1.Introdução
A determinação social da saúde compreende que a estrutura social tem influência direta no processo saúde-doença. A partir desses pressupostos, os contextos político, histórico e socioeconômico devem ser considerados quando se trata de intervenções que visem à melhoria das condições de saúde e de vida (Borghi, Oliveira, & Servilha, 2018). Assim sendo, pode-se afirmar que a existência de assimetrias sociais entre grupos desencadeia o adoecimento de forma diferente e o grupo mais vulnerável sofre mais com agravos à saúde.A história mostra que a população negra vivencia, desde o período da escravidão, a condição de vulnerabilidade social e de negligenciamento do Estado. Observa-se que, mesmo após a abolição da escravatura e da ruptura legal do Brasil Colônia, por meio da nova Constituição, os direitos de cidadania e de uma vida livre para a população negra não foram alcançadas, se considerarmos, nesse contexto, as ausências de ganhos concretos ou de bens materiais e simbólicos (Oliveira & Kubiak, 2019). O histórico de negligência em relação à população negra resulta em consequências até os dias atuais. Esta população excluída e marginalizada continua vivendo em condições precárias nas periferias, habitando submoradias e convivendo com permanentes dificuldades de acesso a bens e serviços e sociais. Para mais, o contexto da covid-19 também revelou outras faces do racismo institucional existente no setor saúde. A título de exemplo, destaca-se o apagamento do efeito da covid-19 na população negra, por meio da ausência de informação do quesito raça-cor nos dados oficiais da pandemia (Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade [SBMFC], 2020). O objetivo deste estudo é, portanto, refletir sobre a condição de saúde da população negra na pandemia da covid-19 a partir do racismo estrutural e institucional.
2.Metodologia
Este estudo é qualitativo, em formato de ensaio teórico, de modo que busca trazer reflexões sobre o racismo e a saúde da população negra no contexto da pandemia do novo coronavírus. A motivação para este estudo se deu a partir da constatação de ausência de propostas destinadas à proteção da população negra nos instrumentos de planejamento contra a covid-19 das secretarias estaduais de saúde da região nordeste do Brasil. A partir desta constatação, emergiram reflexões sobre os efeitos do racismo estrutural e institucional na formulação de políticas e estratégias no planejamento do setor saúde. Desse modo, as análises do estudo procuraram dialogar com os autores que estudam a formação da sociedade a partir da leitura racializada das desigualdades existentes. Para Meneghetti (2011, p. 323), “O ensaio é um meio de análise e elucubrações em relação ao objeto, independentemente de sua natureza ou característica. A forma ensaística é a forma como são incubados novos conhecimentos, até mesmo científicos ou pré-científicos. Não é instrumento da identidade entre sujeito e objeto, mas é meio para apreender a realidade, por renúncia ao princípio da identidade". Nesta perspectiva, compreende-se que a escolha metodológica pelo ensaio teórico foi importante para o alcance do objetivo proposto. A forma ensaísta aqui busca compreender o racismo a partir do viés estrutural de construção da sociedade brasileira, a formação do Estado e os seus mecanismos racistas e as consequências no adoecimento da população negra no contexto da covid-19. Neste contexto, a pesquisa qualitativa tornou viável a elaboração deste ensaio teórico incorporando as complexidades de compreensão da realidade sob o viés da saúde da população negra, o setor saúde e a pandemia da covid-19 por meio do aprofundamento e da ampliação desta discussão. Pode-se ainda salientar que estudos críticos de abordagem qualitativa influenciam na elaboração intelectual de outros autores e em mudanças de práticas institucionais.
