SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.13Experiencias de cuidado en las pérdidas del embarazo: Triangulación metodológica entre estudios meta-etnográficos y empírico índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


New Trends in Qualitative Research

versão On-line ISSN 2184-7770

NTQR vol.13  Oliveira de Azeméis set. 2022  Epub 08-Set-2022

https://doi.org/10.36367/ntqr.13.2022.e731 

Artigo original

Ser Enfermeiro Obstetra e Mediador Intercultural na interação com mulheres grávidas migrantes

Being an Obstetric Nurse and Intercultural Mediator in the interaction with migrant pregnant women

1Instituto Politécnico de Viseu, UICISA:E ESenfC-ESSV/IPV, Portugal

2Hospital Prof. Dr. Fernando Fonseca EPE, Portugal

3Escola Superior de Saúde de Santarém, IPSantarém, Portugal

4Escola Superior de Enfermagem do Porto, Portugal


Resumo:

Introdução: Num mundo progressivamente mais multicultural, na interação com a mulher migrante, o enfermeiro obstetra procura desenvolver estratégias de mediação intercultural para um cuidado culturalmente competente Objetivos Compreender o significado atribuído pelo enfermeiro obstetra às práticas de mediação intercultural durante a interação com a mulher grávida migrante. Métodos Estudo qualitativo, com recurso ao método fenomenológico-hermenêutico, tendo como instrumento de recolha de dados a entrevista fenomenológica. Aceitaram participar no estudo dez enfermeiros a exercerem funções no bloco de partos de um hospital da Grande Lisboa. Recorreu-se à análise qualitativa de dados, apoiada pelo Nvivo12. Este estudo insere-se no âmbito do projeto Mediadores Interculturais nas Unidades de Saúde - MEIOS - Mediação Intercultural e Outcomes em Saúde, desenvolvido pela Rede de Ensino Superior em Mediação Intercultural, promovido pelo Alto Comissariado para as Migrações, autorizado pela CNPD e Comissão de Ética da Instituição onde foi realizado o estudo; Resultados Emergem três categorias: Estratégias utilizadas pelo enfermeiro obstetra para se tornar mediador intercultural com destaque para: Consolidar o conhecimento cultural; a categoria Práticas do mediador intercultural percecionadas pelo enfermeiro obstetra com realce para: construir pontes entre os profissionais e as mulheres migrantes, possibilitar ao enfermeiro obstetra prestar melhores cuidados, conhecer a cultura da mulher migrante, permitir ao enfermeiro obstetra compreender as necessidades da mulher migrante e ajudar a mulher migrante a compreender os cuidados prestados; e, por fim, a categoria Dificuldades reconhecidas pelo enfermeiro obstetra para se tornar mediador intercultural com destaque para o défice de formação em relação à diversidade cultural e imigração Conclusões. Os enfermeiros reconhecem a importância de um mediador intercultural na maternidade. Contudo, deparam-se com dificuldades para o estabelecimento da interação, o que os leva a adotar estratégias de mediação intercultural para promover cuidados culturalmente congruentes, e melhor compreensão das necessidades da mulher migrante que se refletirá em maior qualidade de cuidados, saúde e bem-estar.

Palavras-chave: Enfermeiro obstetra; Mediador intercultural; Estratégias; Dificuldades.

Abstract:

Introduction: In an increasingly multicultural world, when interacting with immigrant women, the obstetric nurse seeks to develop intercultural mediation strategies for a culturally competent care Goals To understand the meaning attributed by obstetric nurses to intercultural mediation practices during interaction with migrant pregnant women; Methods Qualitative study, using the phenomenological-hermeneutic method, with phenomenological interviews as data collection instrument. Ten nurses working in the delivery room of a hospital in Greater Lisbon agreed to participate in the study. Qualitative data analysis was used, supported by Nvivo12. This study is part of the project Intercultural Mediators in Health Care Units - MEIOS - Intercultural Mediation and Health Outcomes, developed by the Higher Education Network in Intercultural Mediation, promoted by the High Commission for Migrations, authorized by the CNPD and the Ethics Committee of the Institution where the study was conducted; Results Three categories emerged: Strategies used by the obstetric nurse to become an intercultural mediator" with emphasis on: consolidate cultural knowledge; the category Practices of the intercultural mediator as perceived by obstetric nurses with emphasis on: building bridges between professionals and immigrant women, enabling the obstetric nurse to provide better care, knowing the immigrant woman's culture, enabling the obstetric nurse to understand the immigrant woman's needs, and helping immigrant women to understand the care provided; and, finally, the category Difficulties recognized by the obstetric nurse to become an intercultural mediator with emphasis on the lack of training in relation to cultural diversity and immigration Conclusions. Nurses recognize the importance of the functions of an intercultural mediator in the maternity ward. However, they encounter difficulties in establishing the interaction, which leads them to adopt intercultural mediation strategies to promote culturally congruent care, and better understanding of the immigrant women's needs which will be reflected in higher quality of care, health and well-being.

