergunta que você faz ....eu vou morrer. Como será a minha vida daqui pra frente?”. (E17)

“Eu tinha medo de morrer e chegou uma hora que me entreguei, eu falei o que tiver que acontecer, vai acontecer. Mas eu tinha medo de morrer”. (E21)

“No começo quando você descobre é cheio de incertezas, medo de morrer, a cabeça fica a mil, vem um monte de pensamento ruim na cabeça”. (E32)

O diagnóstico do HIV vem acompanhado por um processo de luto marcado por perdas simbólicas ou reais, contribuindo com reflexões acerca da sua finitude, não apenas relacionada à morte biológica, que faz parte do ciclo natural da vida, mas também psicológica e social. Esse momento permite à pessoa refletir e reconhecer suas fragilidades, vulnerabilidades, impotência e limitação neste processo (Moreira, Bloc & Rocha, 2012). Além das diferentes formas do medo nos homens que convivem com HIV, outros sentimentos são mobilizados, como o de culpa e solidão. Os participantes ressaltam o constante sentimento de culpa, por ter se “permitido” contaminar.

“Quer dizer ruim não é você ter o diagnóstico, ruim é você conviver com ele. Não só diante dos homens, mas também diante do seu próprio eu, do seu próprio inimigo te martelando uma coisa que te cobra todos os dias”. (E2)

“Às vezes até uma questão de culpa “nossa, mas eu me permiti uma situação dessa. Então às vezes nossa, em relação as outras coisas a gente se pergunta “nossa como a pessoa se permitiu isso neh, como ela deixou”. Eu me vi caindo num erro simples também. Então eu também me culpo muito por isso “olha isso não deveria ter acontecido”, não poderia ter permitido isso”. (E11)

“Você mesmo se julga e se culpa e a sociedade não perdoa. Ainda existe falta de informação sobre o assunto. Quanta ignorância por parte de muitos. Eu pago um preço altíssimo, eu sei da minha culpa”. (E22)

O cotidiano das pessoas que vivem com HIV é marcado pelo medo da não aceitação, levando a sentimento de culpa e vergonha. Os estigmas da doença relacionam a sua infecção a determinados comportamentos considerados inaceitáveis socialmente como a promiscuidade, prostituição e infidelidade. Esses estigmas podem gerar sentimento de culpa e inferioridade o que ocasiona o isolamento social, prejudicando a adesão ao tratamento e o seguimento clínico destas pessoas. O sentimento de culpa leva ao questionamento do porquê não utilizou os métodos de prevenção e confiou na aparência física da suposta pessoa que o contaminou (Caliari, Teles, Reis & Gir, 2017). Os diferentes sentimentos dos homens que convivem com HIV podem levar à solidão, conforme apontados pelos participantes:

“É uma doença que você carrega muitas vezes sozinho, no meu caso só contei para uma amiga próxima, é a única pessoa que acompanha esse capítulo da minha história. Evito compartilhar sobre a doença com as pessoas para me proteger de qualquer tipo de preconceito e discriminação”. (E5)

“É meio que um estágio de solidão isso daí. assim é uma angústia muito grande, é um pouco triste, é um pouco de solidão”. (E11)

A descoberta da infecção pelo HIV pode interferir na autoestima, pois além do impacto do próprio agravo, há os estigmas associados. Esses estigmas podem levar a rupturas de vínculos afetivos, discriminação, preconceito, interferência nos projetos de vida e alterações nos hábitos de vida com os cuidados de saúde necessários após diagnóstico. Diante desse contexto, evidencia-se que o convívio com o HIV é um processo solitário (Patricio et al., 2019). Conviver com uma condição incurável permeada por estigma, discriminação e preconceito, evidencia que os desafios tornam-se maiores, interferindo diretamente na forma em que os homens lidam com as adversidades e se reorganizam nesse contexto.

4.Considerações Finais

Concluiu-se que os sentimentos de se conviver com o HIV, são imbuídos de medo, culpa e solidão potencializados pelo olhar discriminatório da sociedade, que se evidenciam mesmo com os avanços tecnológicos e insistentes discussões. Nesse sentido, ressalta-se a necessidade de investimento na desconstrução e reconstrução de um novo olhar para o cuidado dessas pessoas, enfocando o profissional de saúde, a sociedade e em especial os homens. Tem-se como limitação do estudo a especificidade do grupo estudado, pois se contemplou os homens que já estão inseridos em um serviço de saúde, deixando de considerar as pessoas que receberam o diagnóstico e que não estão vinculadas a algum serviço ou não têm adesão regular ao tratamento, o que poderia ampliar o olhar sobre o convívio com o HIV. No entanto, considera-se que os dados podem ser extrapolados para toda a população que convive com o HIV. A coleta de dados por meio da entrevista deu voz aos homens que convivem com HIV, a medida que este momento foi considerado por eles como uma oportunidade de acolhimento, de empatia, de cuidado, de possibilidade de refletir sobre seu modo “de andar a vida”, sendo verbalizado o quanto sentiram-se importantes durante esses encontros e o quanto se prepararam para estar lá, tanto no aspecto emocional como na preocupação com higiene e vestimenta, evidenciando que a coleta de dados extrapolou para um momento de autocuidado. A análise de conteúdo, modalidade temática possibilitou captar seus sentimentos permitindo trazer a tona, ainda, o preconceito existente da população.

5.Referências

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Recebido: 01 de Fevereiro de 2022; Aceito: 01 de Abril de 2022

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