3.Do Racismo Estrutural para o Racismo Institucional
Para compreender a realidade e vivência da população negra, é necessário aprofundar-se na condição histórica que a sociedade estruturou as relações raciais: o racismo e suas manifestações sociais. De acordo com Almeida (2018 p. 32), o racismo é “uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, manifestando-se por meio de práticas conscientes ou inconscientes, as quais culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam”. Para o autor supracitado, existem três concepções de racismo: individualista, institucional e estrutural. Neste trabalho, será pontuado o racismo estrutural, considerando a própria estrutura social que produz e torna sustentável a perpetuação do racismo; e o institucional, que, para nós, será importante fonte de reflexão na proposta de entender o Estado e como as discussões da população negra são apresentadas nas instituições públicas do setor saúde. O racismo institucional, por sua vez, constitui-se na utilização, de forma autoritária, de um grupo racial hegemônico por meio da instituição. Segundo Almeida (2018), a perpetuação desse grupo racial dominante acontece quando estes asseguram o controle da instituição, não somente com o uso da violência, mas também com a produção de consensos sobre a sua dominação. Em relação à dominação, compreende-se que, para a sua perpetuação, são utilizadas formas de desumanização do grupo dominado. De acordo com o pensamento de Ramos (1955) retratado por Barbosa (2006), a condição do negro é resultado de uma identidade socialmente construída mediante o olhar do dominador, do branco europeu e dos seus descendentes colonizadores. Essa identidade, que foi elaborada pelo dominador, impede o negro de constituir sua humanidade de forma plena. Para aprofundar a visão sobre construção subjetiva dessa dominação, Ramos (1955, p. 191) comenta que a história de cada um reflete no olhar deste indivíduo para as relações sociais: "muitos brasileiros ainda vivos descendem de avós que possuíam escravos, enquanto outros não. Tais circunstâncias importam, necessariamente, na formação psicológica de cada um.".Essa formação inconsciente para o autor remete a uma concepção das relações coloniais, tendo em vista que, na colonização, dois processos históricos coexistiram na construção de eixos de poder. Primeiro, na ideia da diferença racial entre conquistadores e conquistados, na inferioridade de um grupo em relação a outro. Segundo, na perspectiva em torno do capital e do mercado mundial, no controle do trabalho e dos seus recursos (Quijano, 2005). Para dialogar sobre o poder e as relações coloniais no processo histórico, é importante compreender que a ideia de raça inicia-se a partir da colonização das américas, devido ao fato de que as relações sociais se estabeleciam por meio da dominação, e a classificação com base na raça e identidade racial serviu de mecanismo para diferenciar a população colonizada (Quijano, 2005).Conforme o contexto supracitado, a divisão racial assumiu um caráter fundamental no estabelecimento da ordem social vigente. A partir da cor, do fenótipo e de uma suposta diferença biológica, os colonizadores caracterizam esta população colonizada de forma racial e hierarquicamente inferior, e se auto classificam como brancos, de raça superior (Quijano, 2005).Para compreender a centralidade da raça no mundo colonial, Fanon (1968) aponta que, por meio da raça, observa-se a existência de um mundo colonial cindido em dois: colonizados e colonizadores. As realidades desses mundos são de profundas diferenças: desiguais na economia, na estrutura social, “zonas completamente opostas” e que a conciliação fora impossível. No Brasil, isso é explicado pelo fato de que a Independência, ou seja, a ruptura com a sociedade colonial, não tinha a intenção de modificar a estrutura social, mas surgiu com base na insatisfação dos próprios colonos com o estatuto colonial. Tal estatuto para as elites nativas retirava a autonomia e neutralizava sua dominação no território, pelo fato de que o poder, a economia e o status eram subordinados às decisões da coroa (Fernandes, 2006). A partir do advento da Independência, essa elite iniciou a construção da sociedade nacional, a qual deveria resguardar a lógica de dominação e exploração econômica sem a