Keywords: Obstetric nurse; Intercultural mediator; Strategies; Functions; Difficulties.

1.Introdução

Em Portugal, a imigração tem tido uma evolução sistemática, tendo sido verificado um acréscimo da população estrangeira residente, com um aumento de 6,0% face a 2016, totalizando 421.711 cidadãos estrangeiros titulares de autorização de residência (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, 2017). Neste sentido, os imigrantes trazem contributos positivos para a demografia portuguesa, uma vez que continuam a desenvolver o volume de nascimentos em Portugal (Oliveira & Gomes, 2017). Com o aumento da população migrante, ser culturalmente competente é um desafio para as instituições de saúde e respetivos profissionais de saúde, para poderem prestar cuidados a esta população com características próprias. A migração, à priori, já é uma transformação significativa na vida da pessoa/família e quando se associa outra transformação, sendo exemplo a gravidez e o nascimento de um filho, a pessoa/família fica mais vulnerável (Becker, Borges & Crepaldi, 2017), sendo o papel do enfermeiro determinante para que os mesmos consigam fazer uma transição saudável (Meleis, 2010). Leininger (2001, 2006) desenvolveu o modelo sunrise, da universalidade e diversidade culturais, o qual assume grande importância de entre as conceções de enfermagem. A autora propõe aos enfermeiros a adoção de modelos de competência cultural orientadores do pensamento critico e a tomada de decisão, no processo de cuidar permitindo-lhes responder às necessidades culturais dos clientes, alvo dos seus cuidados. Neste sentido, a formação e a intervenção do enfermeiro, mais especificamente do enfermeiro obstetra, é fundamental, sendo crucial compreender a pessoa/família migrante, as suas crenças e valores, como ser cultural, de forma a lhe poder prestar um cuidado culturalmente sensível como também preconiza a Ordem dos Enfermeiros Portugueses (Portugal, 2019, p.13565). Num estudo qualitativo cujo objetivo consistiu em criar um referencial teórico descritivo sobre as experiências das competências culturais de 30 enfermeiros, em Taiwan, ficou demonstrado que a maioria dos enfermeiros se encontrava despreparada para lidar com as diferentes culturas dos utentes, apesar de terem consciência da importância das diferenças de valores. Os enfermeiros revelaram que tiveram dificuldade em implementar o seu trabalho num contexto culturalmente tão divergente e em procurar recursos que representassem situações em que as características comportamentais melhorassem as suas competências culturais. No global, os enfermeiros que geriram diferentes situações culturais acabaram por aprender sobre as diferentes culturas e a proporcionar aos utentes cuidados culturalmente sensíveis, traduzindo-se num aumento da qualidade do atendimento (Lin, Wu & Hsu, 2019). É nesse sentido que se objetiva compreender o significado atribuído pelo enfermeiro obstetra às interações e estratégias de mediação intercultural com a mulher grávida migrante.

