1.Introdução
O uso político da memória e as transformações no bairro de Lipótváros (Figura 1) em Budapeste, Hungria, era o tema da minha pesquisa. Minha escolha não foi súbita e nem despretensiosa. Conhecia bem a região e já havia estudado as políticas de saúde e educação do primeiro-ministro Viktor Orbán. Porém, a reforma dos monumentos ao redor do parlamento húngaro desde 2010 me causava inquietação e me motivou a estudá-la. Em um esforço quase auto-etnográfico1, este artigo é resultado de minhas reflexões sobre o processo de realização daquela pesquisa e o caminho até a definição do problema e da pergunta de pesquisa.
O impacto da reurbanização patrocinado pelo governo em Lipótváros foi tão brutal quanto as críticas recebidas de diferentes atores sociais. Fomentado pela minha conexão afetiva com a região, pelas conversas com amigos e pela imprensa, minha intuição dizia que algo de interesse das humanidades estava acontecendo ali e um outro fenômeno, seja lá qual fosse, poderia ser incorporado ao meu repertório de pesquisas sobre os atos políticos no país desde 2010.
Os estudos sobre os usos políticos da memória, sobre o valor subjetivo dos monumentos para o reenquadramento da memória coletiva e sua relação com a identidade, a criação do outro e o reforço do conceito de nação confirmavam a possibilidade do meu objeto, tema e arcabouço teórico, mas faltava formular o problema em uma frase e definir a minha questão de pesquisa. Apesar dos esforços, leituras e discussões com acadêmicos que supostamente poderiam me ajudar a identificar o problema e formular minhas questões, eu não avançava.
Eu precisava encontrar a minha saída assim como Kafka usou a desterritorialização para libertá-lo das armadilhas da linguagem e dos subjetivismos da opressão (Deleuze & Guattari, 2003, pp. 06, 10, 13). Só assim eu definiria o problema para aquele artigo de uma forma que não era óbvia para mim. Meu caminho não seria o dos manuais de metodologia nem a resposta estava onde eu esperava. Este ensaio reflexivo escrito (propositalmente) em primeira pessoa, um pouco estranho às convenções académicas, pretende justamente documentar a minha experiência em reconhecer quem é o objeto, saber o que esperar dele e ser capaz de responder uma questão prática: seria vantajoso para um estudo de monumentos dispô-los em linhas de uma planilha e compará-los pelos critérios de análise em suas colunas?
Apresentarei alguns conceitos sobre arte e ciência, a construção normativa ou positivista do conhecimento e o uso de representações como uma alternativa possível para a pesquisa qualitativa nas ciências sociais (Becker, 2007b, 2010). Analisarei também os caminhos metodológicos escolhidos e que resultaram em erros que hoje identifico e reflito a respeito com algum distanciamento.
O uso da história oral (Pollak, 1989, 1992; Traverso, 2014, 2020, 2021) como recurso de análise das subjetividades naquele contexto foi um acerto que preciso comentar.
Os autores da história (Hobsbawm, 2012; Riegl, 2020) e das teorias ator-rede (Callon & Latour, 1981; Latour et al., 2012; Law, 2016) me ajudaram na análise do valor e da contemporaneidade dos monumentos e a tomada de decisões e escolhas estéticas. Antes de concluir, apresentarei alguns elementos que surgiram ao longo da pesquisa e a limitação de escopo estabelecida pelo método e objeto a partir da definição de revisionismo histórico (Traverso, 2020).
Além dos meus diários de campo3 e da bibliografia multidisciplinar, utilizei informações obtidas em portais de notícias, medias sociais e mecanismos de busca online. Os dados catalogados ao longo do meu estudo sobre as transformações em Lipótváros ilustrarão algumas situações de campo, especialmente os monumentos (individuais ou agrupados) sumarizados na Tabela 1.
Não são apenas o mundo e as pessoas que se transformam ao longo do tempo e a cidade não é apenas um cenário dessas metamorfoses. Os espaços urbanos, com seus edifícios e monumentos são também testemunhas e vítimas de processos sociais e não podem ser ignoradas. Assim, pretendo demonstrar que, mesmo quando inanimados, os objetos de pesquisa e o seu curriculum vitae (Latour et al., 2012, p. 608) precisam ser compreendidos sob diferentes pontos de vista no processo de geração de conhecimento pois há outras formas de pensar o mundo, além do positivismo científico ou rigidez acadêmica.
