1.Introdução
Compreender aspectos que perpassam a história de vida das pessoas em suas relações interpessoais e com o contexto sócio organizacional está nos meandros do método da pesquisa qualitativa, que estimula o olhar sobre as humanidades e sobre a realidade socialmente construída. A História de vida se relaciona ao relatar a si mesmo a partir da relação do indivíduo com o grupo e a sociedade, no ato de inscrever sua experiência na temporalidade. Entre essas experiências de vida que constituem a subjetividade das pessoas, estão as vivências relacionadas a identidade, expressão de gênero e a sexualidade (Butler, 2017, 2019; Delory-Momberger, 2012, 2016). Apreender a vivência de gênero (o fazer e desfazer de gênero) e de sexualidade nas histórias de vida é uma forma de relacionar o relato de si a identidade do indivíduo e a sua performatividade de gênero fluída e transformacional, livre de determinismos, fixidez e significados essencialistas inscritos. Assim como é uma forma de relacionar também ao seu desejo sexual, independente da linearidade esperada para os corpos, segundo o ideal normativo heterossexual em uma cadeia de continuidade entre sexo, gênero, desejo e prática sexual. Para além disso, é perceber na narrativa como o convívio grupal e social influência nas performatividade de gênero, na reiteração repetida ou não das normas sociais, tendo em vista que o gênero não é próprio de cada um, mas feito e desfeito continuamente (Butler, 2019; Chaves & Souza, 2019). No relato das experiências de vida, a força política da Teoria Queer pode possibilitar a desestabilização das identidades essencializadas sob o padrão hétero-cis-normativo, o que ecoa no contexto organizacional ao generificar os cargos e as ocupações, no qual o gênero e a sexualidade limitam o acesso a determinados cargos, assim como impõe o cargo a ser seguido pela pessoa. É como se a performatividade de gênero e a orientação sexual conferissem autorização para ocupação de determinado cargo, como uma hierarquia de valor pautada em interdições e divisões sociais. Com isso, a força da Teoria Queer pode auxiliar a contestação política coletiva, a fim de possibilitar o questionamento das identidades hegemônicas naturalizadas como padrão e normais. Desse modo, ela expõe relações de poder no contexo sócio organizacional (Butler, 2019; Chaves & Souza, 2019; Marinho, 2021; Rumens, Souza & Brewis, 2019; Souza, 2017). Tendo em vista essas questões, é que este estudo tem como objetivo compreender o enfoque teórico- metodológico da história de vida à luz da Teoria queer e suas contribuições para os Estudos Organizacionais. Para tal, a pergunta de pesquisa é a seguinte: como as pesquisas qualitativas biográficas podem se apropriar de elementos da Teoria queer para expandir os seus debates no campo dos Estudos Organizacionais? O interesse deste debate não é apenas teórico, é político também, considerando as contribuições possíveis a partir das reflexões sobre a história de vida, que permitem o olhar sobre si e sobre o outro em todos os espaços sociais pelos quais circulam (muito além das organizações) e que interferem na construção da coletividade em busca de uma sociedade mais decente. Este estudo se justifica devido ser necessário aprofundar as discussões sobre a história de vida, a fim de avançar o campo das metodologias de pesquisa qualitativa nos Estudos Organizacionais, considerando a escassez da sistematização desse conhecimento à luz da Teoria Queer. Essa investigação embasou-se em uma abordagem de revisão teórico a partir de artigos nacionais e internacionais associados ao tema e em autores como Butler (2017, 2019), Delory-Momberger (2012, 2016), Ferraroti (2007) e Ricoeur (2011). Em termos de estrutura, inicialmente discute-se questões concernentes ao enfoque téorico-metodologico da história de vida para os Estudos Organizacionais. Posteriormente, aprofunda-se nas discussões sobre história de vida à luz da Teoria Queer destacando elementos centrais ao incremento das metodologias de pesquisas qualitativas no campo dos Estudos Organizacionais. Contribuindo assim, para o papel político das estratégias de coleta de dados nas pesquisas qualitativas. Por fim, apresenta-se as considerações finais com as contribuições do estudo e os novos caminhos reflexivos para os estudos futuros.