2.Métodos

O presente estudo é descritivo e exploratório, de natureza qualitativa com enfoque fenomenológico- hermenêutico, centrado na experiência vivida, como proposto por Van Manen (2014, 2015), em que se procurou dar resposta à questão de investigação “Qual o significado atribuído pelo enfermeiro obstetra às práticas de mediação intercultural durante a interação com a mulher grávida migrante?” Segundo este autor a fenomenologia hermenêutica é definida como um método de reflexão isenta de juízos de valor sobre as estruturas da experiência vivida da existência humana (Van Manen, 2014). A pesquisa fenomenológica tem como objetivo distinguir entre a aparência e os fatores essenciais, de tal forma que o investigador tenta compreender em que constitui o fenómeno e a experiência vivida em questão. Deste modo, assume-se que a reflexão e a escrita são duas atividades distintas que são difíceis de separar e que, através de ambas, se pretende descobrir e revelar a essência da experiência vivida (Van Manen, 2015). Trata-se de uma forma de pesquisa orientada para a descoberta de significados expressos por um sujeito sobre a sua experiência. A abordagem fenomenológica hermenêutica valoriza a interpretação e a compreensão da experiência humana, sem se restringir unicamente à sua descrição, sendo esta uma maneira de aceder aos fenómenos de interesse para a Enfermagem (Errasti-Ibarrondo, Díez-Del-Corral, Jordán, & Arantzamendi, 2019), o que constituiu um método apropriado para estudar o fenómeno: práticas de mediação intercultural durante a interação com a mulher grávida migrante Tendo-se em consideração o objetivo do estudo, aplicou-se a entrevista fenomenológica como forma de recolher a experiência vivida sobre o fenómeno. Para além de alguns breves dados de caracterização o decorrer da entrevista foi guiado pelas perguntas orientadoras: Fale-me da sua experiência de interação com mulheres grávidas migrantes? Que estratégias utilizou durante a interação? Como foi a sua experiência com os mediadores interculturais, no contexto de maternidade a trabalharem em parceria consigo? Este estudo, inseriu-se num estudo mais alargado denominado Mediação Intercultural e Outcomes em Saúde (MEiOS), desenvolvido pela Rede de Ensino Superior em Mediação Intercultural, promovido pelo Alto Comissariado para as Migrações, que foi autorizado pela Comissão Nacional de Proteção de Dados e obtido consentimento por parte da Comissão de Ética da Instituição onde foi realizado o estudo. As entrevistas foram realizadas por uma investigadora, tendo a colheita de dados decorrido entre setembro e dezembro de 2018. O estudo contou com a participação de dez informantes, oito enfermeiras e dois enfermeiros, a exercer funções no serviço de bloco de partos, de um hospital da Grande Lisboa, que depois de convidados a participar no estudo, aceitaram, em função da sua disponibilidade, a realização e gravação das entrevistas fenomenológicas, num local reservado para o efeito. Foram respeitados os princípios éticos, tendo sido obtido o consentimento informado escrito, de cada participante, após o esclarecimento sobre o objetivo do estudo, da proteção do anonimato e a possibilidade de cancelar a sua colaboração em qualquer momento do estudo. De forma a respeitar a privacidade dos participantes foram atribuídos códigos às entrevistas atribuindo a letra E (de enfermeiro) e um número de acordo com a ordem das entrevistas, (exemplo da codificação da primeira enfermeira a ser entrevistada - E1). Conhecendo os participantes, oito enfermeiros são do sexo feminino e dois do sexo masculino, com uma média de idades de 40,8 anos. Dos dez enfermeiros, oito são de nacionalidade portuguesa, uma de nacionalidade angolana e outra brasileira. No que diz respeito à formação académica, oito enfermeiros possuem o Curso de Pós-Licenciatura de Especialização em Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica e dois têm o Mestrado em Enfermagem em Saúde Materna e Obstétrica. Tendo em conta o objetivo do estudo e a problemática exposta anteriormente recorreu-se à análise fenomenológica, a qual foi apoiada pelo Nvivo® versão 12. A análise fenomenológica, assente na fenomenologia hermenêutica, foca-se na experiência vivida, e preocupa-se com o sentido dessa mesma experiência, muito para além da mera descrição do acontecimento e do contexto em que o mesmo ocorreu. Procura obter o sentido dessa vivência para quem a vive, do modo como se vê a si e aos outros enquanto ser no mundo. Não se trata, portanto, de obter a opinião ou as considerações que cada um possa fazer sobre acontecimentos do seu dia-a-dia, ou da ideia que se tem deles, trata-se de compreender profundamente o sentido que cada um deu à vivência dessa experiência (Van Manen, 2014, 2015). Captar a experiência vivida no quotidiano da pessoa, e obter o sentido dessa vivência, à margem das ideias prévias sobre o acontecimento, e da ideia que temos dele, ou da forma como o classificamos mentalmente (Fuster-Guillen, 2019). O Nvivo® é uma das aplicações empregues na análise de discurso. Esta aplicação possibilita que se organize, classifique, ordene, examinem relações e que se possam fazer combinações da análise fenomenológica daí decorrente.

3.Resultados

Para dar resposta à questão de investigação “Qual o significado atribuído pelo enfermeiro obstetra às práticas de mediação intercultural durante a interação com a mulher grávida migrante?” e ao objetivo Compreender o significado atribuído pelo enfermeiro obstetra às práticas de mediação intercultural durante a interação com a mulher grávida migrante. Apresentam-se três categorias de dados emergentes: Estratégias utilizadas pelo Enfermeiro Obstetra para se tornar mediador intercultural, Práticas do mediador intercultural percecionadas pelo enfermeiro obstetra, e Dificuldades reconhecidas pelo Enfermeiro Obstetra para se tornar mediador intercultural. A categoria “Estratégias utilizadas pelo Enfermeiro Obstetra para se tornar mediador intercultural” é constituída por quatro subcategorias: “Consolidar o conhecimento cultural”, “Mobilizar competências adquiridas ao longo da vida profissional”, “Organização e frequência de atividades de Formação em serviço”, “Investir na formação do Enfermeiro Obstetra que trabalha na comunidade”, sendo o “Consolidar o conhecimento cultural” a estratégia mais referida pelos participantes, com nove referenciações e 19 unidades de registo, como apresentado no quadro 1.