2.Estética, Representação Social e Verdade
Até o século XVI, a ciência e a arte andavam juntas, mas foram separadas pela racionalidade científica (Santos, 2018, pp. 34-35). Enquanto a ciência se responsabilizou por explicar objetiva e racionalmente o mundo, a arte imaginava-o de forma criativa, fazendo da subjetividade o seu meio e fim (Gergen & Gergen, 2018, p. 56). Porém, apesar de seus objetivos estéticos, a arte nunca deixou de ser uma representação social (Becker, 2007b, pp. 116-117). Poderíamos então usá-la como fonte de novos conhecimentos?
A produção artística é um processo complexo, colaborativo e específico de criação e legitimação onde os meios, métodos e linguagens são estrategicamente escolhidos (ou excluídos) pelos seus produtores que esperam que o público seja capaz de compreender e entender a obra como verdadeira (Becker, 2007b, p. 116).
Porém, essas decisões não são aleatórias ou experimentais, mas decisões que consideram fatores endógenos e exógenos dentro do seu contexto organizacional (Becker, 2007b, p. 16) ou institucional, como prefiro chamar. No entanto, o artista não consegue controlar como o público interpretará ou utilizará a sua obra (Becker, 2007b, p. 18), podendo, inclusive não ser aceita, valorizada ou amplamente apreciada por públicos que reagem de maneira adversa (Crane, 1992, p. 07).
A Figura 2 tenta representar em um diagrama como as interpretações permeiam toda essa capacidade dos produtores e consumidores para estabelecer um entendimento comum para as representações, sobretudo pelo uso de convenções.4
Os monumentos de Lipótváros não deixam de ser representações artísticas que atendem aos desejos do homem moderno de conhecer, além de suas experiências pessoais, o que se passou em outros tempos e locais (Becker, 2007b, p. 05), além de seu impacto sobre a memória coletiva. As descrições feitas até aqui têm pontos de contato com as análises sobre outros modos de gerar conhecimento, como Law (2016, p. 23) fez com o barroco. Os monumentos podem ter valor artístico e serem, concomitantemente, fontes para produção de conhecimento em diferentes perspetivas, embora seu potencial possa ser parcialmente negligenciado pela abordagem positivista.
Quando iniciei o planeamento da minha pesquisa sobre monumentos, quis organizá-los de uma maneira lógica e categorizá-los. Fui consultar se existiam tais critérios no conhecimento existente na arqueologia, arquitetura e urbanismo. Em resposta, recebi críticas de que aquele caminho não tinha propósito e os meus motivos para criar categorias para o seu estudo foram questionadas, o que eu mecanicamente me defendia alegando que era necessário compará-los para analisá-los.
Naquele momento, eu pensava que a única forma de gerar conhecimento seria com critérios objetivos de análise, com suas inclusões e exclusões, suas simplificações em modelos e com a ajuda de lentes segmentadas (variáveis), tão criticadas por Santos (2000) e Law (2016, p. 21). Não seria incrível construir uma planilha enorme onde cada linha fosse um monumento e as colunas fossem critérios de análise? Se conseguisse incorporar variáveis binárias, seria maravilhoso!
Mas que lentes eram essas? Onde esse esforço me levaria?
Essa última pergunta era difícil de responder àquela altura, quando nem eu sabia bem para onde ia. Não tinha um problema ou uma pergunta de pesquisa formulados e segui pragmaticamente com os esforços para a construção da tal planilha: foquei no método com a esperança de que a mágica aconteceria.
Minha primeira preocupação foi com relação à amostra e sua representatividade, já que eu não podia trabalhar com todos os monumentos existentes e selecionei previamente alguns do meu interesse. Eu me sentia na obrigação de justificar tais escolhas. Então, antes de categorizar, criei uma lista de critérios que explicavam escolha daqueles monumentos e não outros (Ares, 2021, pp. 7-8). Arbitrariamente, defini que analisaria 48 objetos (Ares, 2021, p. 05) e não mais, afinal, como em toda pesquisa, meu tempo e recursos eram escassos e definidos pelas instituições na qual eu me inseria (Law, 2016, p. 19). Ao considerar que alguns eram mais importantes que outros para os meus objetivos, eu estava na verdade definindo os grupos (Becker, 2007a, p. 10) ou estabelecendo o otherness (Law, 2016, p. 22). Estava realizando uma pesquisa qualitativa formatada em métodos quantitativos (inclusive na linguagem) e afunilando as possibilidades com delimitações (inclusive espaciais) para a investigação. A Figura 1 ilustra como referenciei os locais selecionados no mapa e as diferenciações e segregação (com cores e quadrantes) do que não seria analisado.