2.História de vida e os Estudos Organizacionais
A pesquisa qualitativa por meio do recolhimento das narrativas de história de vida iniciou em meados do início do século XX, com os estudos da Escola de Chicago nos Estados Unidos. Em avanço epistemológico a partir de 1970, os relatos biográficos para além de considerar o indivíduo, passaram a analisar sociologicamente os grupos, para compreender suas realidades sociais e históricas com uma significação mais ampla. Os trabalhos de Franco Ferraroti na Itália e Daniel Berteaux na França ofereceram um novo folego aos estudos, buscando a articulação entre o social e o psicológico a partir da trajetória social individual (Colling & Oltramari, 2019; Colomby et al., 2016; Silva et al., 2007). As pesquisas qualitativas biográficas revelam “que por mais individual que seja uma história, ela é sempre, ainda, coletiva, mostrando também o quão genérica é a trajetória do ser humano” (Silva et al., 2007, p. 34). A narrativa na história de vida para além do relato individual está relacionada com a vida coletiva de um grupo, organização ou comunidade, considerando a vida como uma produção ampla que contempla questões morais, ética, política, econômica, entre outros âmbitos (Butler, 2017; Denzin, 1989). A narrativa é o lugar onde a existência do indivíduo toma forma de história (Delory-Momberger, 2012). Delory-Momberger (2012) inspirada em Shapp (1992), questiona se há vida humana fora da narrativa. A autora pontua que essa interrogação leva a “uma dupla abordagem: a de um dado constitutivo da experiência humana e a da variabilidade de suas manifestações na história e nas culturas” (Delory- Momberger, 2012, p. 37). A narrativa é essencial na constituição da experiência e da existência do indivíduo no contexto histórico cultural. Na visão de Delory-Momberger (2012, p.48), “não há vida sem narrativa porque não há humanidade senão na sociedade dos homens e, portanto, na história”, o que, por conseguinte, dispõe à narrativa o poder de inscrever os homens tanto na história como na cultura. Principalmente porque o indivíduo não é um dado, mas um processo social que implica historicidade no mundo (Ferrarotti, 2007). É nesse ínterim, que o indivíduo faz a experiência da sua vida e de si mesmo no tempo, mediatizada pela linguagem e suas formas simbólicas (Delory-Momberger, 2012). Segundo Barros (2012), as abordagens biográficas têm seu lugar privilegiado nas questões propostas por Ricoeur (2011), tendo em vista que ele reflete que a temporalidade e narratividade reforçam-se. Com base nos estudos de Ricoeur (2011), Barros (2012, p.7) afirma que “a narrativa é sempre constituída de uma trama que constitui seus diversos episódios e, além de ligá-los entre si, os coloca em relação com o enredo mais amplo, daí resultando uma totalidade significativa”. O resgate dessa trama - das experiências de vida - por meio das memórias contadas consideram entre outros fatores, as próprias falhas das memórias, a linguagem verbal e não-verbal, os silêncios e silenciamentos, os sentidos que o indivíduo dá para sua própria história, as condições objetivas, as experiências vividas, a maneira como as histórias são narradas e o como o indivíduo ao mesmo tempo modifica e é modificado pela realidade sócio histórica. Esses elementos dialogam como uma ponte entre o individual e o social (Colomby et al., 2016; Nogueira et al., 2017; Silva et al., 2007). Trabalhar com memória nas narrativas de história de vida é um processo que exige atenção e cuidado. A memória deve ser estimulada por inúmeros fatores para que o passado seja reivindicado (Ferrarotti, 2007). Para dar início a escuta do pesquisador por meio das entrevistas, parte-se da pergunta “conte-me sua história”, ou seja, “pede-se ao sujeito que conte sua história, como achar melhor - nos moldes de entrevista não-estruturada”. Essa é uma forma de se estabelecer uma interlocução (Silva et al., 2007). As entrevistas representam o momento de construção de saber compartilhado entre o pesquisador e o indivíduo pesquisado. A utilização de histórias de vida tem como princípio a relação de confiança entre entrevistador e entrevistado, exige regras metodológicas pré-estabelecidas, como renuncias e aceitações de princípios éticos importantes para a pesquisa (Ferrarotti, 2007). Do pesquisador, é requerido a existência de vínculo com o entrevistado e o compromisso com a realidade que se propõe apreender. Do entrevistado, é requerido que narre a sua história e os momentos importantes da sua vida de sua maneira própria, como achar melhor (Colomby et al., 2016; Nogueira et al., 2017; Silva et al., 2007). A entrevista na pesquisa qualitativa biográfica pode ser mais ampla, contemplando toda a vida do entrevistado ou pode ser mais restrita, envolvendo