Quadro 1 Estratégias utilizadas pelo Enfermeiro Obstetra para se tornar mediador intercultural 

3.1 Consolidar o conhecimento cultural

Em resposta às necessidades sentidas pela população migrante, diversa e com plural, em contexto de maternidade, os enfermeiros utilizaram diferentes estratégias para de mediação intercultural durante interação e fora dela, procurando formação e conhecendo as culturas e hábitos culturais das pessoas alvo dos seus cuidados, como salientam alguns testemunhos.

“Através de uma formação que nos capacitasse para tal” (E2).

“Conhecer as diversas culturas que nos procuram e os seus hábitos, acho que passaria muito por isso, conhecer as culturas, as expectativas e sobretudo o mais dirigido possível para a área da maternidade” (E2).

“Em relação às estratégias, primeiro a autoformação” (E10).

Os enfermeiros também procuraram mobilizar competências adquiridas ao longo da vida profissional como estratégia de suporte à interação.

“Através [das competências adquiridas] da nossa prática do dia-a-dia” (E2).

“As especificidades das culturas vai-se adquirindo, ao longo do tempo a gente vai percebendo que há ali especificidades num determinado contexto da cultura... e depois é adaptar um bocadinho também a cada situação” (E5).

A necessidade de organização e frequência de atividades de formação em serviço também foi uma estratégia utilizada pelo Enfermeiro Obstetra para se tornar mediador intercultural.

“Fazer-se formações sobre as culturas que confluem mais aqui no serviço” (E5).

“Não me lembro assim de nenhum sítio onde possamos fazer assim esta formação a não ser formação em serviço” (E10).

“Sensibilizar também os pares na formação em serviço para sermos mais pessoas despertas para esta realidade e para esta necessidade” (E10).

3.2 Investir na formação do Enfermeiro Obstetra que trabalha na comunidade

“Acho que os conteúdos formativos deveriam ser muito na comunidade e não no hospital que tem um internamento muito rápido de dois ou três dias, mas sim o antes e depois na comunidade” (E1).

A categoria “Práticas do mediador intercultural percecionadas pelo Enfermeiro Obstetra” é constituída por cinco subcategorias, “Construir pontes entre os profissionais e as mulheres migrantes”, “Possibilitar ao Enfermeiro Obstetra prestar melhores cuidados”, “Conhecer a cultura da mulher migrante”, “Permitir ao Enfermeiro Obstetra compreender as necessidades da mulher migrante”, “Ajudar a mulher migrante a compreender os cuidados prestados”. Construir pontes entre os profissionais e as mulheres migrantes e, possibilitar ao Enfermeiro Obstetra prestar melhores cuidados, foram as práticas do mediador intercultural percecionadas pelo Enfermeiro Obstetra mais referenciadas pelos participantes, com oito e sete referências respetivamente, como apresentado no quadro 2.

Quadro 2 Práticas do mediador intercultural percecionadas pelo Enfermeiro Obstetra 

3.3 Construir pontes entre os profissionais e as mulheres migrantes

“Será uma ponte entre os cuidados e portanto... e as características daquela família em termos culturais” (E3).

“Penso que será supostamente a pessoa... haver um elemento ou uma pessoa que funcione como mediador quando chega uma pessoa junto a nós que tem uma cultura completamente diferente e que essa pessoa conheça quais são as crenças, qual é a normalidade dessa cultura e que possa intervir” (E4).

Possibilitar ao Enfermeiro Obstetra prestar melhores cuidados

“Se eu conseguir perceber o que aquela mulher precisa naquele momento, consigo prestar mais um cuidado direcionado à necessidade” (E1).

“Aquilo que o mediador me poderia dar a mim enquanto Enfermeiro Obstetra, enquanto prestadora de cuidados era alguma informação, algum contributo para que os meus cuidados fossem melhores” (E3).

“Para mim seria excelente [a presença de mediadores interculturais na maternidade] no sentido em que possivelmente algumas dessas barreiras seriam ultrapassadas” (E3).

3.4 Conhecer a cultura da mulher migrante

“Alguém que conseguisse falar e explicar melhor o que se estava a passar” (E2).

“Uma pessoa que soubesse lidar melhor com a cultura e soubesse dar resposta da pessoa” (E4).

Permitir ao Enfermeiro Obstetra compreender as necessidades da mulher migrante

“Significa realmente tentar perceber quais são os desejos e as expectativas das nossas parturientes e fazer com que elas sejam atendidas” (E2).