submissão à coroa (Fernandes, 2006). Assim, a sociedade iniciava sua construção nos moldes capitalistas e, por causa dessa realidade, a organização política não seria desenvolvida fundamentada no direito das elites, mas no Estado (Almeida, 2018). Portanto, o Estado brasileiro já nasce aparelhado pela elite, a qual se beneficiava com a violência e com as desigualdades entre colonos e colonizados. Com base nesse ponto, é necessário localizar, novamente, a população negra, sendo, para essa elite nativa, o principal povo escravizado, de modo que continuar com o regime de escravidão garantia lucros para a manutenção econômica e de poder dessa elite, mesmo após a Independência. Após a abolição da escravidão, o Estado não apresentou propostas de inclusão para a população negra que foi escravizada, uma vez que, de maneira geral, estes libertos formais estavam totalmente desamparados pelo Estado, assim eram lançados na marginalização e subalternidade com aval institucional (Wermuth, Marcht, & Mello, 2020). Desse modo, pode-se dizer que, nesse momento, a considerar que a falta de estrutura social para acolher aquela população, o Estado os vulnerabilizaram em multidimensões. Com isso, o Estado assume duas posições, a de regulador e mantenedor das assimetrias raciais, tomando como base a ideia de que as desigualdades entre negros e brancos na sociedade brasileira são tuteladas pelo Estado, o racismo institucional (Werneck, 2016; López, 2012). Dito isso, ao se falar da população negra, é primordial compreender as políticas de Estado que subjugam a sua vivência, o que este poder planeja para o prolongamento da vida no âmbito da saúde da população negra ou, perante outra ótica, as diversas formas de privação e negligência que conduzem à morte da população preta e parda brasileira.
3.1 O Racismo Institucional no Setor Saúde e a Pandemia da Covid-19
Ao refletir sobre a produção social da vida, a concepção da determinação social de saúde afirma o indivíduo como um ser social, na perspectiva de compreender que os pensamentos, os sentimentos, as escolhas, as paixões e os sofrimentos são socialmente determinados (Fleury-Teixeira & Bronzo, 2010). Nesse caso, os indivíduos são concentrações vivas e pontos de interação social mediados pela atividade produtiva, criando suas próprias condições de existência de acordo com a sua posição social. Logo, as características sociais da população são a base para o padrão de saúde, e a transformação da sociedade promove novas condições de vida e de saúde (Fleury-Teixeira & Bronzo, 2010). À luz das discussões com base na realidade, o pensamento brasileiro crítico na saúde emerge do movimento pela Reforma Sanitária, cujo qual propõe a compreensão do adoecimento sob ótica da concepção ampliada de saúde que dialoga com os pressupostos da determinação social do processo saúde-doença, defendida na 8° Conferência Nacional de Saúde (Ministério da Saúde, 1986). A concepção ampliada de saúde é conceituada a partir do resultado de combinações de alimentação, renda, moradia, educação, emprego, lazer, transporte, acesso e posse de terra, ou seja, apoiada nas formas de organização social de produção (Ministério da Saúde, 1986). No caso, a fragilidade no acesso e o usufruto desses elementos podem gerar grandes dificuldades sociais e, consequentemente, danos à saúde dessa população. Para o movimento de reforma sanitária, o Estado, diante de suas atribuições, deve garantir condições de vida digna a todos habitantes no território brasileiro, promovendo o desenvolvimento pleno do ser humano e de sua individualidade (Ministério da Saúde, 1986). Com esses pressupostos, foi conquistado o Sistema Único de Saúde (SUS), que regulamenta a saúde como direito de todos e dever do Estado. Em relação à reforma sanitária e a 8ª Conferência Nacional de Saúde, o movimento social negro participou ativamente do processo de resistências e lutas por condições dignas de saúde (Ministério da Saúde, 2013). No relatório final, o racismo e a raça não foram contemplados como determinantes, a participação traduziu-se, dentre outras coisas, na garantia da saúde como direito universal independentemente de cor, raça, religião, local de moradia e orientação sexual. Todavia, apesar da garantia do direito universal no texto constitucional, o movimento negro continuou