1.Introdução
Desde a declaração de estado de pandemia proferida pela Organização Mundial da Saúde em decorrência da COVID-19 (WHO, 2020), os profissionais de Enfermagem do Brasil foram mobilizados para o enfrentamento de uma crise sanitária jamais vivenciada nos últimos 100 anos. Mostraram-se sensibilizados com o sofrimento da população e com questões que afetam a saúde física e mental de seus pares (Fernandes & Ribeiro, 2020). A publicização nas mídias sociais da COVID-19 revela à sociedade o impacto que a pandemia trouxe aos profissionais de saúde, quanto ao agravamento do desgaste físico, emocional e adoecimento que vem se perpetuando de longa data devido às precárias condições de trabalho (Fernandes & Ribeiro, 2020). Considerando que os profissionais de enfermagem são a maior força de trabalho do Sistema Único de Saúde brasileiro, e que seu trabalho se concretiza em longos períodos de permanência nos serviços, estudo aponta que estes têm sido extremamente afetados com o aparecimento e enfrentamento dessa nova doença em termos de saúde física e mental, em especial, os que atuam na assistência direta (Moreira, Sousa & Nóbrega, 2020). São expressivos o sofrimento psíquico e a prevalência de sintomas de angústia (71,5%), depressão (50,4%) e ansiedade (44,6%) em níveis consideráveis e prementes de intervenção clínica (Lai, et al., 2019); sentimentos de raiva, medo, quadros de depressão, ansiedade, burnout e comportamento suicida (Moreira, Sousa & Nóbrega, 2020; Moreira, et al., 2021 ). E mesmo os que não atuam na assistência direta, estão susceptíveis devido à “traumatização secundária”, que ocorre pela identificação com o sofrimento dos colegas vitimizados (Li, et al., 2020). Diante desse momento singular e histórico que a enfermagem brasileira vem enfrentando, essa pesquisa visa subsidiar medidas de suporte àqueles profissionais que atuam na prática assistencial, de gestão e na condução de políticas públicas de saúde de abrangência nacional em curto, médio e longo prazos. Dessa forma, ancorado no cenário supracitado, este estudo guiou-se pela questão de pesquisa: Quais as representações sociais dos profissionais de enfermagem sobre sua atuação no contexto da pandemia Covid-19 e a relação com a saúde mental? Assim, o objetivo do estudo é analisar as representações sociais dos profissionais de enfermagem residentes no Brasil sobre a pandemia da Covid-19 no contexto da saúde mental.
2.Método
2.1 Desenho do estudo
Estudo exploratório, com abordagem prioritariamente qualitativa (Bryman, 2012), desenvolvido com enfermeiros, obstetrizes e técnicos de enfermagem, de diferentes níveis de atenção à saúde e cenários de atuação profissional, das cinco regiões do Brasil. Neste país investigado, a categoria profissional de enfermagem está organizada em subcategorias, respaldadas em lei de exercício profissional vigente, com regulação das atividades profissionais específicas para cada uma delas.
2.2 Coleta de dados
Acompanhando a tendência tecnológica e dinâmica das populações em nível mundial, que acessam cada vez mais a internet, o convite para participar da pesquisa foi disponibilizado em redes sociais: Facebook®, Instagram®, Twitter®, WhatsApp®, tais como correios eletrônicos (e-mail), com instrumento composto por questões sobre dados sociodemográficos, laborais e de saúde, e a proposição: “Relate as suas vivências e sentimentos como profissional de enfermagem diante do contexto da pandemia Covid-19”. O instrumento foi submetido à validação interna por quatro pesquisadores experientes na área de Saúde Mental, em Enfermagem Clínica e um profissional de enfermagem atuando na assistência às pessoas com a Covid-19, submetido a pré-teste. Ao perceber a dimensão da Covid-19 na vida dos profissionais de enfermagem, optou-se por revelar a gravidade da situação de um determinado momento, portanto, os dados apresentados retratam o período pandêmico de 22/abril a 08/junho de 2020. A confiabilidade na coleta de dados foi mantida pelo recolhimento de e-mail para evitar duplicidade de resposta; eliminação de formulários inconclusos ou semipreenchidos; manutenção do último formulário enviado pelo participante; extração e organização dos dados supervisionados por quatro pesquisadores. Adotou-se os critérios do Consolidated Criteria For Reporting Qualitative Research (COREQ).
2.3 Análise e tratamento dos dados
Para o tratamento dos dados sociodemográficos, laborais e clínicos utilizou-se o Software IBM® SPSS® Statistic versão 25. O processamento dos dados qualitativos deu-se pelo Software IRaMuTeQ®(Camargo & Justo, 2018). Neste estudo foi aplicada a Classificação Hierárquica Descendente, apresentada por meio de dendrograma, que classifica a frequência por classes de palavras que se relacionam diretamente, e garantem a representação do fenômeno investigado. A preparação do material para análise foi conduzida pelos pesquisadores que se debruçaram sobre os relatos e dados dos participantes, que foram identificados com o código entrevistado (ent), seguido do número da ordem de preenchimento do formulário, sexo (sex), profissão (prof) e região do país (reg). Após processados os dados, extraídas as classes e a composição do dendograma, aplicou-se o método de Análise de Conteúdo Temática, que permitiu agrupar os fragmentos dos conteúdos junto às unidades de sentido (Clarke & Braun, 2013). Os achados foram analisados à luz do referencial teórico das Representações Sociais (RS) que possibilita acessar elementos e peculiaridades da vida social a fim de explicar acontecimentos que impactam a sociedade (Natt & Carrieri, 2014). A representação é parte do todo da consciência e se dá sempre em torno de algo circunscrito. A RS consiste na ação de possibilitar a emersão de algo que está ausente e são elaboradas sempre em torno das relações dos sujeitos entre si e com o ambiente (Viana, 2008). Têm como principal característica a capacidade de transformar algo desconhecido em familiar, aproximando-o da realidade cotidiana das pessoas, funcionando como um modo de interpretação da realidade, sobre um mesmo objeto ou conteúdo; ao mesmo tempo são formas de conhecimento elaboradas e compartilhadas que contribuem para construir uma realidade comum a um mesmo conjunto social (Natt & Carrieri, 2014). Justifica-se a escolha desse referencial teórico na certeza de que os profissionais de enfermagem compartilham o momento histórico pandêmico e constroem suas representações.
3.Resultados
São Técnicos de Enfermagem (20%), Enfermeiros (47,2%), Obstetrizes (0,5%), Enfermeiros docente- pesquisadores (15%), Enfermeiros Pós-graduandos (13,4%), Enfermeiros especializando (3,7%). Atuam simultaneamente em duas categorias profissionais (3,6%) Técnico de Enfermagem e Enfermeiro. A Tabela 1 retrata o perfil sociodemográfico, clínico e laboral de 719 participantes que responderam a pesquisa em ambiente virtual.
A análise do corpus processado no software IRaMuTeQ® deu-se em 32 segundos, gerou 1.294 Unidades de Contexto Elementar (UCE), das quais 1.233 foram aproveitadas 95,3%. A partir de matrizes e cruzamentos dos segmentos de textos e palavras, foi aplicado o método da Classificação Hierárquica Descendente (CHD) e obteve-se quatro classes em dois subcorpus: “A” - intitulado “Trabalho” composto pelas classes 1 (A fragilidade no processo de cuidar) e 2 (As situações precárias de trabalho, o (des)valor e a profissão invisível), com 216 (17,5%) e 318 (23,68%) das UCE do corpus total, respectivamente. O subcorpus “B”, intitulado “Sentimentos” contém os relatos correspondentes às classes 3 (Momentos de medo, ansiedade e angústia, no futuro incertezas) e 4 (Esperança e fé em dias melhores), com 407 (33%) e 292 (23,7%) das UCE, do corpus total, respectivamente (Quadro 1).
No subcorpus “A”, na perspectiva dos profissionais de enfermagem, foram revelados conteúdos das RS frente ao processo de trabalho, como a sociedade percebe a participação desses profissionais no novo contexto da pandemia, na relação com o paciente infectado e frente às instituições para as quais prestam serviço. Nessa relação, referem sentimento de impotência, medo do desconhecido, exaustão e aflição ao prestar cuidado, que advém das próprias condições de trabalho oferecidas. Os impactos na saúde mental são compreendidos e justificados pelos profissionais em função da estrutura institucional que combina duas formas de exploração: a sobrecarga e a intensificação do trabalho, nas constantes mudanças de setor que geram sentimentos de insatisfação, insegurança e incertezas, nos novos protocolos técnicos que precisam dominar para cuidar da população (Classe 1). Considerando que as condições para o desenvolvimento do trabalho não são adequadas, os profissionais se expõem aos riscos no exercício de suas ações e, fragilizados, se sentem desvalorizados e com medo de sofrerem violência provocada por pacientes e familiares não empáticos diante do trabalho que estão desenvolvendo (Classe 2), conforme mostra a quadro 2.
O subcorpus “B” revela as emoções e medidas de enfrentamento, manifestações de sofrimento no âmbito da saúde mental e os impactos negativos na qualidade de vida e nos níveis de satisfação dos profissionais. Embora sofrendo, verbalizam o desejo de lutar e de transformar uma realidade, mas se sentem (des)esperançosos no futuro em função do presente marcado pelo sentimento de desamparo que a profissão vive. Sozinhos, buscam no suporte emocional de suas redes pessoais, compostas por colegas que passaram e/ou permanecem suportando uma situação de desgaste no trabalho, a validação e legitimação de sua dor e acolhimento emocional. Ainda refletem que é preciso valorizar os momentos simples e prazerosos da vida, zelar por suas relações interpessoais, creditam à ajuda Divina e às evidências científicas soluções ao sofrimento (Quadro 3).
Fonte: Dados da pesquisa, Brasil, 2020
4.Discussão
A pesquisa possibilitou que profissionais de enfermagem de todas as regiões do país expusessem suas representações do processo de trabalho diante do novo da doença Covid-19. Mostrou que houve necessidade de adaptações e mudanças laborais para que pudessem atender a população e garantir sua proteção. Nesse sentido, as representações sociais dos profissionais deste estudo corroboram a literatura que contextualiza um processo de trabalho precarizado que vem sendo regularizado e naturalizado pela categoria há muito tempo (Souza, 2016). A naturalização e regularização deste processo de trabalho é fruto da construção social, que se confronta com o presente e produz uma necessidade urgente de proteção para a categoria profissional (Araújo & Morais, 2017). Quando os profissionais questionam as rotinas exacerbadas pela pandemia, diminuição de equipes na linha frente, desgastes com o uso prolongado dos EPI, redução na troca de materiais por insuficiência (Oliveira, 2020), revelam a simplificação e mecanização de sua prática. Nessa direção, foram acionados a rever os processos de trabalho por meio de treinamento e protocolos específicos. Os profissionais de enfermagem até percebiam a precariedade do trabalho, mas, não conseguiam questionar a naturalização, regularização e simplificação do cotidiano em que estavam/estão inseridos e, por medo, incerteza e insegurança, tornam-se vulneráveis ao adoecimento. Esse processo está relacionado às questões de poder presentes nas estruturas organizacionais e governamentais, no tecido de interações entre diferentes atores, intensificadas pelos aspectos culturais, econômicos, históricos e sociais (Adamy, Zocche & Almeida, 2020). Com a pandemia da Covid-19, os profissionais de enfermagem passam a perceber o descompromisso dos gestores das instituições e dos órgãos fiscalizadores, e dão voz aos integrantes da profissão para que estes possam questionar as condições desgastante de trabalho e o cuidado de si. À vista disso, é impossível conceber uma assistência que prescinde do básico, que é a proteção individual do trabalhador. Há necessidade, portanto, de reflexão mais profunda sobre o processo de trabalho dos profissionais de enfermagem, para (re)adaptá-los à exigência de condições seguras para exercerem sua prática profissional, independentes de períodos pandêmicos. Considerando a essencialidade da profissão para enfrentar o maior desafio sanitário do século e até mesmo antes da pandemia, a OMS destaca o déficit de profissionais de enfermagem no mundo e a desvalorização da profissão entre os países (WHO, 2020). No Brasil, esta realidade tornou-se ainda mais desoladora, sobretudo pelo elevado adoecimento e morte de profissionais contaminados. Dentre o início de 2021 até o momento, foram 23 técnicos/auxiliares de enfermagem (28,8%) e oito enfermeiros (10,0%) diagnosticados. Mas, desde o início da pandemia foram registrados até 08/04/2021, 51.947 infectados e 747 óbitos de profissionais de enfermagem (COREN, 2021). O trabalho em enfermagem é conduzido em fluxo tensionado, isto é, de forma reativa (just in time), com cobrança desproporcional sobre os profissionais, que intensifica o processo de trabalho e retroalimenta a lógica de mercado capitalista (Souza, 2016). Somado ao receio de se contaminar com a Covid-19, os profissionais de enfermagem podem se afastar e não prestar cuidado centrado na pessoa. E, por acreditar que o direito à vida daqueles que estão sob seus cuidados é maior que o suposto direito às condições mínimas para realizar seu trabalho, ficam vulneráveis à Covid-19. Assim, os profissionais de enfermagem são expostos à violência provocada por pacientes e seus familiares, e para se protegerem, arriscam-se a distanciar-se da relação interpessoal, própria da profissão. Ademais, alguns profissionais sentem culpa por não estarem atuando junto aos pares na linha de frente dos cuidados, mas, mantêm-se firmes na polivalência, multifuncionalidade, flexibilidade e na aceitação de tudo. Enfrentando o processo de trabalho no momento pandêmico, os profissionais de enfermagem sofrem em função das transformações, readaptações e dos desgastes desencadeados pelos cenários de contaminação e óbitos no exercício do trabalho. Nessa direção, tem sua saúde mental fortemente afetada, com sofrimentos e prejuízos ao psiquismo e outras dimensões da vida. Nesse labirinto de emoções, expressam angústias, desestabilização emocional, dor, incertezas, preocupações, tensões, insatisfação, infelicidade, amedrontamentos, incertezas, tristeza e ansiedade. Todavia, preservam a fé para terem condições emocionais de enfrentar as circunstâncias geradoras desse sofrimento e tentam promover uma esperança realista entre os pares com vistas a abrir os horizontes para dias melhores, embora se sustentem na ciência em busca da cura para a doença. Considerando que a esperança é um processo dinâmico que orienta a pessoa para o futuro (Querido & Dixe, 2016), os profissionais resgatam vivências que advêm da construção histórica e social da profissão, pautada na resiliência, no fazer pelo próximo, no processo de trabalho de esforço e dedicação para sustentar o presente. Apesar de trazerem representações sociais de intenso sofrimento, expressam o valor da vida, de amor ao próximo, continuidade de missão e união, que proporcionam forças para continuarem na batalha e suportarem as adversidades, valores que estruturam e orientam a enfermagem enquanto prática social (Zoboli & Schveitzer, 2013), no presente e nos desafios para o futuro. Reforça-se o altruísmo da profissão que constitui um recurso efetivo para superarem a sua desvalorização e resgatarem a autoconfiança necessária nesse momento de pandemia. Mas, há de se ter atenção, porque em excesso, o altruísmo pode ser prejudicial e gerar culpa devido ao senso de responsabilidade pelo bem-estar do outro (Ricard, 2015). À vista disso, a sociedade levantou a bandeira do heroísmo para a profissão, como se estivesse resgatando seu histórico nas guerras a quem precisa de cuidados, e demonstra gratidão, satisfação e algum reconhecimento. Embora essa oferta, as representações sociais dos profissionais são que a sociedade não os reconhece com o devido valor. Tal fato acontece em função do lugar social que a profissão de enfermagem ocupa? Ressalta-se que, neste momento sócio-histórico da pandemia, os profissionais têm olhado para essas questões, e essas podem funcionar como uma tentativa de construir a consciência de classe, e gerar modificações na organização social e nas relações de trabalho para a profissão. Mas, para garantir melhores condições de trabalho e proteger a saúde mental dos profissionais, são necessárias intervenções sobre o modo de atuação (produção), que levem em consideração os determinantes sociais (Alegria, et al., 2018) que impactam a profissão como renda salarial (40,3% recebendo menos de um salário mínimo), quesito raça/cor (49,4% pretos e pardos), gênero (87,1% são mulheres) e a questão da carga excessiva de trabalho (67,2% acima de 40 horas semanais) conforme resultados do presente estudo, para minimizar o adoecimento. Partindo para a conclusão, as representações sociais dos profissionais de enfermagem do antes e no contexto pandêmico, são fotografias da realidade de uma categoria tomada como máquina de uma engrenagem e não constituída de sujeitos de direitos. Revela-se uma realidade que tem subtraído a possibilidade de os profissionais projetarem planos para o futuro e abre espaço para a produção do adoecimento mental. A produção desse conhecimento científico precisa ser transferida para o desenvolvimento de Políticas Públicas de trabalho e renda que promovam melhores condições de trabalho e saúde mental da categoria. Logo, é fundamental ampliar o debate sobre os desafios cotidianos da profissão para que seja possível potencializar o valor do seu trabalho, seu lugar de vanguarda e sua essencialidade nos sistemas de saúde, e que a Enfermagem não pode calar.
5.Considerações Finais
Com a opção do referencial teórico das Representações Sociais (RS), foi possível apreender que os profissionais de enfermagem residentes no Brasil, vinham realizando o trabalho de forma precarizada antes da pandemia da Covid-19, e em suas práticas não produziam grandes questionamentos. Com a pandemia e o risco de contaminação, os profissionais passaram a olhar a prática profissional mais de perto e sentiram medo das vivências naturalizadas e simplificadas frente ao não uso de equipamentos de proteção individual. Logo, compreenderam que cuidar do outro implica também cuidar de si. Este estudo também revela que os profissionais precisam ressignificar a construção social da profissão e constituir uma consciência de classe frente ao modo de produção no qual estão inseridos.