“A influência para mim desde que seja realmente, portanto um mediador cultural na sua verdadeira... na verdadeira acessão da palavra é um elemento facilitador e que contribui de uma forma muito positiva para o entendimento entre o prestador de cuidados e o alvo, a utente” (E7).

3.5 Ajudar a mulher migrante a compreender os cuidados prestados

“É a transmissão de informação culturalmente pertinente para compreensão, por exemplo no contexto da saúde, para se compreender os procedimentos a realizar, para se validar esses consentimentos para os procedimentos” (E10).

“A pessoa possa compreender os cuidados prestados [através da ajuda do mediador intercultural]” (E10).

A categoria “Dificuldades reconhecidas pelo Enfermeiro Obstetra para se tornar mediador intercultural” é constituída por três subcategorias: “Défice de formação em relação à diversidade cultural e imigração”, “Défice de conhecimentos sobre as técnicas da mediação cultural”, “Desmotivação”, sendo a mais referenciada “Défice de formação em relação à diversidade cultural e imigração”, referenciada quatro vezes e com 12 unidades de registo como apresentado no quadro 3.

Quadro 3 Dificuldades reconhecidas pelo Enfermeiro Obstetra para se tornar mediador intercultural 

3.6 Défice de formação em relação à diversidade cultural e imigração

“Mediação intercultural supostamente é uma competência que nos é pedida embora não nos seja ensinada nem treinada em momento algum, pelo menos que eu me lembre” (E2).

“Sinto que não tenho as competências que deveria ter para o fazer” (E2)

“Eu não me lembro, tirando trabalhos académicos, nunca tivemos nada na área de mediação intercultural que nos desse essas ferramentas para podermos utilizar” (E2).

“Poderia tornar-me num mediador se de facto tivesse formação para isso” (E10).

3.7 Défice de conhecimentos sobre as técnicas da mediação cultural

“Nunca tinha ouvido... a questão da mediação intercultural” (E4).

3.8 Desmotivação

“Mas, isso [o panfleto] ficou na gaveta da chefe” (E6).

“Foi o meu contributo e realmente com esse estímulo não tem vontade de continuar” (E6).