O esforço seguinte foi ler os autores escolhidos em busca das tais lentes e perspetivas para inserir nas colunas da planilha. Finalmente, percebi que era possível criar categorias: valor intencional e não intencional do monumento, valor histórico ou valor artístico, material ou subjetivo, estilo (estética), acesso livre ou restrito, valor de antiguidade ou tradição inventada, entre outros.
No entanto, meu erro foi crer que, uma vez categorizados, seria possível comparar esses monumentos para identificar padrões que me indicariam algo interessante para ser aprofundado ou explicado. Encontrei coincidências tão relevantes para a humanidade quanto a relação entre o número de bebês recém-nascidos e o consumo de cápsulas de café expresso em 2012 em Lisboa.
Porém, essas mesmas leituras começaram a criar segmentações e relações não mais entre os monumentos, mas entre os meus pensamentos e sobre cada um deles individualmente. Então iniciei o terceiro passo do meu método sem causa: mergulhei na história de cada um dos monumentos para buscar os dados e preencher a tal planilha. Uma busca online em muitos blogs, notícias de jornais, um website de colecionadores de registos sobre monumentos húngaros, acervos de museus e registos fotográficos me mostraram que, mais do que qualquer categoria ou planilha, cada monumento era único e tinha uma história de vida paralela e, por vezes, sincronizada com os desenvolvimentos políticos, sociais e urbanos daquele lugar.
Exatamente como planejado, eu tinha em mãos os monumentos da cidade fatiados como se fossem os cortes de carne na Figura 3, prontos para serem avaliados e comparados pelo seu peso, cor, textura, cheiro e outros atributos. Cada parte individual servia à diferentes propósitos, tanto no animal vivo quanto morto, mas ao mesmo tempo aquilo já não era mais um boi, um porco, uma galinha ou uma ovelha. Assim como o animal no talho já não era mais o animal da fazenda, meus monumentos fatiados já não existiam per se e nem me serviam mais.
Por fim, quero aqui compartilhar como foi a busca por trabalhos acadêmicos sobre aqueles monumentos. Eu tinha interesse particular sobre dois deles, localizados na Praça da Liberdade (Figura 1, dir., Área II): às Vítimas da Invasão Alemã e o seu contra-monumento. Me deparei então com o estudo de Eröss (2016) e sua análise contextualizada sobre aqueles exemplares. Senti uma inveja acadêmica e uma deceção: se algo pudesse ser escrito sobre aquelas duas obras, já estava feito. Por conseguinte, uma nova falha foi detetada no meu método: eu estava vendo o superficial, o óbvio, aquilo que outras pessoas já tinham visto e pesquisado. Eu poderia acrescentar nada ou algo pouco relevante para o tema.
Então, com a planilha pronta e com as fotos catalogadas, voltei-me mais uma vez para os monumentos e para a biografia deles. Dentre tantos enganos, meu acerto foi ouvir a história individual de cada um desses monumentos e compreendê-los tanto como vítimas quanto testemunhas das relações sociais no tempo e espaços que ocupavam.
O olhar descritivo e normativo acabou me ajudando a identificar que, além da materialidade, aqueles monumentos tinham histórias e subjetividades neles contidas que iam além das racionalidades, das experiências dos observadores casuais ou das possibilidades de uma planilha. Meus monumentos se aproximavam das observações de Law (2016, pp. 26, 28, 29) sobre a subjetividade, a transcendência do sujeito e materialização. A materialidade dos monumentos era visível, mas como entender a alma desse meu “novo” objeto de estudo e a forma com que esses monumentos transcendiam a sua própria existência? Encontrei as respostas em diferentes fontes, começando pela compreensão da relação entre eles e a história oral.