denunciando as condições de vidas indignas da população negra e reivindicando medidas que deveriam ser adotadas pelo Estado para a redução das iniquidades e ampliação dos acessos a bens e serviços (Ministério da Saúde, 2013). A compreensão do direito à saúde, preconizado pelo SUS e reivindicado por movimentos sociais, não incluía de forma plena a população negra. Isso se deu pela razão da não inserção de mecanismos explícitos para a superação das iniquidades de acesso à saúde e outras medidas de combate ao racismo (Werneck, 2016). Mesmo o movimento de reforma sanitária organizado para o enfrentamento de uma lógica de produção capitalista na saúde e sociedade, ainda existiam resistência na compreensão das consequências do racismo no adoecimento da população. Outrossim, a defesa de que apenas a classe interferia no processo de adoecimento, onde o racismo apenas mostrava-se evidente em pobres (Batista & Kalckmann, 2005). As demandas do movimento negro em relação ao setor saúde estavam norteadas de questionamentos sobre a condição de vida e saúde da população negra, e em contrarresposta, era identificado a resistencia do setor saúde em encarar o racismo na produção do adoecimento, como também na própria indisponibilidade do setor em viabilizar dados de qualidade. É neste cenário que se inicia a formação do campo científico e político da saúde da população negra. Werneck (2016) dialoga sobre o fato de um dos objetivos deste campo ser o reconhecimento do racismo na produção das iniquidades que atinge a saúde de homens e mulheres negras, independentemente da região, escolaridade, renda e dos ciclos de vida. Para a formação do campo, existiram diversos marcos importantes conduzidos pelo movimento negro para organização das informações existentes, nas produções científicas e na elaboração de propostas para a redução das iniquidades raciais em saúde. Werneck (2016) descreve, ainda, a discussão de racismo e vulnerabilidades que chegou à gestão pública em 1995 pela Marcha Nacional Zumbi dos Palmares. A marcha reuniu milhares de militantes, e resultou na formação do Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra (GTI), que, em 1996, realizou a Mesa Redonda sobre Saúde da População Negra. Nesta mesa, saíram propostas para a inserção do quesito raça/cor na Declaração de Nascidos Vivos e de Óbitos; a criação do Programa de Anemia Falciforme (PAF) e a detecção precoce da anemia na triagem neonatal; a reestruturação da atenção à hipertensão arterial e à diabetes mellitus; a ampliação do antigo Programa de Saúde da Família para as comunidades quilombolas (Werneck, 2016). Maio e Monteiro (2005) relatam que após este evento foi elaborado um documento que abordou, de forma sistemática, a saúde da população negra por meio de quatro eixos principais. Estes tais eram os seguintes: “doenças geneticamente determinadas”, seguido pelas doenças “causadas pelas condições socioeconômicas, educacionais e psíquicas”; as combinações de questões “genéticas e as condições sociais de vida”; também os “processos naturais associados às negligências e condições precárias transformam-se em problemas de saúde”, a exemplo da gravidez, do envelhecimento e do parto. Um outro evento que marcou o fortalecimento da discussão sobre a saúde da população negra foi uma conferência realizada em Durban, África do Sul, em 2001. A 3ª Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, por sua vez, refletiu no Brasil por meio de propostas de políticas de ação afirmativa, as cotas raciais e na saúde, a elaboração de um documento, no mesmo ano, intitulado "Política Nacional de Saúde da População Negra" (Maio & Monteiro, 2005). Por meio de resistência e de muitas reivindicações do movimento negro, foi conquistada a publicação da portaria n° 992, de 13 de maio de 2009, que institui a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN). A portaria pontua as responsabilidades das Esferas de Gestão do SUS para a implementação da política, a exemplo da gestão estadual que propõe: a definição e gestão dos recursos orçamentários e financeiros, garantia da inclusão desta política no Plano Estadual de Saúde e no Plano Plurianual de Saúde, considerando as realidades locais e regionais (Portaria n. 992, 2009). A PNSIPN propõe caminhos para a gestão do SUS e dos serviços de saúde, bem como marca