4.Discussão

Neste estudo, a categoria “Estratégias utilizadas pelo Enfermeiro Obstetra para se tornar mediador intercultural” é constituída por quatro subcategorias: “Consolidar o conhecimento cultural”, “Mobilizar competências adquiridas ao longo da vida profissional”, “Organização e frequência de atividades de Formação em serviço”, “Investir na formação do Enfermeiro Obstetra que trabalha na comunidade”, sendo a mais evidente “Consolidar o conhecimento cultural”, com nove referenciações e 19 unidades de registo. Num mundo em inovação ininterrupta e transformações constantes, a capacidade de reconhecer e abraçar a diversidade cultural é de extrema importância para todos, mas principalmente ao nível da prática dos cuidados de enfermagem, uma vez que os enfermeiros, inevitavelmente, estão em contacto com pessoas de todas as esferas da vida social e cultural como refere Betancourt (2016). Leininger entende que os enfermeiros precisam de compreender as pessoas na sua diversidade cultural, com os seus princípios, crenças e padrões de cuidado específicos, os quais afetam a qualidade do cuidado, sendo necessário o estabelecimento de pontes entre o enfermeiro e o cliente (Leininger, 2001, 2006), como foi referido pelos enfermeiros a respeito da categoria “Práticas do mediador intercultural percecionadas pelo Enfermeiro Obstetra”, constituída por cinco subcategorias, onde sobressai “Construir pontes entre os profissionais e as mulheres migrantes”, “Possibilitar ao Enfermeiro Obstetra prestar melhores cuidados”, “Conhecer a cultura da mulher migrante”, “Permitir ao Enfermeiro Obstetra compreender as necessidades da mulher migrante”, “Ajudar a mulher migrante a compreender os cuidados prestados”. As categorias mais referenciadas são: “Construir pontes entre os profissionais e as mulheres migrantes”, com oito referências e 14 unidades de registo; “Possibilitar ao Enfermeiro Obstetra prestar melhores cuidados”, referenciada por sete enfermeiros, com 13 unidades de registo. Na perspetiva de Coutinho, Parreira, Martins, Chaves e Nelas (2017), as práticas culturais ligadas à maternidade requerem um profundo conhecimento e respeito por cada mulher e pelo que consideram fazer sentido na sua experiência de ser mãe, o que justifica a necessidade da mediação intercultural. Num outro estudo (Coutinho, Parreira, Martins, Chaves & Nelas, 2017), as autoras constaram que, embora na sua prática clínica em obstetrícia, os enfermeiros por vezes exerçam práticas de mediação intercultural informal, estes necessitam de treino em mediação intercultural, o que também é evidente nas opiniões dos enfermeiros do presente estudo, sendo que Coutinho, Rodrigues, Carvalho e Parreira (2018) referem que o processo de Competência Cultural centrado no cliente implica que no contexto dos cuidados de enfermagem o profissional assuma a centralidade das suas intervenções. A categoria “Dificuldades reconhecidas pelo Enfermeiro Obstetra para se tornar mediador intercultural” é constituída por três subcategorias. A subcategoria mais referenciada pelos enfermeiros foi: “Défice de formação em relação à diversidade cultural e imigração”, com quatro unidades de registo. A subcategoria “Défice de conhecimentos sobre as técnicas da mediação cultural” apresenta uma unidade de registo. A subcategoria “Desmotivação” foi referenciada por um enfermeiro, com três unidades de registo. Coutinho et al. (2018, p. 69) referem que “a crescente diversidade cultural a que se tem assistido com um maior fluxo migratório e a exigência de uma resposta mais efetiva às necessidades de saúde, identificadas nas comunidades que assumem estas características, fizeram emergir distintos modelos de prestação de cuidados”, o que implica proporcionar-se mais formação aos enfermeiros. Também Coutinho et al. (2018), tendo em conta Pagliuca e Maia (2012, p. 852), salientam que “as intervenções de enfermagem baseadas na autoavaliação das competências é uma estratégia que visa o cuidado culturalmente competente, através da análise de atitudes, valores e convicções que influenciam a prática e permitem produzir habilidades necessárias para o cuidado de enfermagem transcultural. O desafio da enfermagem é, como salientam Coutinho, Rodrigues, Carvalho e Parreira (2018) providenciar cuidados em consonância com os valores culturais dos clientes. Nos últimos anos, Portugal transformou-se numa sociedade multicultural e a mediação intercultural é a ponte entre as pessoas de diferentes contextos socioculturais, garantindo- se direitos humanos fundamentais. O cuidado culturalmente competente requer uma abordagem culturalmente sensível que aceite as diversidades e reconheça as peculiaridades de cada cliente. Dada a influência significativa da atitude multicultural positiva na sensibilidade cultural e o efeito mediador significativo da autoeficácia do enfermeiro entre estas duas variáveis, as estratégias para cultivar uma atitude multicultural positiva e aumentar a autoeficácia do cuidado culturalmente competente devem ser consideradas em programas de formação (Suk, Oak, Im & Cho, 2015). O cuidar em enfermagem com pessoas culturalmente diferentes pressupõe a mediação cultural no cuidar. O recurso a mediadores culturais assume-se, assim, como importante estratégia para ultrapassar constrangimentos durante a prestação de cuidados, nomeadamente ao nível da comunicação, mas particularmente no respeito por crenças, valores religiosos e culturais dos clientes e suas famílias (Coutinho, Parreira, Martins, Chaves & Nelas, 2017). Para Coutinho (2016) as dificuldades comunicacionais repercutem-se nos constrangimentos culturais sendo que a informação, o conhecimento cultural e ou a presença de um intérprete conhecedor da língua, mas a presença também de um mediador intercultural, conhecedor da cultura, crenças e valores, são aspetos centrais que contribuem para o conhecimento dessa realidade sociocultural e de um cuidar culturalmente sensível. A autora, defende que num mundo cada vez mais global, em que as pessoas se deslocam massivamente à procura de melhores condições de vida, ou mesmo para fugir da guerra, carregam consigo costumes, práticas e ritos culturais próprios, muitos dos quais desconhecidos para os profissionais de saúde, sendo que a presença de um mediador intercultural pode constituir-se como uma solução estratégica recomendável em mediação intercultural preventiva, tornando comum entre as partes o significado cultural atribuído. No estudo de Reynolds e Manfusa (2005), com uma amostra de 29 enfermeiros especialistas em saúde materna e obstétrica, ficou registado que só 31% manifestaram satisfação em relação à sua formação em assuntos culturais, o que implica que haja mais formação acerca do cuidar intercultural, começando pela formação pré-graduada e formação contínua, para que se possa otimizar a competência cultural dos enfermeiros que intervêm diretamente em mulheres migrantes. Por outro lado, os mesmos autores consideram ser importante o contacto dos enfermeiros com as comunidades migrantes e/ou outras instituições, com a finalidade de compreender as necessidades reais desse grupo cultural diferente. Para Campinha-Bacote (2011) dispor de mediadores interculturais, significa a consolidação da consciência cultural, do conhecimento cultural, da capacidade cultural, do encontro cultural e do desejo cultural. É de ressalvar ainda que, em conformidade com a Ordem dos Enfermeiros (2015), a tomada de decisão que orienta o exercício autónomo dos enfermeiros obstetras agrega, para além das evidências científicas, o respeito pelas singularidades de cada mulher (Ordem dos Enfermeiros, 2015). Assim, o enfermeiro, como mediador intercultural, deverá asseverar as suas competências para que possa prestar cuidados congruentes e contextualizados, numa interação empática com a mulher migrante. Abre-se ainda um campo de investigação, porquanto a enfermagem transcultural é um campo da prática culturalmente competente centrada no cliente em função das suas diferenças e similaridades, das suas crenças, valores e padrões culturais (Niina, Maija & Helena, 2015). Como referem Reis et al (2020) é inegável a necessidade de formação por parte dos enfermeiros neste domínio. Considerando os resultados do nosso estudo e o confronto com outros autores, é enfatizada, por um lado, a necessidade de mais formação em mediação intercultural por parte dos enfermeiros, mas também de um mediador intercultural com formação específica.