apenas parte dessa vida que esteja alinhada aos interesses da primordiais do estudo (Laville & Dionne, 1999). Após as entrevistas e transcrição de todo o material narrado, é que o pesquisador se debruçará sobre as análises das histórias de vida. Esse processo é rico para compreender como os indivíduos representam fenômenos, acontecimentos históricos, sociais ou culturais; e como passaram por eles, se o viveram de modo indiferente ou permitiram-se a uma participação mais ativa (Laville & Dionne, 1999). Nesse processo, o indivíduo não pode ser separado da sua história, cultura e coletividade para ser compreendido. A sua narrativa não pode ser isolada da prática social da qual faz parte. É no coletivo que a narrativa individual faz a diferença tanto para si como para a narrativa coletiva dos outros. Na análise das histórias de vida, não há imposição de procedimentos específicos. Segundo Mozzato, Colet e Grzybovski (2018), o procedimento básico é a identificação dos conteúdos ou tópicos mais frequentes que emergem do discurso dos indivíduos com maior frequência e, que serão agrupados em categorias de análise ou núcleos temáticos, para serem posteriormente interpretados à luz do referencial teórico. Nos estudos de abordagem qualitativa essa é uma importante estratégia, devido o significado simbólico que as pessoas atribuem aos fenômenos que vivem. Voltando-se para o campo dos Estudos Organizacionais, há escassez da sistematização do uso do conhecimento sobre o método de pesquisa qualitativo de histórias de vida (Closs & Antonello, 2011). Para Colomby et al. (2016) falta compreensão também das diversas possibilidades, tendo em vista que história de vida é mais do que metodologia, considerando o seu esforço de autorreflexão. Mozzato, Colet e Grzybovski (2018) reforçam que esse tipo de pesquisa qualitativa ainda não ganhou total legitimidade na área, mesmo como técnica única ou combinada, que permite explorar a subjetividade, imprevisibilidade, complexidade humana e enriquecer os dados empíricos nas pesquisas qualitativas da área. Segundo Colomby et al. (2016), nos Estudos Organizacionais os temas abordados são abrangentes, tendo em vista que a partir do tema central da história de vida outros temas também surgem. Os autores ressaltaram alguns temas principais que tem sido abordados na área, como trabalho, identidade, gênero, aprendizagem e carreira. Sobre gênero, apontaram que as discussões partem das representações das mulheres no âmbito pessoal, familiar, profissional e social, marcadas por condições de desiguais de gênero. Em diferentes contextos e condições, a mulher é estudada como trabalhadora, empreendedora, ativista, entre outras, parte-se da premissa de que a violência e a desigualdade de gênero é histórica e reafirma a inferioridade feminina. Há Estudos Organizacionais que utilizaram o método de história de vida ao abordar: as influências dos aspectos subjetivos no processo de decisão (Macalli et al., 2014); a compreensão da dinâmica identitária de professoras gerentes de uma universidade pública (Miranda, Capelle & Mafra, 2014); as influências e os limites às trajetórias profissionais de sete executivos brasileiros, ou seja, o estudo de carreiras (Closs & Oliveira, 2015); o como indivíduos com formação e carreira em áreas eminentemente técnicas (Engenharia, Química e Biologia) tornam-se empreendedores (Pinotti et al., 2015); a história de vida laboral como método de pesquisa psicossociológica (Pinto, Carreteiro & Rodriguez, 2015); os processos de aprendizagem gerencial (Closs & Antonello, 2011; Ferraza & Antonello, 2017); a compreensão de questões macrossociais a partir da voz do indivíduo e da sua experiência, como a dos refugiados (Mancebo, Costa & Pessoa, 2018); a aprendizagem empreendedora (Vogt & Bulgacov, 2019) e; o modo como categorias opressivas - gênero, raça e classe - afetam determinados segmentos populacionais sob a perspectiva da teoria interseccional (Colling & Oltramari, 2019). Os estudos supracitados demonstram a potencialidade do método de história de vida para: a compreensão dos aspectos subjetivos do indivíduo que o auxiliam no processo de tomada de decisão nas organizações (Macalli et al., 2014); as relações entre a história de vida e a identidade, como a descontinuidade, a subjetividade e a importância de “dar voz ao sujeito” (Miranda, Capelle & Mafra, 2014); o entendimento interdisciplinar do estudo de carreiras sob uma perspectiva situada sócio historicamente com a existência de marcos de trajetória, demonstrando por exemplo, a força das relações familiares nas decisões e direcionamento das carreiras (Closs & Oliveira, 2015); o modo como o entorno familiar exerce grande influência na decisão de empreender (Pinotti et al., 2015); a investigação, análise e intervenção possível de ser realizada no campo laboral, das diversas relações profissionais estabelecidas (Pinto, Carreteiro & Rodriguez, 2015); o resgate da valorização humana, desvendando entendimentos de fenômenos coletivos a partir de relatos de vivências e experiências pessoais (Closs & Antonello, 2011; Ferraza & Antonello, 2017); a possibilidade de desenvolver pesquisas com temas sensíveis e atuais, como o dos refugiados (Mancebo, Costa & Pessoa, 2018); os processos de aprendizagem dos empreendedores, durante o processo de empreender e conduzir um negócio (Vogt & Bulgacov, 2019) e; a compreensão e o estudo da teoria interseccional, de modo a apreender de que forma as categorias opressivas operam no meio social, a partir do olhar do próprio sujeito que vive as categorias opressivas e conta sua história (Colling & Oltramari, 2019). Diante desse panorama de estudos que se utilizam da metodologia de história de vida no campo dos Estudos Organizacionais, pode-se dizer que falta o debate amplo de gênero em diálogo com as questões queer (Colomby et al., 2016; Scavone, 2008), a fim de extrapolar a análise das identidades fixadas, binárias de “homem” e de mulher” a partir da análise das performatividades nos espaços organizacionais, utilizando-se para tal da produção teórica de Butler (Butler, 2017, 2019; Chaves & Souza, 2019; Souza, 2017). Os estudos ainda estão muito limitados a uma abordagem positivista, utilitarista e funcionalista (Closs & Antonello, 2011; Closs & Oliveira, 2015; Ferraza & Antonello, 2017; Macalli et al., 2014; Pinotti et al., 2015; Vogt & Bulgacov, 2019) em comparação aos trabalhos que desenvolvem a análise crítica nas organizações (Colling & Oltramari, 2019; Mancebo, Costa & Pessoa, 2018; Miranda, Capelle & Mafra, 2014). A expansão da utilização dessa metodologia para o campo dos Estudos Organizacionais é movida a partir do entendimento de que, ao compartilhar histórias de vida no contexto das organizações (a trajetória laboral), o indivíduo ao mesmo tempo que narra os fatos, ele revive, reformula posturas, opiniões, elabora e avança em questões, o que tem efeitos tanto para si quanto para a organização.
3.História de vida à luz da Teoria Queer
Diante das imposições e demandas dos padrões morais impostos no âmbito da Escola, Família, Igreja e Estado - instituições de normalização e socialização das identidades fixas de “homem” ou “mulher” -, que limitam as possibilidades de expressão de gênero e atribuem rótulos com pretensão de fixar as identidades, o alvo queer é justamente o de pensar subversão e a transgressão do poder das normas. Isso em prol de escapar das definições, considerando que todas as formas de identidade funcionam como forças políticas disciplinadoras e organizadoras. O olhar queer é insubordinado, mais desconstrutivo, que proprositivo, um jeito transgressivo de estar e pensar no mundo, um movimento por assim dizer (Louro, 2018; Miskolci, 2017; Souza, 2017). Ao ser interpelado e conceder o relato de si, o indivíduo pode encontrar impulso na Teoria Queer por questionar o que está quieto e não contestado, de modo a estranhar tudo - sujeitos, práticas, normas, ações. As ideias queer sugerem fraturas na episteme dominante por se basear em uma política de reconhecer a diferença perante a marcação das desigualdades sociais tendo em vista a transformação da cultura hegemônica (Butler, 2017; Louro, 2018; Miskolci, 2017; Souza, 2017). No contexto organizacional, o queer pode ser pensado como forma de subversão do controle das formas de performatizar gênero dentro da matriz binária (Rumens, Souza & Brewis, 2019; Souza, 2017). Isso porque há diferentes formas de fazer, desfazer e refazer gênero no trabalho, devido a gestão de situações sociais diversas e as formas de se comportar, consideradas adequadas para tal (Chaves & Souza, 2019). O fazer gênero por exemplo, mantém as estruturas binárias de homem e mulher, o desfazer gênero desestabiliza o binário gênero, e o refazer gênero redefine as qualidades associadas ao gênero, sejam elas de feminilidade ou masculinidade (Connell, 2010). O desfazer e refazer de gênero e o relato dessa experiência por meio da narrativa de vida é permeado por transições, posições, experiências, em um processo contínuo de construção e desconstrução por meio da linguagem e da performatividade, o que confere novos arranjos para as histórias plurais dos indivíduos (Chaves & Souza, 2019; Connell, 2010). Nessas histórias, a identidade do indivíduo muda de acordo como é interpelado (Hall, 2019). Esse relato que o indivíduo faz de si em resposta a um questionamento, o implica em uma relação com o outro e força assim, o ato de criar a si mesmo ou engendrar a si mesmo, sendo uma relação propícia para a autocriação de si.
“Quando o ‘eu’ busca fazer um relato de si mesmo, pode começar consigo mesmo, mas descobrirá que esse ‘si mesmo’ já está implicado numa temporalidade social que excede suas próprias capacidades de narração; na verdade, quando o ‘eu’ busca fazer um relato de si mesmo sem deixar de incluir as condições do seu próprio surgimento, deve, por necessidade, tornar-se um teórico social. A razão disso é que o ‘eu’ não tem uma história própria que não seja também a história de uma relação - ou conjunto de relações - para com um conjunto de normas.” (Butler, 2017, p. 18)
Para a Butler (2017) esse ato vai além da ação narrativa de contar uma série de eventos em sequência e com transições plausíveis, pois faz referência à voz e a autoridade presentes na narrativa do indivíduo quando direcionada ao público que se deseja convencer, de modo que ele assuma a responsabilidade por suas ações. É na interpelação que o indivíduo faz o relato de si como uma obrigação de fazê-lo devido o sistema de justiça estabelecido. A reflexão sobre si, desse modo, alcança o campo do medo e terror e, é com o efeito deles, que o indivíduo se torna moralmente responsável. Desse modo, o relatar a si para o outro é um ato político, “seja inventado, seja existente, e o outro estabelece a cena de interpelação como uma relação ética mais primária do que o esforço reflexivo que o sujeito faz para relatar a si mesmo” (Butler, 2017, p. 33). Nesse ato, quando o “eu” profere ou fala algo, há que se considerar que existe primeiramente um discurso que habilita e permite que ele fale. Essa condição discursiva precede e contingência a formação do indivíduo (Butler, 2017, 2019; Souza, 2017). Todo esse trabalho do relato de si por meio da fala se contextualiza a partir de normas que precede e excede o indivíduo. Conceder o relato dos vários si-mesmos diante dessas normas, das condições estruturais, impossibilitam a completude desta tarefa. Além disso, os termos usados para conceder o relato de si mesmo e para se fazer inteligível para si e para o outro, não são criados pelo indivíduo. O motivo disso está no caráter social do estabelecimento de normas sociais em um domínio de falta de liberdade e de substituibilidade, no qual as histórias dos indivíduos são contadas (Butler, 2017). É nesse sentido que Souza (2017) baseado em Butler afirma que o indivíduo não é livre para decidir e a agir fora das relações de poder e das normas discursivas que o constituem. Isso não quer dizer que ele é passivo, como um receptor no processo de construção da sua identidade, mas agente ativo. Essas discussões permitem destacar elementos centrais do processo de relatar a si mesmo, como: a variabilidade dos relatos de vida possíveis a partir da cena de interpelação; a multiplicidade, interconexão e descontinuidade da identidade no relato dos vários si-mesmos; o desfazer e o refazer de gênero e suas implicações na subversão performativa do fazer gênero; o poder da linguagem em suas inúmeras formas simbólicas, discursivas, históricas e culturais; a produção ampla do relato de si perante a interpelação da Família, Escola e Igreja; e, a “queerização” das questões morais e éticas nas experiências de vida para se reinventar no processo de relatar a si mesmo. Esses elementos apontam para uma proposta de abordagem às pesquisas qualitativas a partir dos recursos teórico-metodológicos que fornecem incremento à metodologia de história de vida nas pesquisas qualitativas nos Estudos Organizacionais. Isso devido considerar a identidade do indivíduo como um processo contínuo (sempre em construção e desconstrução) de construções discursivas sociais, múltiplas e atravessadas por outras identidades, performativas e instáveis. A força política da Teoria Queer é potencial para ser aplicada inclusive para se pensar as identidades organizacionais, de modo a desestabilizá-las, tendo em vista a generificação dos cargos sob padrões hétero-cis-normativos, que homogeinizam comportamentos e condutas aceitáveis para determinadas posições (Chaves & Souza, 2019; Marinho, 2021; Rumens, 2017; Souza, 2017; Rumens, Souza & Brewis, 2019). No campo dos estudos organizacionais, a Teoria Queer é central para problematizar todas as identidades (Souza, 2017). Conforme afirma Souza (2017), a análise das identidades hegemônicas e o estudo de outras formas identitárias que não estejam diretamente relacionadas a sexualidade e gênero carecem de problematização. A aplicação dos conceitos queer podem ser direcionados à identificação do processo de construção de identidades no trabalho, com vista ao rompimento da homogeneização de comportamentos e da lógica capitalista “com noções funcionalistas de identidade laborais naturais e apolíticas” (Souza, 2017, p. 320). Para tal, a performatividade é um conceito útil de modo a pensar a performatividade das identidades em um contexto que pretende homogeneizá-las. Um exemplo de estudo que avançou em termos dessa discussão foi o publicado recentemente por Chaves e Souza (2019), com o título “Fazendo e desfazendo gênero na política: uma história de vida”, no qual os autores analisaram como o gênero é feito e desfeito dentro da política institucional a partir da história de vida de uma vereadora. Os fatores como a influência da Família, da Escola e do trabalho emergiram como importantes na constituição das performatividades de gênero no legislativo municipal. O estudo também constatou como o fazer a masculinidade é uma forma de sobrevivência nesses espaços. Como afirmam Chaves e Souza (2019), a obra de Butler e sua crítica as políticas identitárias devem ser levadas em consideração nas discussões com fins de buscar melhorias para os espaços sociais e organizacionais. Para tal, as questões queer podem iluminar novas leituras das identidades, comportamentos e relações de trabalho como avanço para os Estudos Organizacionais (Louro, 2018; Miskolci, 2017; Souza, 2017).
4.Considerações Finais
Esse estudo alcançou o objetivo proposto, destacando características importantes da abordagem teórico- metodológica da história de vida à luz da Teoria Queer, o que contribui para o papel político das estratégias de coleta de dados nas pesquisas qualitativas. Buscou-se defender que a partir da queerização das experiências de vida e da subversão das normas sociais no momento da interpelação do relato de si, as identidades hegemônicas tanto pessoais quanto profissionais podem ser destabilizados. As questões do fazer, desfazer e refazer de gênero de gênero à luz da Teoria Queer desestabilizam as normas impostas no contexto sócio organizacional e promovem a variabilidade do relato dos vários si- mesmos a partir da interpelação. Nesse ínterim, o indivíduo se faz, desfaz e refaz a si mesmo. Os efeitos disso podem ser percebidos nas relações sociais e organizacionais, na sua história de vida individual e na narrativa de toda a coletividade em uma dimensão cultural e histórica (Butler, 2017, 2019; Chaves & Souza, 2019; Connell, 2010; Hall, 2019; Louro, 2019; Miskolci, 2017; Rumens, 2017; Rumens, Souza & Brewis, 2019; Souza, 2017). Os conceitos queer e os elementos do relatar a si como colocados por Butler (2017, 2019) tem o potencial de desestabilizar a fixidez das identidades, impactando o indivíduo no ato de narrar sobre a sua própria vida, não como algo continuo e linear, preso em padrões, mas como algo descontinuo e em processo. Com essas considerações, pode-se dizer que as discussões realizadas, fomentam o debate da diferença com olhar para a valorização dos indivíduos, tendo em vista a pluralidade da sua identidade, muito além dos aspectos restritivos de gênero e sexualidade. Afinal, esses aspectos são apenas uma parte das suas histórias de vida. Há muito mais potencialidade, profissionalismo e competência na vida dos indivíduos, o que precisa ser valorizado frente a generificação dos cargos e ocupações. Esse exercício a partir da lente teórica queer reverbera nas interpretações realizadas sobre o indivíduo e a coletividade e tem a potencialidade para abrir novos caminhos e agendas de estudo para pesquisadores que se debruçam sobre investigações com histórias de vida nas pesquisas qualitativas nos Estudos Organizacionais. Outros campos de aplicação da investigação qualitativa, como os da Educação e das Ciências Sociais também podem se apropriar desse debate em diálogo com outras temáticas e dimensões de investigação.