o reconhecimento do “racismo, das desigualdades étnico-raciais e do racismo institucional como determinantes sociais das condições de saúde, com vistas à promoção da equidade em saúde” (Portaria n. 992, 2009). Nesse contexto de reflexões, resgata-se dois momentos no início da pandemia de covid-19 no Brasil: a percepção de que o vírus seria democrático e, em seguida, que o vírus desnudou desigualdades. Inicialmente, foi disseminada a ideia de que a covid-19, no Brasil, seria uma doença “democrática”, atingiria a todos, independentemente de raça e cor, em que os mais afetados seriam pessoas com comorbidades e idosos (Oliveira et al., 2020). Esse discurso emerge de uma visão superficial da realidade, dado ao fato de que a covid-19 vem importada de outros países pela classe média e branca brasileira. O discurso de democracia da doença, na verdade, oculta um tipo de narrativa histórica, da democracia racial, bem comum. Isso advém da ilusão de que a população negra e a população branca vivem de forma harmônica, sem assimetrias sociais causadas pelo racismo. Essa narrativa compromete a realização de uma análise crítica da sociedade e do adoecimento no Brasil, o qual considera o histórico de fragilidades no acesso aos serviços de saúde. Além disso, implica, também, na própria fragilidade do setor saúde em refletir sobre a determinação social de saúde e de que a população negra está no centro dos piores agravos de saúde (Ministério da Saúde, 2014). Ao considerar a existência de comorbidade para o agravamento da covid-19, o setor saúde poderia refletir acerca da distribuição dessas comorbidades na população. Nesse caso, seria importante identificar quem são as pessoas mais afetadas por essas doenças pré-existentes, bem como quais medidas devem ser planejadas e executadas para conter a contaminação e o agravamento deste grupo populacional. À vista disso, cabe apontar que algumas das doenças apresentadas para o risco de agravamento da covid- 19 foram a hipertensão arterial e diabetes tipo II, que apresentam maior prevalência na população negra. Em outras palavras, por meio das comorbidades, podia ser observado o risco da população negra ser mais afetada, e de forma grave, tanto pelos indicadores das doenças pré-existentes quanto pela própria vulnerabilidade social (Ministério da Saúde, 2017). Sob esta ótica, viu-se que, mesmo trazida pela classe média branca, a covid-19 atingia a população negra em maior escala. Um fato importante a ser relatado é que um dos primeiros óbitos do estado do Rio de Janeiro foi de uma mulher negra empregada doméstica, contaminada pela patroa, a qual voltou de uma viagem internacional infectada, recuperando-se, entretanto, a empregada foi a óbito (Melo, 2020). No que diz respeito às medidas de proteção, preconizadas pelos órgãos públicos no Brasil, muitas foram direcionadas às prevenções individuais. Na higiene pessoal, a ação estava ligada à limpeza das mãos, com álcool 70° de forma líquida ou em gel, e foi difundida como item indispensável para a segurança individual. Além disso, também foi mostrado como essencial o distanciamento social, perpetuado por meio do trabalho remoto e da quarentena, evitando a aglomeração (Bardi et al., 2020; Santos et al., 2020). Entretanto, essas medidas se mostraram pouco acessíveis para quem não tem renda ou tem renda baixa. Para além do que foi supracitado, é conhecido o fato de que a demanda por alguns itens de higiene pessoal produziu a escassez no mercado e aumento de preço de forma abusiva. Nesse sentido, foi reforçada a limpeza de mãos de forma segura por meio da lavagem de mão com água e sabão regularmente, o que pode parecer uma boa alternativa para um país que tem acesso ao saneamento básico e à água potável, mas, este não é caso do Brasil (Bardi et al., 2020). Sobre a situação da população negra em relação ao saneamento básico, Jesus (2020) diz: No Brasil, em 2010, havia 21.532.754 pessoas negras cujo abastecimento de água ocorria por poço, nascente, carro-pipa, armazenamento da água da chuva, rios, açudes, lagos, igarapés ou outras formas . . . Ou, ainda, 10.610.966 pessoas negras sob a condição alarmante e precária de não terem sequer banheiro no domicílio (Jesus, 2020, p. 8). Ao considerar os dados apresentados, foi possível compreender que as medidas higiênicas para a proteção da covid-19 podem não terem sido acessíveis à parte da população negra, pela ausência de estrutura mínima de moradia, de saneamento básico, de falta de água potável e de condições insalubres de existência. No tocante ao distanciamento social, outros impasses são ressaltados para a população negra, tais como: a dependência ao transporte público, cujos quais, muitas vezes, encontram-se com um grande contingente de pessoas. Um outro ponto relevante é a situação de trabalho, o ‘home office' ou a realização de trabalhos a distância foi uma das medidas sugeridas para diminuir a exposição à pandemia, mas sob óticas das relações de trabalhos não acessíveis a todas as pessoas. A precarização das relações trabalhistas e o tipo de trabalho exercido influenciam na adesão dessas medidas, principalmente, para a população negra (Bardi et al., 2020). Para ilustrar a situação da população negra em relação ao trabalho, um relatório publicado pelo Boletim Especial sobre Negros no Trabalho (2013) revelou que a maioria dos homens negros está exercendo trabalho braçais, tais como: serventes, pintores, faxineiros, camareiros e empregadas domésticas. Além disso, 75% das mulheres negras estão em vínculos sem garantias legais e mais de 20% estão em trabalhos de empregada doméstica (Paixão & Gomes, 2008). Portanto, é necessário considerar que as medidas preconizadas para a prevenção da covid-19 podem ter sido de difícil adesão para a população negra. No setor saúde, outros desafios foram apresentados, o que corresponde aos registros de informação da população negra durante a pandemia da covid-19. Considera-se, então, que, para analisar a distribuição dos agravos de saúde na população, é necessário qualificar as informações para refletir a realidade. Assim, a partir dos dados qualificados, o setor saúde pode organizar-se e estabelecer políticas e ações que visem à superação das fragilidades. Nessa perspectiva, o movimento negro empenhou grandes esforços para que fossem geradas informações sobre a situação de saúde da população negra, costurou diversas articulações e organizou manifestações para a inclusão do registro raça e cor (Ministério da Saúde, 2017). Na década de 90, foram registradas as primeiras reivindicações do movimento negro para a inserção do quesito raça e cor, em especial nas informações do setor saúde. O registro dessas informações era importante para desvelar a ideia da democracia racial, na perspectiva de apresentar as desigualdades de vida e morte em relação à população negra, incluí-la na discussão de equidade em saúde do SUS e, por meio do sistema universal, propor estratégias de superação das desigualdades raciais (Adorno, Alvarenga, & Vasconcellos, 2004). Em 2017, o registro de raça e cor tornou-se obrigatório, a partir da publicação da Portaria n° 344 do Ministério da Saúde, a qual aborda o preenchimento obrigatório do quesito raça e cor nos formulários dos sistemas de informação em saúde. A portaria aponta, como competência da gestão do SUS, estimular, qualificar e monitorar a implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra-PNSIPN (Portaria n. 344, 2017). Esta portaria é fundamental porque compreende-se que a não notificação da raça, cor e etnia, quer seja por meio dos registros ausentes e ignorados, ou até mesmo pela fragilidade de publicização desses dados, contribui para ocultar a situação de saúde da população negra. Essa desinformação reflete-se prejudicialmente no processo de análise, monitoramento, planejamento e avaliação de políticas de saúde para grupos étnicos raciais (Carvalho & Meirinho, 2020; Adorno et al., 2004).Entretanto, apesar de todas as reivindicações, a atuação da gestão do setor saúde na pandemia do novo coronavírus em relação ao registro de raça e cor foi frágil. Na análise realizada por Santos et al. (2020), a partir dos boletins epidemiológicos publicados pelo Ministério da Saúde, foi observado que a informação de raça e cor em relação à covid-19 não foi exposta nos primeiros boletins, apesar desse registro ser presente nas fichas de notificação para Síndrome Gripal e para Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG). Além disso, a sua inserção nos boletins se deu após pressões externas de organizações de saúde como o Grupo de Trabalho de Racismo e Saúde, da Coalizão Negra e da Sociedade Brasileira de Médicos de Família e Comunidade. A autora, em sua análise, ainda pontuou que, mesmo após a inserção do registro raça e cor, foi encontrado um número significativo de informações ausentes e ignoradas. No boletim epidemiológico do Ministério da Saúde da semana 21 da pandemia da covid-19, em 2020, o número de casos confirmados com o registro de raça e cor ignorado era de 51,3% (60.382) do total de 117.598 casos confirmados, ou seja, a raça e a cor de mais da metade dos casos confirmados é desconhecida (Santos et al., 2020). A fragilidade do registro da informação de raça e cor pode servir como alerta para expor o histórico racismo institucional do setor saúde, por meio da negação do cumprimento da Portaria n° 344, a não adesão à PNSIPN e também da ausência de estímulo da gestão do setor saúde para o preenchimento do registro raça e cor pelos trabalhadores. Compreende-se que, além do histórico de negligências ainda presente nos dias atuais, a população negra lida com narrativas na contramão das ciências e com ausências de políticas específicas para a sua proteção. Para Werneck (2016), além do racismo na determinação dos condicionantes de vida e saúde da população negra, existem os codeterminantes que podem aprofundar ou reduzir os efeitos do racismo na população. Nesse caso, a política governamental atuando para a propagação do vírus (Asano, Ventura, Aith, Reis, & Ribeiro, 2021) foi um dos codeterminantes para o acometimento severo da covid-19 na população negra. Uma das medidas de proteção mais esperadas em termos de necessidade para a mitigação da pandemia foi a vacinação contra a covid-19, a qual chegou de forma diferenciada para a população. O Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade-LabCidade (2021), por seu turno, analisou a geografia do impacto do vírus na cidade de São Paulo e observou que não há propostas de políticas direcionadas para grupos em situação de vulnerabilidades social em territórios mais atingidos pela pandemia, e muito menos prioridade para a vacinação em resposta ao acometimento do vírus de forma desenfreada (Marino, Mendonça, & Rolnik, 2021). Essa ausência de propostas não surpreende. Para os pesquisadores, trata-se da naturalização da morte da população negra. Neste caso, os territórios onde foi identificada a maior incidência de covid-19 é a residência de grande parte da população negra na cidade. Em contrapartida, os locais que apresentaram maior índice de vacinação foram os territórios de renda mais alta, locais em que predomina a população branca (Marino et al., 2021). Esta ausência de proposta constitui uma das estratégias do racismo nas relações sociais. Apesar dos profundos efeitos na população negra, existe uma naturalização das situações de iniquidades (Werneck, 2016) e, assim, a desobrigação de intervenção por parte do Estado. Por mais que a população negra esteja entre os piores indicadores de saúde, e a PNSIPN, desde 2009, oriente a elaboração de medidas para a redução de iniquidades raciais nos instrumentos de gestão e planejamento do setor saúde (Portaria n. 992, 2009), a efetivação é frágil.
4.Considerações Finais
Este estudo buscou compreender a condição da saúde da população negra no contexto da covid-19. O reconhecimento desta condição nos permite refletir sobre a existência do racismo institucional e estrutural no País, revelá-las pode ser um caminho para assegurar meios para redução dos agravos e doenças que atingem a população negra de forma assimétrica. Cabe ressaltar, ademais, outros mecanismos do racismo presente no cuidado do setor saúde, seja na fragilidade de informação do registro raça e cor, ou na ausência de um planejamento em saúde que responda às consequências do racismo no adoecimento da população negra, as quais estão ligadas aos dados drásticos de adoecimento, seja pela covid-19, hipertensão ou diabetes. Alicerçando-se nessa linha de raciocínio, pontua-se a importância de conhecer a condição do racismo e das iniquidades raciais na perspectiva de construir de forma crítica e equânime as políticas públicas de saúde. Assim, em situações de surtos, epidemias ou no simples cotidiano, é possível compreender como a população negra pode ser atingida por doenças e quais serão os principais caminhos para a assegurar a proteção contra riscos e agravos.