5.Considerações Finais

Os enfermeiros reconhecem a necessidade e importância de um mediador intercultural na maternidade. Contudo, e devido à sua inexistência, muitas vezes acabam por serem, eles próprios, os mediadores interculturais ainda que informais. Consideram também que não têm os conhecimentos e as competências necessárias para tal, sendo indispensável a adoção de estratégias como consolidar o conhecimento cultural e mobilizar as competências adquiridas ao longo da vida profissional. Neste sentido, e com base nos resultados obtidos sugere-se a presença de mediadores interculturais nas instituições de saúde e um maior investimento na formação e autoformação dos enfermeiros, o que permitirá o desenvolvimento da consciência cultural e do conhecimento cultural, dois componentes fundamentais no desenvolvimento da competência cultural. Deste modo, as instituições de saúde, bem como as instituições de ensino, como as escolas de enfermagem, devem oferecer aos enfermeiros programas de formação e atualização em enfermagem transcultural, envolvendo-se em desenhos de investigação que contribuam para uma maior clarificação do fenómeno, nomeadamente sobre as competências a serem desenvolvidas pelos diferentes intervenientes, contribuindo para o desenvolvimento da competência cultural dos mesmos e para assegurar a qualidade dos cuidados fornecidos às populações, cada vez mais diversas.

6.Referências

Becker, A.P.S., Borges, L.M., & Crepaldi, M.A. (2017). Imigração e dinâmica familiar: uma revisão teórica. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 23, 1, 160-181. Acedido em http://pepsic.bvsalud.org/pdf/per/v23n1/v23n1a10.pdfLinks ]

Betancourt, D.A.B. (2016). Madeleine Leininger and the Transcultural Theory of Nursing. The Downtown Review; Vol. 2, 1, 1-7. Acedido em https://engagedscholarship.csuohio.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1020&context=tdrLinks ]

Campinha-Bacote, J. (2011). Delivering Patient-Centered Care in the Midst of a Cultural Conflict: The Role of Cultural Competence. OJIN: The Online Journal of Issues in Nursing 16(2), Manuscript 5. doi: 10.3912/OJIN.Vol16No02Man05. [ Links ]

Coutinho, E.C. (2016). Vigilância de gravidez em mulheres imigrantes e portuguesas e as razões que justificam a necessidade de mediação intercultural. In Alto Comissariado para as Migrações (Coord.), Entre iguais e diferentes: A mediação intercultural: Atas das I Jornadas da Rede de Ensino Superior para a Mediação Intercultural (Vol. Coleção Mediação Intercultural, pp. 158-174). Lisboa: ACM. [ Links ]

Coutinho, E.C.; Rodrigues, E.C., Carvalho, A.C., & Parreira, V.C. (2018). A competência cultural em enfermagem e a Mediação Intercultural preventiva. Revista Migrações - Número Temático Mediação Intercultural, Observatório das Migrações (OM), 15, Lisboa: ACM , pp. 66-81. Acedido em https://www.om.acm.gov.pt/documents/58428/709083/PAG_66-81_EMILIA+COUTINHO.PDF/614bbf39- c81b-4961-8086-8cdeb7623600Links ]

Coutinho, E.P. Parreira, V., Martins, B., Chaves, CL., & Nelas, P. (2017). The Informal Intercultural Mediator Nurse in Obstetrics Care. In Costa, A.P. et al. Computer Supported Qualitative Research. Vol 71, Springer (pp. 63-75). [ Links ]

Errasti-Ibarrondo, B.E., Díez-Del-Corral, M.P., Jordán, J.A., & Arantzamendi, M. (2019). van Manen’s phenomenology of practice: How can it contribute to nursing? Nursing Inquiry; 26, 2-10. DOI: 10.1111/nin.12259. [ Links ]

