1.Introdução
A pandemia de Covid-19, marcada pela necessidade de isolamento social como medida de mitigação da disseminação do vírus (Cheetam et al., 2020), transformou a rotina de bilhões de pessoas ao redor do mundo. Em que pese os impactos sanitários, econômicos e psicossociais decorrentes da pandemia de Covid-19, o estudo do recorte de gênero como um fator de vulnerabilidade tem trazido indicadores alarmantes que demonstram a necessidade de repensar as questões de gênero dentro do recorte classe e raça. (Kruks, 2021). A histórica divisão sexual do trabalho merece ser destacada nos estudos de gênero no contexto epidêmico, uma vez que o isolamento social contribuiu para aprofundar as ineqüidades decorrentes dessa estratificação. Essa divisão, que se baseia na biologia, associa a mulher ao espaço privado da casa e ao trabalho doméstico, em oposição à configuração do trabalho no capitalismo. Ressalta-se que a responsabilização da mulher pelos trabalhos domésticos é uma condição engendrada pelo patriarcado e endurecida a partir da Revolução Industrial, evento considerado como um marco na divisão sexual do trabalho. A literatura aponta ainda que as mulheres constituem a maior frente na área da saúde, correspondendo a 70% dos (as) profissionais (ONU Mulheres, 2020), o que pode torná-las mais susceptíveis à contaminação. Além das vulnerabilidades na saúde, fatores como raça, território, regionalidade, renda e escolaridade são fatores que podem acentuar a vulnerabilidade social de mulheres situadas em diferentes intersecções, colocando-as no grupo de mais afetados pela pandemia do coronavírus (Barroso; Gama, 2020). Percebe-se então a desigualdade de gênero como um fator que historicamente atravessa a vida das mulheres em múltiplos aspectos e que, em decorrência do contexto da pandemia, pode ter se acentuado ainda mais. Nesta urdidura, este estudo tem como questão de pesquisa: De que maneira a produção científica relaciona as consequências do isolamento social decorrente da Covid-19 ao gênero? Assim, o objetivo deste artigo é, a partir de um trabalho de revisão de literatura, analisar os impactos da Covid-19 a partir da perspectiva do marcador social gênero.
2.Metodologia
O estudo em questão é do tipo exploratório, tem como método a revisão sistemática da literatura baseada na recomendação PRISMA (Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta- Analyses), utilizando o seu modelo atualizado de flow diagram. Galvão e Ricarte (2019, p.58) afirmam que uma revisão sistemática consiste em uma categoria de investigação “que segue protocolos específicos, e que busca entender e dar alguma logicidade a um grande corpus documental, especialmente, verificando o que funciona e o que não funciona num dado contexto.” Os documentos obtidos nessa pesquisa pertencem ao domínio público e foram originados em instituições de ensino superior e centros de pesquisa. As buscas foram realizadas em agosto de 2021, nas bases de dados PubMed e Scientific Eletronic Library Online (Scielo), com a utilização dos seguintes descritores e operadores booleanos (em maiúsculo): gender equality AND impacts AND covid19 OR SARS-COV-2. Estudos sobre gênero (impactos e diferenças) no contexto pandêmico contemplaram os critérios de inclusão. Além disso, os documentos foram revisados por pares e filtrados pelo recorte temporal de 2020-2021, visto que a pandemia causada pelo novo coronavírus começou em 2020 e o objetivo dessa análise é estudar os impactos do gênero nesse período. Os resultados da pesquisa totalizaram 422 documentos, que posteriormente foram filtrados pelo título. A seleção por título sucedeu 70 estudos, e dos mesmos, 38 foram excluídos por não atenderem aos critérios de inclusão já citados. Dos 32 artigos recuperados, 7 tangenciavam o tema - não possuíam gênero e/ou a pandemia de coronavírus como objeto principal de pesquisa. Por fim, dos 25 artigos avaliados para elegibilidade, 4 se tratavam de estudos de revisão ou ensaios teóricos e por isso foram excluídos, resultando em 21 artigos na amostra final. O diagrama a seguir esquematiza as etapas de seleção dos documentos realizadas neste presente estudo:
A técnica utilizada na etapa seguinte foi a análise de conteúdo. Uma das funções dessa estratégia de análise é a busca por resposta das perguntas formuladas. Assim, a elaboração de categorias torna-se fundamental por compilar os conteúdos, ideias e/ou expressões comuns para serem melhor apresentadas e discutidas (Minayo, 2001). O processo de organização e validação das categorias contou com o auxílio de um terceiro investigador. Após a categorização inicial dos resultados, estes foram apresentados e discutidos entre os demais autores e mais um terceiro investigador, tendo sido por fim, definida a categorização final do estudo.
3.Resultados
Destaca-se que 02 estudos foram realizados mundialmente, no entanto, as regiões com maior frequência de pesquisas desempenhadas e publicadas encontradas foram: México (04), Reino Unido (02) e Japão (02). Já os países Espanha, Inglaterra, Canadá, Argentina, Itália, Austrália, Holanda, Estados Unidos, Alemanha, Chile e Brasil totalizaram 01 estudo/cada publicado encontrado. Salienta-se ainda que os idiomas dos artigos encontrados sucederam-se, com o texto integral disponível em formato eletrônico, redigidos em Inglês, Espanhol e Português. Os estudos que compuseram o refinamento da amostra final do atual artigo foram elencados no quadro que está exposto a seguir.
Ao analisar os objetivos e os principais resultados dos artigos incluídos na revisão, observou-se padrões de resultados significativos sobre as consequências decorrentes da pandemia do Covid-19 no marcador social gênero no mundo, aos quais sucederam-se abaixo em duas categorias temáticas:
3.1 Saúde Mental, Atividades Domésticas e Violência Doméstica
Na Espanha, o estudo de Corbí et al. (2021), realizado com 1509 participantes (sendo 1020 mulheres), teve o objetivo de analisar a relação entre bem-estar psicológico e hábitos saudáveis. Os resultados indicaram que as mulheres tendem a adotar dietas mais saudáveis em comparação aos homens, ainda que eles tenham declarado mais horas de atividade física, apresentando no entanto, menores índices de bem-estar psicológico do que as mulheres. Dentre os moradores de zona rural, os índices de atividade física se mostraram maiores, todavia o bem-estar psicológico foi menor. Estes achados dialogam com o trabalho de Glenister et al. (2021), desenvolvido na Austrália, que identificou que as entrevistadas que vivem com crianças tiveram aproximadamente o dobro de probabilidade de relatar aumento do consumo de álcool e alimentos não saudáveis, da mesma forma que compareceram menos a consultas de saúde e diminuiram a interação social ou atividades de cuidados pessoais em comparação com as participantes que não vivem com crianças. No estudo de Zamarripa et al. (2020), desenvolvido no México com 522 homens e 651 mulheres, foram analisados os níveis de estresse durante o distanciamento social devido ao Covid-19. As mulheres autodeclararam maior nível de estresse quando comparadas aos homens, fato que os autores associam à falta de redes de apoio e à sobrecarga de trabalho doméstico. O trabalho de Kimuraet al. (2020) aponta que a saúde mental de mães degringolou também no Japão, onde a prevalência de sintomas depressivos e/ou ansiosos passou de 8,2% a 9,9% em quatro meses. Este aumento foi relacionado a dificuldades financeiras, falta de tempo para lazer, dificuldades na criação dos filhos e agressividade do parceiro. Ainda com relação à parentalidade, o estudo realizado na Holanda por Yerkes et al. (2020), teve como objetivo explorar as diferenças entre mães e pais nas áreas de trabalho remunerado, divisão de cuidados com os filhos e tarefas domésticas. Três dimensões da qualidade de vida (lazer, equilíbrio trabalho-vida, dinâmica de relacionamento) também foram analisadas. Os resultados encontrados sugeriram que as mães têm maior probabilidade de sofrer maior pressão de trabalho durante o período de lockdown do que os pais, que as mães assumem mais atividades nas tarefas domésticas e que têm o tempo de lazer menor que os pais nas mesmas situações. Outro trabalho, desenvolvido por Díaz e Muñoz (2021) com mães de crianças até os 12 anos de idade, observou que 4 eixos centrais afetaram as mulheres no início da pandemia: aumento de trabalhos domésticos e de cuidados não remunerados; desigualdade econômica; aumento da violência de gênero e vulnerabilidade dos trabalhadores da linha de frente, que são, principalmente, mulheres. Por conseguinte, em outra investigação realizada no Chile por Undurraga et al. (2021), os resultados obtidos permitiram identificar que as trajetórias das mulheres são definidas pela esfera reprodutiva; também trabalho doméstico e cuidado. Tratando-se do período de confinamento devido à pandemia de Covid-19. Observou-se que as tarefas domésticas e de cuidados foram mais assumidas pelas mulheres, o que agravou a sobrecarga de trabalho e estresse emocional. As autoras concluíram então que há o peso do marcador gênero no desenvolvimento do trabalho das mulheres e na atribuição cultural das atividades domésticas No Canadá, um estudo realizado por Van Rensburg (2020) com universitárias teve por propósito destacar como a pandemia do Covid-19 afetou as mulheres e comunidades marginalizadas de diversas formas. A autora disserta que os efeitos sociais dos tempos de pandemia colocaram as mulheres, a população queer, trans e pessoas com deficiência em maior risco de violência - a incluir o assédio sexual, o abuso doméstico, a coerção e a agressão física - visto que tais sujeitos passaram a ficar maior tempo em contato com os seus agressores devido ao isolamento social. Outros impactos de infraestrutura da pandemia, como redução do serviço de transporte público e cortes nas horas das agências de serviço social e financiamento, criaram mais barreiras a tais pessoas para o acesso aos serviços de cuidados hospitalares e de segurança. Por sua vez, Castañeda et al. (2021) propuseram analisar uma comunidade universitária frente à pandemia. Segundo as autoras, os resultados demonstraram que a pandemia afeta mais mulheres jovens (<30 anos) e que não só na comunidade acadêmica, mas também na população geral, é necessário levar em consideração as diferenças por gênero para reduzir as desigualdades dos efeitos da pandemia em mulheres e homens. Neste sentido, o trabalho de Gao e Sai (2020) foca na reflexão pessoal das autoras, enquanto acadêmicas, solteiras e vivendo sozinhas sobre como o isolamento social decorrente da Covid-19 afetou-as. Por meio de um texto auto reflexivo, as autoras relatam mudanças na rotina, excesso de uso das redes sociais e sofrimento mental devido aos ataques xenofóbicos contra a população chinesa. Já no contexto do Reino Unido, Tratando-se também do uso das redes sociais, o trabalho de Al-Rawi et al. (2020) buscou compreender como as pessoas de diferentes gêneros discutem sobre a Covid-19 através do estudo dos emojis na rede social Twitter. Descobriu-se que os homens mostraram uma tendência significativamente maior de usar sentimentos positivos em comparação com as mulheres e minorias sexuais e de gênero. Além disso, houve muitas discussões públicas relacionadas a mulheres grávidas, amamentação e mamadeira, representando os desafios únicos que as mulheres enfrentam devido ao seu papel reprodutivo.
3.2 Vida Profissional e Trabalho Doméstico
Além das atividades na esfera domiciliar, a revisão dos artigos aponta que os trabalhos extradomiciliares exercidos pelas mulheres também sofreram mudanças. Na Argentina, Costoya et al. (2021) investigaram alterações na alocação de tempo para as atividades remuneradas e não remuneradas de casais com e sem filhos durante o isolamento social. As autoras concluíram que houve redução para os homens das horas investidas no trabalho remunerado, no entanto, o tempo gasto com tarefas domésticas e educação dos filhos aumentou consideravelmente apenas para as mulheres. Os resultados demonstraram que, mesmo havendo equiparação nas atividades remuneradas, quando se tratava de atividades não remuneradas, a desigualdade de gênero foi agravada com a situação pandêmica. Ainda na temática das atividades domésticas, ressalta-se o estudo desenvolvido na Itália por Del Boca et al. (2020), que teve como objetivo analisar os efeitos da divisão de trabalho no que diz respeito ao cuidado com casa, filhos e homeschooling entre casais nos quais ambos parceiros têm empregos. Os resultados mostraram que as mulheres ficaram mais propensas a trabalhar de casa, o que foi relacionado ao acúmulo das atividades laborais e atividades da rotina familiar. Além disso, ainda que ambos os gêneros tenham aumentado o tempo diário dedicado a atividades de cuidado com a casa e os filhos durante o isolamento, a distribuição ainda é desigual, pois 68% das mulheres estão gastando mais tempo com as ocupações do lar em comparação com 40% dos homens. Por sua vez, o estudo de Van Daalen et al. (2020) buscou avaliar a ocupação feminina em posições de destaque, através da análise de 115 forças-tarefa de especialistas e tomada de decisões em 87 países, organizadas para o combate à Covid-19. Os resultados indicaram que diretores de ministérios, especialistas e chefes de instituições na em sua maioria são homens (85,2%), as mulheres são predominantes em apenas 11,4% dos grupos e apenas 3,5% apresentam paridade de gênero. Destaca-se então a minoria feminina em cargos de decisões e lideranças, logo, é necessário mudar este padrão para obter uma governança diversa e interseccional. Em um estudo realizado no Reino Unido por Sevilla et al. (2020) os resultados indicaram que mulheres com filhos têm 10% menos probabilidade de trabalhar do que homens com filhos. Além disso, as mulheres que cuidam mais das crianças têm menos probabilidade de trabalhar em casa e têm maior probabilidade de obter licença do que as mulheres que trabalham em menor proporção. Os resultados evidenciam a atribuição do papel de cuidadora às mulheres, independentemente das mudanças em sua situação profissional. Outro artigo revisado, o trabalho de Fletcher et al. (2021) objetivou determinar se as mulheres foram sub-representadas como fontes especializadas do Covid-19 em jornais impressos nos EUA. Através do exame da proporção de mulheres, homens e especialistas em gênero não binários citados nos principais jornais americanos em artigos referentes à pandemia do SARS-CoV-2, os autores apontam que as disparidades pré-existentes prejudicam as mulheres acadêmicas em representação, publicação, oportunidades de pesquisa e responsabilidades de cuidado. No geral, este estudo conclui que os homens acadêmicos superam em número de citações as mulheres acadêmicas nas reportagens jornalísticas acerca do Covid-19 e contribui para o crescente corpo de evidências que demonstra como a pandemia afetou negativamente as carreiras de mulheres acadêmicas. Ainda na América do Norte, a pesquisa desenvolvida por Lorello et al. (2021), no Canadá, teve como objetivo investigar o acometimento das médicas anestesistas de um hospital por diferentes estressores durante a pandemia de COVID-19. Embora os fatores pessoais aliados aos aspectos organizacionais do ambiente hospitalar tenham implicações na saúde das médicas, a emergência sanitária acentuou ainda mais os efeitos do adoecimento físico e mental no gênero feminino, especificamente no recorte pesquisado. Seguindo o tema do estudo sobre profissionais de saúde, Nishida et al. (2021) avaliaram os efeitos da pandemia na vida dos médicos e médicas no Japão. Segundo os autores, médicas-mães são apanhadas em um dilema entre aumento da demanda doméstica e deveres clínicos no hospital, em proporção significativamente maior do que médicos-pais durante a pandemia. A partir dos resultados do estudo, verificou-se que as médicas não poderiam ter continuado suas carreiras e assumir posições de responsabilidade da mesma forma que os médicos, desta forma, percebe-se que as diferenças de gênero têm implicações no trabalho das mulheres também no país asiático. Na Alemanha, a pesquisa elaborada por Graeber et al. (2021) constatou que os autônomos geralmente enfrentam maior probabilidade de perda de renda devido ao Covid-19 do que pessoas com emprego formal e que as mulheres têm cerca de um terço mais de probabilidade de sofrer perdas de renda do que os homens. Os resultados sugerem ainda que a diferença de gênero entre os autônomos é amplamente explicada pelo fato de que as mulheres trabalham desproporcionalmente em indústrias que são mais gravemente afetadas pela pandemia do Covid-19. A análise de mecanismos potenciais revelou também que as mulheres têm uma probabilidade significativamente maior de serem afetadas por restrições impostas pelo governo, por exemplo, a regulamentação do horário de funcionamento das organizações empresariais. Dois artigos discorrem sobre o trabalho de mulheres como empregadas domésticas na América do Sul. Pizzinga (2020) buscou analisar o contexto da atividade das trabalhadoras domésticas brasileiras na pandemia de COVID-19 a partir de quatro decretos federais e de relatórios técnicos produzidos pela Rede CoVida e Rede de Pesquisa Solidária. A análise evidenciou que os marcadores raça, gênero e classe têm implicações nos adoecimentos e mortes por COVID-19, além disso, pretos e pretas são maioria entre os informais ou com vínculos empregatícios mais frágeis. Para a autora, discriminar tais variáveis pode ajudar a compreender aspectos sociais da pandemia, assim como favorecer a discussão e implementação de políticas públicas efetivas no combate ao novo coronavírus. Por sua vez, na Argentina, Casas et al. (2021) observaram como a fala da ideologia da domesticidade é historicamente atribuída às mulheres. Os autores evidenciaram que a situação de emergência sanitária causada pela pandemia provocou discursos revestidos de forte senso sobre a produção de masculinidade e tecnicidade científica em contraste com as tarefas que carregam significantes femininos, como o trabalho doméstico. Assim, produz-se uma tensão que coloca o trabalho doméstico como objeto, aprofundando os processos de desvalorização social intrínseca ao trabalho doméstico remunerado.
4.Discussão
As consequências decorrentes da pandemia de Covid-19 no nosso cenário de reflexões precipitaram uma ruptura maior no funcionamento das sociedades contemporâneas, gerando impactos significativos em várias dimensões da vida humana, a suscitar mudanças e interferências na vida familiar, variações de rotinas de trabalho e ocupações (Médici et al., 2020). Essas alterações, no entanto, foram encaradas de formas distintas, a fortalecer a manutenção das vulnerabilidades e desigualdades sociais já existentes, com destaque para as decorrentes das iniquidades de gênero (Lima et al., 2021; ONU, 2021). Gênero é aqui definido como uma construção sociocultural, e não biológica, que cumpre uma função política nas distribuições de papéis sociais (Stolcke, 1991; Guedes, 1995). Segundo Scott (1989, p. 7) o gênero se torna, aliás, uma maneira de indicar as “construções sociais” - a criação inteiramente social das idéias sobre os papéis próprios aos homens e às mulheres. De acordo com o relatório do Fórum Econômico Mundial (2021), as mulheres já eram responsáveis pela maior parte do trabalho doméstico e pelo cuidado dos membros mais vulneráveis da família desde muito antes da chegada da Covid-19, no entanto, essa carga se intensificou em tempos de escolas fechadas e isolamento. Como aduz Carvalho (2020), as mulheres com filhos, invariavelmente, foram as mais impactadas no mercado de trabalho. A divisão sexual do trabalho é uma das formas de visualizar as relações de dominação em razão de gênero, sendo ela mesma fonte de violência às mulheres. Esta divisão foi reforçada na modernidade, sobretudo a partir da revolução industrial, conforme aponta Davis (2016), que ressalta este período histórico enquanto um marco na divisão sexual do trabalho. De acordo com a autora, os trabalhos das mulheres eram complementares à sobrevivência da família e até considerados produtivos, no entanto, o capitalismo cindiu economia doméstica familiar e venda da força de trabalho, resultando na desvalorização do labor doméstico, que, em comparação a atividades assalariadas, foi prontamente definido como um modo de trabalho inferior. No sistema econômico atual, o operário vende sua força de trabalho em troca do salário para adquirir itens essenciais à sua sobrevivência. No entanto, tais aquisições não estão ainda em condições de consumo, há que se adicionar trabalho preparando os alimentos, cuidando da casa, lavando e passando, o que torna o trabalho doméstico crucial na manutenção do sistema. Uma vez que as mulheres são responsabilizadas pelas atividades domésticas, é pela reprodução e manutenção da força de trabalho que elas são inseridas. Além disso, elas também colaboram com o aumento da mais-valia, posto que seus serviços no ambiente domiciliar não são remunerados. Há que se considerar então o papel do modelo econômico vigente na divisão sexual do trabalho, na desigualdade de gênero e no interesse da perpetuação deste cenário (Rubin, 1973). O papel da mulher exclusivamente como explorada pela mais-valia perdurou até que o denominado “feminismo de primeira onda” reclamasse a inserção das mulheres no mercado de trabalho. As donas de casa, à época, restritas a desempenhar com perfeição as funções de mãe e cuidadoras do lar, agora buscavam condições de igualdade com os homens no sistema econômico. No entanto, hooks (1984) aponta que esta pauta esteve restrita a mulheres brancas e de classe média favorecida, posto que as mulheres negras não gozavam dos mesmos privilégios econômicos e há muito já trabalhavam. Ademais, seriam exatamente estas mulheres pretas a assumirem o papel de cuidar de crianças e da casa no lugar daquelas que trabalhavam fora de casa. Surge então outro ponto a ser discutido no estudo das implicações de gênero na pandemia, qual seja, as intersecções de raça e classe frente à emergência sanitária. Pimenta (2020) aponta que a pandemia é racializada, posto que morrem mais pretos do que brancos; além disso, mulheres pardas e pretas são maioria entre aquelas que desempenham papéis de cuidadoras. No entanto, a discussão de tais interseccionalidades surge apenas no trabalho de Pizzinga (2020), desenvolvido no Brasil. Tal constatação suscita questionamentos sobre as razões para que tais marcadores não estejam presentes nas discussões de países desenvolvidos, seja porque estas questões não incidem tão fortemente em outros países ou porque não são aspectos levados em consideração por pesquisadores que não são mulheres pretas de classe social menos favorecida. Em geral, os artigos destacam que na pandemia a taxa de participação das mulheres na força de trabalho diminuiu, fazendo com que os fenômenos do desemprego, da precarização e da terceirização ficassem em maior evidência na economia global (Diaz; Muñoz, 2021; Casas et al., 2021; Graeber et al., 2021; Nishida et al., 2021). Destaca-se ainda que a imersão de maneira súbita no teletrabalho, o homeschooling e a tentativa de conciliar a vida profissional vs. a sobrecarga feminina em papéis domésticos acentuou o estresse crônico, a deterioração física e adoecimentos no campo da saúde mental (Gao; Sai, 2020; Sevilla et al., 2020; Undurraga et al., 2021; Costoya et al., 2021; Del Boca et al., 2020; Yerkes et al, 2020). Nesse contexto de fragilidade da pandemia de Covid-19, muitas mulheres estão também cada vez mais suscetíveis a desenvolverem riscos à sua saúde e serem vítimas de violência e abuso doméstico. De acordo com a OMS (2020), a violência contra as mulheres é endêmica em todos os países e culturas, causando danos a milhões de mulheres e suas famílias, e foi agravada pela pandemia de Covid-19 pela exposição das mulheres à violência em razão de medidas como lockdowns e interrupções de serviços essenciais (Van Rensburg, 2020). Além disso, o fato das mulheres estarem em casa escancara a desigual economia do cuidado, em que a responsabilidade e sobrecarga do trabalho doméstico e dos cuidados com doentes, crianças e idosos são das mulheres. Em síntese, as medidas de distanciamento e isolamento social em conjunto com a redução do tempo de lazer, o aumento das demandas de trabalho e a sobrecarga das atividades domésticas contribuíram para a elevação dos níveis de estresse e declínio da qualidade de vida nas mulheres (Zamarripa et al., 2020). Ademais, o aumento da dificuldade financeira foi relacionado a sintomas depressivos e ansiosos recém- desenvolvidos no público feminino. No entanto, nota-se que a partir da adoção de estratégias e práticas de cuidado em saúde tais como: realização de exercícios físicos, apoio social e a implementação de uma dieta saudável, contribuíram para a mitigação dos efeitos da pandemia na saúde emocional e física dos indivíduos (Corbi et al., 2021).
5.Considerações Finais
Esse estudo procurou apresentar a situação das mulheres durante o período pandêmico da Covid-19 no mundo. Uma revisão sistemática da literatura foi utilizada para atingir o objetivo proposto de forma a abranger a literatura nacional e internacional. Essa metodologia é útil para compilar estudos já realizados acerca de uma temática específica, a servir também como importante material a ser utilizado como estado da arte por pesquisadores. Os 21 artigos que compuseram o corpo de dados dessa pesquisa indicaram a discussão do marcador social gênero frente às consequências da pandemia a partir de duas categorias: saúde mental, atividade doméstica e violência doméstica; e vida profissional e trabalho doméstico. Destaca-se que a grande maioria dos artigos encontrados e analisados se referem a contextos de países desenvolvidos, sendo essa a limitação do estudo: pouca produção nos países do sul global. As desigualdades de gênero nas atividades de casa, nos cuidados com os filhos e no trabalho foram destacados nesses contextos, mas o marcador social raça não estava presente nos artigos analisados. Os resultados desse estudo apontam para a necessidade crescente de abertura de espaços para discutir e questionar a hierarquia sobreposta na estrutura patriarcal, principalmente no tocante às mulheres negras, invisibilizada nesses estudos. Debates como esse contribuem para legitimar a luta no alcance da equidade, rompendo com as estruturas sociais que implicam as desigualdades entre os gêneros.