2.1 Inquietações e conflitos, erros e acertos
É possível resolver as disputas sobre o passado com o estudo normativo da história, mas proibir o revisionismo seria o mesmo que dizer que existe uma história oficial (Traverso, 2020, p. 185). Nem a memória e nem a história são duradouras, contínuas ou estáveis (Pollak, 1989, pp. 03, 09). Novos fatos, evidências, teorias, tecnologias e interferências da dimensão política e social da memória podem mudar interpretações e a forma como escrevemos a história (Traverso, 2020, p. 29). Porém, esperar que a verdade sobressaia a partir de um duelo entre as versões em disputa em nome da defesa da liberdade de expressão pode ser demorado enquanto os neofascismos se legitimam sobre narrativas alternativas ou negacionistas. Há um paradoxo entre o perigo de se controlar o que é a verdade e o de aceitar tudo. Outro problema é encontrar um árbitro independente capaz de decidir o que é verdade sem reproduzir as relações de poder.
Não considerei tudo verdade e nem refutei versões subterrâneas porque nunca foi o meu objetivo avaliá- los. Pelo contrário, estava interessada nas representações em sua forma material, como os monumentos, e subjetiva, nas memórias e narrativas que os envolviam.
A história oral nem sempre pode ser comprovada por evidências, mas pode nos indicar como os subjetivismos das fontes foram impactados por eventos no tempo, como as mudanças de regimes políticos e os esforços de enquadramento da memória coletiva (Pollak, 1992, p. 09). Por isso, confrontei fontes oficiais e informais, como os blogs, buscando consistências entre datas, eventos, contextos e narrativas sobre os monumentos, sem ignorar que a história oral é sempre construída em um milieu social (Halbwachs, 1992, p. 49; Santos, 2000; Traverso, 2020, p. 183).
É possível que mitos sejam incorporados às histórias dos monumentos para ressaltar memórias e reforçar narrativas específicas, como o medo de autoritarismos ou o fim das utopias (Traverso, 2020, pp. 141-142, 2021, p. 05), ou não. Talvez sejam mecanismos de testemunhos de vivências projetadas e transmissão entre gerações, no âmbito doméstico ou clandestino, sobretudo quando contradizem o discurso público e oficial (Pollak, 1989, pp. 04, 08-09, 1992, p. 03).
O monumento ao Conde Andrássy (#03, Figura 1) ilustra o que acabo de descrever. A versão de que a estátua de um conde, alinhado à ocupação austríaca, fora derretida durante a ocupação soviética e seu metal usado para fabricar a de Stálin e que, por sua vez, seria derrubada por 400.000 rebeldes5 durante a Revolução em 1956 pode ser interpretada como uma projeção coletiva sobre a libertação dos húngaros de sucessivos eventos de opressão e ocupação. Neste caso, houve uma transferência das subjetividades do povo para a biografia da estátua e vice-versa. Não consegui comprovação tal versão, mas a história oral, mesmo que fantasiosa, “mostra que a memória é construída socialmente e transmitida como uma representação e não uma reconstituição da realidade (Pollak, 1992, p. 08)” (Ares, 2021, p. 10).
Nessas narrativas, as fronteiras entre o eu e do outro se enfraquecem, se confundem ou se expandem para além da racionalidade (Law, 2016, p. 26) e alguns desses fenômenos somente são observados quando deixamos a planilha e as narrativas oficiais de lado e utilizamos ferramentas emancipatórias para analisá-los (Santos, 2000, 2007).
A história oral e a memória de monumentos são complexas e não seguem a regra positivista, mas não são menos importantes, nem devem ser ignoradas ou silenciadas. Mas por que tais monumentos existem? Teriam eles o mesmo papel social ou mesmo valor durante toda a sua existência? No século IXX, Riegl (2020) se preocupava com o culto moderno dos monumentos e como eles eram valorados e me inspirou a discorrer sobre os atributos de antiguidade, história e memória intencional.
O valor de antiguidade é percebido quando o monumento parece pertencer à um outro tempo ou memórias que não o presente, sem que necessariamente tenha valor histórico (Riegl, 2020, pp. 16, 27- 34). Quanto mais antigo parecer, maior o valor de antiguidade.
Nesse sentido, qualquer pessoa que ande pelas ruas de Budapeste, mesmo sem conhecer a história da cidade, consegue distinguir as construções de outras épocas que resistiram ao tempo e ao desgaste natural.
O valor histórico de um monumento é a sua capacidade de testemunhar um tempo ou evento que existiram no passado, já não existem mais e nem podem ser recriados ou repetidos (Riegl, 2020, p. 10). São representações para se entender o passado.
Quanto mais protegido, integro, original e completo forem os artefactos, melhor será a sua capacidade de representação e memória e maior é o seu valor histórico (Riegl, 2020, pp. 34-39). Assim, obras de restauro, requalificação, revitalização ou reurbanização de monumentos e espaços públicos podem ser alvo de críticas, como aconteceu em Lipótváros quando afetaram o valor histórico.
O valor de memória intencional (Riegl, 2020, pp. 14-15) é determinado pelas intenções originais dos criadores, autores ou patrocinadores atribuídas aos monumentos históricos no momento da sua conceção. Por outro lado, o autor não consegue controlar como sua arte será interpretada ou utilizada pelo público (Becker, 2007b, p. 18), podendo ela não ser aceita, valorizada ou amplamente apreciada como desejado. Assim, os monumentos podem também adquirir ou terem outros significados e memórias atribuídos a eles de acordo com as subjetividades geradas a partir e ao longo da sua existência, no que chamamos de valor não intencional.
O valor não intencional atribuído subsequentemente pode ser um argumento contra a relevância de um dispatcher para garantir a ordem social das coisas (Latour et al., 2012, pp. 601-602), a partir do momento que pode ser desautorizado ou deslegitimado ao longo da sua existência, confrontando o determinismo arbitrário de sua origem (Santos, 2008, p. 41).
O Monumento às Vítimas da Invasão Alemã (#16, Figura 1) analisado no trabalho de Eröss (2016), por exemplo, foi repudiado pelo público e motivou um contra-monumento espontâneo no mesmo espaço como protesto e resistência simbólica.
O valor intencional do Museu do Chocolate da Confeitaria Szamos (#37, Figura 1) trata-se de tradição inventada (Hobsbawm, 2012). Embora recrie um ambiente da década de 20, quando nem mesmo a empresa tinha sido fundada6, um visitante pode crer que o lugar tem valor histórico e de antiguidade justamente pela intenção de seus idealizadores em resgatar a memória e tradição em torno dos cafés desde a ideação do projeto, mesmo não sendo autêntico. Trata-se de uma iniciativa privada que contribui para o culto de nostalgias (Bauman, 2017) pré-1945 na praça Kossuth (Figura 1, dir., Área I).
Os valores intencional, histórico e de antiguidade podem se transformar, (des)equilibrar e se confundir na linha do tempo pelas intervenções exógenas, como os grupos no poder e seus interesses. Consequentemente, a transformação material dos monumentos por decisões políticas afeta a memória coletiva que está se “construindo, desconstruindo e reconstruindo” (Pollak, 1989, p. 12).
A Tabela 1 lista os monumentos na Praça Kossuth em honra à Revolução de 1956. Desde a transição para a democracia em 1989, os mártires e as vítimas daquela revolução foram rememorados em pelo menos quatro monumentos na região. A realocação de três deles ilustra as transformações materiais e alterações de valores: dois foram transferidos para outros sítios da cidade e o terceiro, para um museu subterrâneo na mesma praça.
O único deles que permaneceu às vistas dos transeuntes são as Marcas de Balas no Ministério da Agricultura que simbolizam o massacre dos rebeldes pelo exército vermelho. Logo esse edifício será remodelado e pode ser que essa instalação também seja alterada.
Pelos registos fotográficos e pela análise das histórias de cada um desses monumentos, pude observar que, embora todos rememorassem 1956, eles eram únicos e exclusivos (Ares, 2021, pp. 20-22). Não foram idealizados pelas mesmas pessoas nem ao mesmo tempo. Cada um deles tem materialidades e propósitos (honrar vítimas, mártires e ideais, por exemplo) distintos e o público (e a cidade) se apropriou deles, interagindo (modos de usar) e criando subjetividades e significados exclusivos. Da mesma forma, por ocuparem a mesma praça, podiam ser analisados conjuntamente pela sua capacidade de criar microterritórios onde eventos políticos e violentos aconteceram. Mas a transformação da praça rompeu essa coletividade (corpus) e estabeleceu um novo equilíbrio entre os valores e as memórias desde 2010.
O monumento em honra à Kossuth é outro exemplo interessante sobre esses monumentos alterados ao longo do tempo para servir aos propósitos de propaganda ou reforçar ideologias e memórias coletivas. Quem hoje passa pela praça, depara-se com uma imagem nova (e sem valor de antiguidade!) em mármore. Para apagar as marcas do período comunista, em 2015, foi reestabelecida a versão de 1927 que, em 1952, havia sido substituída por uma réplica em bronze que mostrava soldados e trabalhadores no lugar dos membros da elite intelectual que formavam o governo Batthyany (1848-1849). As três versões do monumento guardavam semelhanças entre si, mas suas existências foram completamente independentes (materiais, cores, formas, signos etc.) e não simultâneas.
Para capturar a importância histórica, política e social daquele lugar, era necessário analisá-lo como um palimpsesto (Santos, 2000, p. 221), atentando para a temporalidade, singularidade e coletividade daqueles que ali coabitavam, sem dissociá-los ou hierarquizá-los (Latour et al., 2012, p. 593). Cada monumento tinha sua própria trajetória individual e coletiva e eram simultâneos mas não necessariamente contemporâneos (Agamben, 2009). Portanto, o que eu observava ali não poderia ser representado de forma cartesiana ou em minha planilha bidimensional.
No princípio, suspeitava que os políticos fossem os grandes atores a serem pesquisados.
Entretanto, quanto mais analisava a existência e transformações (causadas ou sofridas) por aqueles monumentos em seu contexto social, no tempo e no espaço, mais eu os relacionava à definição de atores.7 Os atores não precisavam ser necessariamente humanos e, quanto mais eu quisesse localizá-los, mais eu precisaria desvendar (ou estabelecer) suas redes (Latour et al., 2012, pp. 592, 600, 601). E foi esse o caminho que eu acabei seguindo.
Sobre o estilo dos monumentos, não me aprofundarei nessa área, mas observei que a transformação daquela área não se movia para a modernização, mas por vezes resgatava os estilos anteriores à II Guerra Mundial. A substituição dos monumentos despertou meu interesse de pesquisa no sentido que alguém havia tomado tal decisão por algum motivo outro que não o de modernizar. Afinal, alguém precisou escolher homenageados e eventos que mereceriam ser relembrados hoje naquele local simbólico, nas redondezas do parlamento e onde aconteceu o massacre de 1956. Qual seria a estética para essa representação?
A escolha do monumento aos Mártires Nacionais de 1918-1919 que substitui o Monumento à Imre Nagy (#09, Figura 1) foi um desses casos. Um monumento neoclássico, com a imagem de um homem nu (o herói) matando um dragão (o mal) com as próprias mãos (força), tomou o lugar do herói da Revolução de 1956, mesmo sem condizer esteticamente com o seu entorno. Seria possível estabelecer alguma relação entre as narrativas que se objetivava restaurar e o passado? A resposta estava além do meu escopo, mas o resgate dos neoclássicos pelo nazismo é um tema possível, como no documentário Arquitetura da Destruição (Cohen, 1989).
Inicialmente, me interessava pelo que era retirado, sem dar a mesma atenção aos elementos que estavam sendo adicionados àquele espaço. Mas novas questões surgiram: se os monumentos de 1956 estavam sendo retirados, quais monumentos estavam sendo trazidos para as vistas do público? Porquê? A resposta talvez estivesse nas camadas e no eclipse que exaltam algumas memórias colocando outras na sombra (Traverso, 2020, pp. 138-140, 2021, pp. 01-21). Nesse sentido, o monumento da Solidariedade Nacional (ou da Coesão Nacional) (#12, Figura 1), inaugurado em 2020 na Praça Kossuth, me mostrou outras perspetivas de análise por rememorar publicamente o centenário do tratado do Trianon, as perdas após a I Guerra Mundial e o declínio do Império Austro-Húngaro.8,9 O trauma e o (res)sentimento da perda foram lamentos do governo de Miklós Horthy (1920-1944) que legitimaram a aproximação ao fascismo e nazismo para reaver os territórios. Desde 2010, governo húngaro tenta resgatar essas memórias e revive constrangimentos com os países vizinhos (Kovács, 2016, p. 523).
Conjuntamente às outras adições na área, esses novos monumentos reforçam entre si a narrativa de que os húngaros foram vítimas das duas Guerras Mundiais10, do Trianon e da invasão alemã. Atualmente, tenta-se resgatar a estética da Praça Kossuth anterior à era comunista e (re)significar o governo Horthy como sendo um período em que o povo húngaro tentou se reerguer e emergir soberano. Há ainda um esforço para sombrear o período comunista (1945-1989) e a Revolução de 1956 enaltecendo eventos anteriores a 1945. O escopo e método da minha pesquisa poderiam confirmar que aquelas obras eram intencionalmente planejadas para priorizar certos eventos históricos e reforçar os discursos que favoreciam politicamente o governo no reenquadramento da memória coletiva ou social.
Porém, as acusações contra Orbán eram mais graves, sobretudo de revisionismo histórico pelos seus discursos e ressignificação dos espaços e monumentos urbanos (Bayer, 2016; Scanish & Eisen, 2019), e foi aqui que encontrei a limitação da minha pesquisa. Traverso (2020, pp. 180-181) usa exemplos muito específicos de negacionismos históricos, falsas simetrias ou tentativas de amenizar os impactos de certos eventos, para definir os que seria revisionismo histórico. Compartilhando com a preocupação do historiador (Traverso, 2020, p. 186), conclui que minha pesquisa não seria suficiente para generalizações ou conclusões àquele respeito. Uma pesquisa conclusiva sobre o assunto exigiria a inclusão de outros objetos e temas, como os atos administrativos e outras manifestações políticas, analisados conjuntamente e de forma interdisciplinar, o que não era o meu caso. Minha pesquisa contribuía, mas não era suficiente para acusar nem inocentar o governo sobre aquelas acusações.
3.Considerações Finais
Dizer que “sociologia só é viva e produtiva quando examina todas as associações pelo menos com a mesma ousadia que os atores que as fazem”11 (Callon & Latour, 1981, p. 292) pode ser mais ambicioso e difícil do que aparenta e eu espero ter demonstrado neste ensaio que as correções e a mudança de perspetiva ao longo do percurso são importantes para estabelecer uma nova relação com o objeto e identificar problemas e questões que não estavam claras ex ante.
A separação da arte e da ciência atribuíram um caráter formal à produção do conhecimento (Santos, 2018, pp. 34-35) e a institucionalização da pesquisa estabeleceu métodos e procedimentos para documentar a produção para que fosse aceita, validada ou questionada por terceiros (Law, 2004). Esse debate também foi reforçado e legitimado por regras e hierarquias no ambiente acadêmico e agências de fomento, com métricas de avaliação de mérito e reconhecimento. A linguagem se tornou comum entre áreas e o modo de fazer pesquisa foi tão padronizado que podia ser descrito em manuais ou em formulários de submissão para a publicação ou fomento.
Fora do laboratório, a “terra não é plana” e para quase qualquer problema ou tema há um espectro de possibilidades e interações para serem investigadas. Se as dificuldades fossem as inúmeras variáveis (endó- ou exó-genas, controláveis ou não, in- ou dependentes etc), os modelos computacionais complexos logo conseguiriam dar conta dos desafios das humanidades. Mas o que se observa é que, ao banalizar o uso do ceteris paribus, renegar partes à black box (Callon & Latour, 1981, p. 285) e priorizar o modelo (e interesse) eurocêntrico (Santos, 2007), muitos temas e saberes foram excluídos da agenda positivista de pesquisa.
Ao refletir sobre o processo de construção da minha pesquisa com os monumentos, me lembrei da instrução de como fazer uma tulipa de origami (Figura 4) como sendo uma metáfora para minha experiência. A partir das folhas em branco, dobrei, desdobrei, redobrei, como diria Deleuze (1993: 137, apud Law, 2016, p. 43), e inflei para obter a forma multidimensional, “colorida”, que representasse satisfatoriamente o meu objeto e servisse aos interesses da minha pesquisa. Ao compreender o processo em várias dimensões, camadas (internas ou externas, visíveis ou invisíveis) e sobreposições, eu consegui encontrar o meu problema de pesquisa, suas limitações e algumas possíveis respostas.
As tulipas de origami, assim como as estátuas, não têm vida, mas nem por isso deixam de remeter quem as observa à subjetividades e significados. A folha de papel, assim como os monumentos, deixa de ser apenas um acessório e passa a ser um meio e um fim para aquele projeto. Assim, espero que este ensaio seja uma pequena contribuição para o debate e a reflexão sobre a importância de se pensar os objetos de pesquisa em humanidades de forma mais livre, temporal e efêmera, material e etérea, objetiva e subjetiva, livre de dicotomias excludentes (Callon & Latour, 1981, p. 284) ou das fronteiras positivamente pré-estabelecidas (Law, 2016).