Fuster-Guillen, D. E. (2019). Investigación cualitativa: Método fenomenológico hermenéutico. Propósitos y Representaciones, 7(1), 201. https://doi.org/10.20511/pyr2019.v7n1.267 [ Links ]

Leininger, M. (2001). Culture care diversity and universality: A theory of nursing. New York: National League for Nursing Press. [ Links ]

Leininger, M., & McFarland, M. (2006). Culture Care Diversity and Universality. A Worldwide Nursing Theory (2 ed.). Jones and Bartlett Publishers. http://www.google.pt/books?hl=en&lr=&id=NmY43MysbxIC&oi=fnd&pg=PR5&dq=LEININGER+e+Mc FARLAND+(2006)&ots=Jjdmnc47bY&sig=bAxdCNxbZrBJ5cVPITK8K2nXYRo&redir_esc=y#v=onepage&q =LEININGER%20e%20McFARLAND%20(2006)&f=false,https://books.google.pt/books?hl=pt- PT&lr=&id=NmY43MysbxIC&oi=fnd&pg=PR5&ots=Jkcqjd157W&sig=zhoFZIxLwnJnANHbS5Jh6ccWesg &redir_esc=y#v=onepage&q&f=falseLinks ]

Lin, M.H., Wu, C-Y., & Hsu, H.C. (2019). Exploring the experiences of cultural competence among clinical nurses in Taiwan. Applied Nursing Research, 45, 6-11. Acedido em https://reader.elsevier.com/reader/sd/pii/S089718971830394X?token=2751B5FB00163E7688D00F360996F2 A852FFC3E8FD824E74F704DB693CE2BB7DDF08F38356CBBF299F3DA58F5339B373Links ]

Meleis, A. I. (2010). Transitions Theory Middle-Range and Situation-Specific Theories in Nursing Research and Practice (A. I. Meleis, Ed.). Springer Publishing Company. [ Links ]

Niina, E., Maija, H., & Helena L. (2015). Nurses’ perceptions of working with immigrant patients and interpreters in Finland. University of Turku, Finland. Acedido em: https://janet.finna.fi, CINAHL. [ Links ]

Oliveira, C.R. (Coord.), & Gomes, N. (2017). Indicadores de integração de imigrantes: relatório estatístico anual 2017. 1ª ed. (Imigração em Números - Relatórios Anuais 2) ISBN 978-989-685-089-0 [ Links ]

Ordem dos Enfermeiros. (2015). Livro de Bolso: Enfermeiros Especialistas em Saúde Materna e Obstétrica/ parteiras. Lisboa. Ordem dos Enfermeiros [ Links ]

Regulamento nº 391/2019. Regulamento das competências específicas do enfermeiro especialista em enfermagem de saúde materna e obstétrica, 13560 (2019). [ Links ]

Reis, A., Spínola, A., Chaves, C., Santiago, C., Coutinho, E., Karimo, N., & Dénis, T. (2020). Mediação Intercultural em Contextos de Cuidados de Saúde-Projeto MEiOS. Revista UIIPS, 8(1), 3-16. https://doi.org/https://doi.org/10.25746/ruiips.v8.i1.19873 [ Links ]

Reynolds, F.; Manfusa, S (2005) - Views on cultural barriers to caring for South Asian women. British Journal of Midwifery. 13(4): 236-242. London. ISSN 0969-4900. [ Links ]

Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (2017). Relatório de Imigração, Fronteiras e Asilo. Acedido em https://sefstat.sef.pt/Docs/Rifa2017.pdfLinks ]

Suk, M.H., Oak Oh, W., Im, Y.J., & Cho, H.H. (2015). Mediating Effect of School Nurses' Self Efficacy between Multicultural Attitude and Cultural Sensitivity in Korean Elementary Schools. Asian Nursing Research; 9, 194- 199. Acedido em https://reader.elsevier.com/reader/sd/pii/S1976131715000067?token=4D6B21A8DF688186FC834D3DB40FA 264D899307773FD1F7D405EFB87C88458EEFF4CBABA0EEFDFD061F17A49D7C2BA9CLinks ]

Van Manen, M. (2014). Phenomenology of practice: Meaning-giving methods in phenomenological research and writing. Walnut Creek, CA: Left Coast Press. [ Links ]

Van Manen, M. (2015). Researching lived experience: Human science for an action sensitive pedagogy, 2nd ed. Walnut Creek, CA: Left Coast Press [ Links ]

Recebido: 01 de Fevereiro de 2022; Aceito: 01 de Abril de 2022

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons