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New Trends in Qualitative Research

versão On-line ISSN 2184-7770

NTQR vol.15  Oliveira de Azeméis dez. 2022  Epub 07-Mar-2023

https://doi.org/10.36367/ntqr.15.2022.e759 

Artigos Originais

Configurações Subjetivas da Psicoterapia em sua Divulgação no Instagram: Reflexões sobre a Atuação do Psicoterapeuta

Subjective Configurations of Psychotherapy in its Advertisement on Instagram: Thoughts on the Practice of Psychotherapists

Amanda Maria de Albuquerque Vaz1 
http://orcid.org/0000-0003-0424-1760

Valéria Deusdará Mori1 
http://orcid.org/0000-0002-5215-5472

1Centro Universitário de Brasília, Brasil


Resumo

No campo da psicoterapia, há uma lacuna de produção científica acerca das conformações e dos impactos do uso das redes sociais para a divulgação desta prática e para a divulgação do psicoterapeuta. Com nosso estudo, visamos contribuir neste sentido, direcionando nossa pesquisa especificamente à divulgação no Instagram. Tomamos a Teoria da Subjetividade como nosso fundamento teórico por ela permitir visibilizar e representar, em sua compreensão complexa dos processos humanos, os modos recursivos pelos quais tomam forma a realidade e a ação humanas individuais e sociais em uma história e em uma cultura concretas. Tivemos como objetivos: 1) investigar e discutir configurações subjetivas da psicoterapia em sua divulgação no Instagram, e 2) a partir disto, refletir sobre a atuação do psicoterapeuta. Este artigo se encontra organizado em: 1) introdução, 2) metodologia, 3) construção e análise da informação, e 4) considerações finais. Na introdução, apresentamos a Teoria da Subjetividade, debatemos o campo da psicoterapia e definimos nossas questões de investigação. Na metodologia, pormenorizamos o método que norteou nosso estudo - o método construtivo-interpretativo -, bem como apresentamos os participantes, o local e os instrumentos de nossa pesquisa. Na construção e na análise da informação, seção que corresponde aos resultados e à discussão, visibilizamos nosso movimento de tessitura hipotético-teórica em recursividade com o vivido no empírico, assim como apresentamos nossa produção teórica acerca dos processos subjetivos de um dos participantes de nosso estudo. Nas considerações finais, respondemos às questões de investigação que lançamos na introdução. As reflexões a que nossa pesquisa nos permitiu chegar acerca da atuação do psicoterapeuta se encontram presentes ao longo de todo o trabalho.

Palavras-chave: Subjetividade; Pesquisa qualitativa; Psicoterapia; Psicoterapeutas; Psicologia clínica

Abstract

In the field of psychotherapy, there is a gap in scientific knowledge concerning the paths and the impacts of using social media to advertise both psychotherapy and psychotherapists. With our study, we wish to contribute on that matter, directing our research specifically to this advertising on Instagram. We took Theory of Subjectivity as our theoretical frame because it allows visualizing and representing, in its complex understanding of human processes, the recursive ways in which human reality and action take place individually and socially in a concrete history and culture. Our goals were: 1) to investigate and discuss subjective configurations of psychotherapy in its advertisement on Instagram, and 2) from that, to debate the practice of psychotherapists. This paper is divided in: 1) introduction, 2) methodology, 3) information construction and analysis, and 4) final remarks. In the introduction, we present Theory of Subjectivity, debate the field of psychotherapy and define our investigation questions. In the methodology section, we discuss the method we used - constructive-interpretative method -, as well as present our research’s participants, place and instruments. In the information construction and analysis section, that correspond to our results and our discussion, we present our hypothetical-theoretical movement, recursively developed with what we experienced on the field, as well as show our theoretical production on the subjective processes of one of our research’s participants. In the final remarks section, we address our investigation questions. The thoughts on the practice of psychotherapists that our study allowed us to weave are present in all sections of this paper.

Keywords: Subjectivity; Qualitative research; Psychotherapy; Psychotherapists; Clinical psychology

1.Introdução

Teoria da Subjetividade

Iniciamos este trabalho apresentando o corpo teórico em que ele está fundamentado. A Teoria da Subjetividade é um recurso heurístico para o estudo e para a compreensão dos processos humanos, estando amparada em uma perspectiva cultural-histórica, crítica e de complexidade. Nesta teoria, a subjetividade é tomada como sistema complexo cuja qualidade diferenciada é a integração emocional-simbólica nas condições da cultura (González Rey & Mitjáns Martínez, 2017). Assim, a subjetividade é entendida como sistema gerador e autogerador, espontâneo, contraditório, tensionado e tensionável, multiplamente constituído e constitutivo, dinâmico, processual e de estabilidade relativa. Este sistema se mantém sensível ao curso do vivido das trajetórias concretas de pessoas, grupos e instituições, se configurando e reconfigurando na emergência e na mobilização de novos processos emocional-simbólicos.

A unidade mais básica, elementar e dinâmica da subjetividade é o sentido subjetivo. Em sua gênese, o emocional se torna simbólico e o simbólico se torna emocional, sendo produzida nesta união a especificidade de fenômeno que é precisamente o subjetivo. Ao convergirem entre si, organizando formações psicológicas de certa estabilidade, os sentidos subjetivos geram configurações subjetivas. Ressaltamos que as configurações subjetivas integram sentidos subjetivos produzidos em diferentes relações, contextos e momentos do curso da experiência de pessoas, grupos e instituições. Assim, esta categoria teórica subsidia o entendimento dos processos humanos em sua complexidade (Mori, 2020), indo além do dado, do explícito, do enunciado e do imediato. Núcleos de simbolização emocionalmente carregados (González Rey, 2007), as configurações subjetivas participam da constituição da natureza subjetiva do vivido, produzindo/perpetuando estados subjetivos específicos que compõem a experiência tal como vivida por quem a vive. Contudo, as configurações subjetivas não a determinam, como se fossem barreiras intransponíveis. Novos sentidos subjetivos também tomam parte nisto, uma vez que eles emergem em toda a experiência humana, e para além do consciente e do racional. Estes sentidos subjetivos podem inclusive vir a ser processualmente integrados a essas formações, as reorganizando; e, neste sentido, reorganizando a qualidade privilegiada de subjetivação da experiência que elas compõem.

Por integrar o emocional (individual) e o simbólico (social), a subjetividade é simultaneamente individual e social. Assim, “subjetividade individual” e “subjetividade social”, duas das categorias teóricas mais importantes da Teoria da Subjetividade, não caracterizam uma dicotomia, mas sim evidenciam diferentes níveis da subjetividade, tendo sempre que ser situadas uma em relação à outra por se conformarem conjuntamente. A subjetividade individual diz respeito à produção subjetiva da pessoa em seu vivido. Por sua vez, a subjetividade social diz respeito à produção subjetiva daquilo que é compartilhado na vida e no mundo humano em sua concretude, ou seja, na vida e no mundo humano situados historicamente e socialmente (González Rey, 2017). Assim, a subjetividade social fala de sentidos subjetivos mobilizados e articulados dentre e em uma configuração de configurações subjetivas (González Rey, 2018), e envolve, nos modos em que estão subjetivados, o discurso, a linguagem, os mitos, as crenças, as representações sociais, a moralidade, a ideologia e o simbólico, dentre outras produções da cultura. Salientamos que a subjetividade social não se refere a um número pré-fixado de pessoas reunidas, e sim à produção subjetiva como fenômeno de qualidade diferenciada. Quando falamos da subjetividade social configurada quando diferentes subjetividades sociais se conformam conjuntamente entre si, operamos também com a categoria teórica “subjetividade social dominante”. Esta subjetividade social se caracteriza por exercer certa hegemonia, devido à sua estabilidade e à sua força, sobre outras subjetividades sociais organizadas na esfera em questão.

Apontamos ainda que a Teoria da Subjetividade pensa as categorias teóricas “agente” e “sujeito” para adereçar as pessoas, os grupos e as instituições, a depender de como produzem subjetivamente. Diz-se que alguém emerge como “agente” quando seus processos subjetivos fazem com que este alguém, ainda que ativo em suas mobilizações e em suas movimentações, siga alinhado à normatividade de seus contextos. Por outro lado, diz-se que alguém emerge como “sujeito” quando seus processos subjetivos abrem novas vias de subjetivação e novas alternativas de vida, transgredindo e transcendendo de maneira autoral as diretivas de seus espaços sociais.

Assim, o sujeito tem “(…) um papel ativo, emocional e intencional diante das decisões em sua vida, com seus próprios critérios e recursos subjetivos, participando e envolvendo-se nas experiências que o cercam e, principalmente, abrindo novos caminhos de produções subjetivas nas experiências vividas.” (Montú et al., 2021, p. 52).

Psicoterapia: Que Campo É Esse?

Para que sigamos, é fundamental que lancemos um olhar para o campo da psicoterapia. Escolhemos debatê-lo com ênfase no nível social da subjetividade, dimensionando-o em sua organização histórica como área da Psicologia no século XIX e em sensível, contínua e recursiva conformação com processos cronologicamente mais recentes e atuais. Este movimento de tratar ao mesmo tempo de diferentes períodos históricos é algo que a definição de subjetividade em que estamos amparadas nos permite, e devido: 1) à temporalidade própria deste sistema, que integra o passado (e o futuro) na produção subjetiva atual (Goulart et al., 2020), e 2) à convivência de diferentes gerações em um mesmo período histórico, que organiza uma heterogeneidade de processos subjetivos configurados conjuntamente (González Rey, 2017).

Esses dois motivos também fazem com que conformações das instâncias sociais - ou seja, tudo aquilo que está subjetivado por pessoas, grupos e instituições, como o discurso, a linguagem, as representações sociais, etc. -, não tenham como determinar univocamente, em uma relação de externalidade e de subordinação, os sentidos subjetivos e as configurações subjetivas. Isto acontece mesmo ao falarmos da subjetividade social dominante e da força bastante considerável que ela exerce. A participação das emoções na subjetividade, bem como a vasta diversidade do simbólico, faz com que os sentidos subjetivos e as configurações subjetivas sejam necessariamente produção, e não meramente reprodução e/ou repetição. Com isso em mente, ponderamos que a categoria teórica “discurso”, que adereça um tipo de conformação das instâncias sociais, não é contrária à aproximação que a Teoria da Subjetividade faz dos processos humanos. Ela é complementar, e justamente pelo discurso estar configurado subjetivamente. Contudo, ressaltamos que esta complementaridade precisa ser considerada em termos deste caráter gerador, imprevisível e de infinitas possibilidades da subjetividade (González Rey, 2018, 2019ª).

Tomando esse cuidado, escolhemos tratar da conformação do campo da psicoterapia nos apoiando nas considerações de Foucault (1998, 2011) e de Rose (1998) sobre a constituição de um discurso técnico-científico específico, organizado inicialmente por volta do final do século XVIII e até meados do século XIX. Seu domínio e seu alcance se devem, a nosso ver, aos modos pelos quais ele se entrelaçou e segue entrelaçado à subjetividade social dominante em escala global em suas relações com: 1) o quadrimotor ciência-técnica-indústria-economia (Morin, 2011); 2) a governamentalidade e suas tecnologias de subjetividade (Foucault, 1991; Rose, 1998); 3) os processos de globalização, e 4) a digitalização e a virtualização do existir e do viver (Segata & Rifiotis, 2021). Este discurso técnico-científico é a clínica; ou, em verdade, a partir de Foucault e Rose, é possível pensar a clínica não apenas como um discurso técnico-científico, mas como um dispositivo (Foucault, 1998).

O nascimento da clínica é também o nascimento da Medicina como ciência positiva (Foucault, 2011) e, neste ínterim, como lógica e operações neutras empreendidas no/para o indivíduo doente; ou melhor, como lógica e operações neutras cujo objeto vem a ser por excelência a doença - e em sua instalação e progressão no indivíduo enquanto entidade de curso e expressões definidas. Levando em consideração a expressividade das alianças tecidas no solo social e cultural que culminaram em seu surgimento e em seu desenvolvimento, bem como os métodos e os resultados por ela gerados, a clínica se converteu em modelo para diferentes áreas do conhecimento e da prática, notadamente a emergente Psicologia em sua busca por legitimação, por emancipação e por responder às demandas colocadas para ela por essas alianças (Rose, 1998). Assim, a clínica participa hegemonicamente da organização do campo da psicoterapia, oferecendo como seu principal fundamento o foco na doença mental. Esta é entendida como: 1) universalidade coisificada - portanto, o foco fica no diagnóstico, no controle interventivo e na predição da evolução da doença mental de modo neutro -, e 2) passível de ser lidada mediante prescrições e interdições direcionadas ao indivíduo enquanto unidade essencial da sociedade.

Para fechar esta seção, evidenciamos também dois processos cronologicamente mais recentes e atuais que, em nosso entendimento, atravessam configurações subjetivas do campo da psicoterapia na subjetividade social dominante:

novos desenrolares do dispositivo clínico, e 2) o advento da Internet nas infinitas formas pelas quais esta ferramenta e as inúmeras ferramentas organizadas a partir dela, notadamente as redes sociais, têm transformado a experiência humana nas dimensões social, cultural, política, econômica, ideológica, institucional, jurídica, científica e territorial.

No que tange ao primeiro processo, entendemos que o dispositivo clínico segue como modelo do campo da psicoterapia, porém contemporaneamente equipado com os avanços e as representações engendrados pela biomedicina, pela biotecnologia, pela tecnociência, pela neurologia, pela genética e pela própria Psicologia. Assim, os processos humanos são enxergados majoritariamente, no campo da psicoterapia, pelas óticas funcional, moral e comportamental (mais antigas), mas também pelas óticas informacional e de interações hormonais, neuronais e genéticas (mais novas). Eles são inclusive entendidos a partir de óticas mescladas, configuradas subjetivamente tanto nas interfaces entre essas áreas como na própria cultura e, assim, nas pessoas, nos grupos e nas instituições.

O segundo processo se conecta diretamente ao tema deste trabalho. Identificamos uma lacuna de produção científica, no campo da psicoterapia, acerca das conformações e dos impactos do uso das redes sociais para sua divulgação e para divulgação do psicoterapeuta. Com este estudo, visamos contribuir neste sentido, direcionando nossa pesquisa especificamente à divulgação no Instagram. Trazemos a Teoria da Subjetividade como fundamento teórico por ela nos permitir visibilizar e representar, em sua compreensão complexa dos processos humanos, os modos recursivos pelos quais tomam forma a realidade e a ação humanas individuais e sociais em uma história e em uma cultura concretas.

Portanto, ao nos propormos a pesquisar e discutir configurações subjetivas da psicoterapia em sua divulgação no Instagram, temos como questões de investigação: 1) de que maneiras a psicoterapia, para além de como é conscientemente e racionalmente explicitada e enunciada, está subjetivamente organizada em percursos e histórias de vida situados culturalmente? Que sentidos subjetivos estão integrados nessas configurações subjetivas?; 2) como esses processos subjetivos estão articulados a nível de subjetividade individual e a nível de subjetividade social?; 3) como esses processos subjetivos participam da divulgação da psicoterapia e do psicoterapeuta no Instagram? Que outros processos subjetivos participam desta divulgação?; 4) esses processos subjetivos podem ser pensados como emergência de agente ou de sujeito?

2.Metodologia

2.1 Método Construtivo-Interpretativo

O método construtivo-interpretativo, como caminho para o estudo e para a compreensão da subjetividade, consiste na movimentação recursiva, ao longo de toda a pesquisa, entre: 1) as construções do pesquisador em seu vivido, e 2) a tessitura reflexiva destas construções em hipóteses e modelos teóricos com a ajuda das categorias teóricas da Teoria da Subjetividade, em uma lógica denominada configuracional (González Rey, 2005; Mori, 2021). As construções do pesquisador, chamadas de indicadores, dizem respeito às ideias, suspeitas, pistas que ele gera acerca do que transcorre no processo de investigação. Dois ou mais indicadores permitem compor uma hipótese, e as hipóteses, organizadas entre si, permitem que o pesquisador desenvolva modelos teóricos acerca dos processos subjetivos configurados no decorrer da pesquisa. Desta forma, realizar um estudo por meio do método construtivo--interpretativo envolve: 1) levantar indicadores; 2) representar e visibilizar teoricamente sentidos subjetivos e configurações subjetivas em suas interações e integrações; 3) pensar e visibilizar teoricamente a subjetividade em suas articulações singulares a nível individual e social; 4) evidenciar e refletir sobre o caráter dos processos subjetivos em sua qualidade de movimentos de abertura ou não de novas vias de subjetivação e de novas alternativas de vida, e 5) pensar os movimentos de pessoas, grupos e instituições como de sujeito ou de agente, os debatendo e problematizando. Por sua vez, os modelos teóricos assim organizados possibilitam a abertura e o aprofundamento de zonas de inteligibilidade e de ação no campo e no tema em questão, sendo isto o que se entende por generalização teórica e como papel da pesquisa na perspectiva em que nos situamos (González Rey, 2014).

Portanto, no método construtivo-interpretativo, os indicadores podem surgir de diferentes fontes, que se conformam como tal a partir do que o pesquisador vive e pensa ao longo de toda a investigação. A multiplicidade de indicadores, bem como a multiplicidade de fontes de que eles brotam, serve a uma visão de complexidade dos processos humanos, uma vez que esta multiplicidade possibilita ir além do dado, do explícito, do enunciado e do imediato, assim como a categoria teórica “configuração subjetiva” (e até porque advém da articulação dos indicadores, realizada pelo pesquisador, a representação teórica das configurações subjetivas). Em nosso estudo, tivemos como fontes de indicadores, tanto em sua complementaridade quanto em sua contradição: 1) a fala tal como enunciada; 2) a qualidade do silêncio; 3) a articulação entre fala e silêncio em termos de como foram acontecendo emocionalmente e corporalmente; 4) o dito em articulação com o não-dito, ou seja, com o que entendemos e interpretamos nas entrelinhas; 5) os modos pelos quais o tempo foi vivido no decorrer dos encontros, e 6) o clima relacional do espaço de pesquisa, que se configurou como um espaço dialógico.

É fundamental apontar que o método construtivo-interpretativo constitui, junto com a Epistemologia Qualitativa e a Teoria da Subjetividade, um arcabouço epistemológico-teórico-metodológico indissociável, em que cada uma destas dimensões demanda as outras. Assim, o método construtivo-interpretativo está amparado em três pilares epistemológico-teóricos: 1) o caráter construtivo-interpretativo do conhecimento, que consiste no entendimento do conhecimento, enquanto fruto das construções e das interpretações do pesquisador no processo de pesquisa, como uma produção fundamentalmente teórica e subjetiva, expressão tanto da sensibilidade do pesquisador à realidade quanto de sua capacidade reflexiva e imaginativa (González Rey, 2019b); 2) a legitimidade do singular como fonte para produção do conhecimento, que reside no valor que a produção teórica tem na Epistemologia Qualitativa (Mori, 2020), e que entende o singular não como unicidade, mas como caso concreto particular, ou seja, como uma realidade diferenciada de constituição subjetiva (González Rey, 2011) cujo estudo é perfeitamente capaz de abrir e aprofundar zonas de inteligibilidade e de ação, cumprindo com o papel da pesquisa neste referencial, e 3) o caráter dialógico da produção de conhecimento, que diz respeito ao quão fundamental é, na produção de conhecimento, que o espaço de pesquisa se conforme como um espaço dialógico, ou seja, como um campo relacional de expressão autêntica e aberta, marcado pelo engajamento subjetivo e pelo interesse genuíno de todas as pessoas que o compõem (Coelho & Patiño Torres, 2022). Isto tem a ver com quanto, e com que abertura e profundidade, os participantes vêm a se envolver, se mobilizar e a se expressar no processo de pesquisa.

2.2 Participantes, Local e Instrumentos da Pesquisa

Os participantes foram três psicólogos recém-formados que fizeram seus estágios em psicoterapia e que, depois de graduados, se dedicaram a atuar como psicoterapeutas. Neste trabalho, chamamos nossos participantes de Luísa, Rodrigo e Felipe (nomes fictícios).

A pesquisa aconteceu no decorrer de quatro encontros virtuais em salas de reunião do Google Meet, em função de ter sido conduzida em um momento da pandemia de coronavírus em que o isolamento social ainda era imperativo no Brasil.

Em nosso estudo, utilizamos três instrumentos diferentes. O primeiro deles foi o diálogo, em virtude de sua conformação privilegiada enquanto processo subjetivamente engajado de relação com o outro. Em um segundo momento, utilizamos também indutores audiovisuais. No caso, escolhemos dois episódios de séries diferentes cujo denominador comum era seu retrato de sessões de psicoterapia individual. Eles foram eleitos por sua relação com o tema de nossa pesquisa, e por sua “(…) riqueza como modelo da vida real que facilita muito o envolvimento dos sujeitos estudados em nível de sentido subjetivo.” (González Rey, 2005, p. 69). Por fim, usamos o complemento de frases, um instrumento escrito que apresenta pequenas frases a ser preenchidas livremente pelos participantes. O valor do complemento de frases está em sua contribuição para que os participantes de uma pesquisa se expressem amplamente, mobilizando “(…) sentidos subjetivos diferenciados em áreas e aspectos muito distintos da vida das pessoas.” (González Rey, 2005, p. 57).

3.Construção e Análise da Informação

Diante do grande volume de informação que nossa pesquisa nos permitiu organizar (apenas a transcrição dos diálogos totalizou 173 páginas), fizemos a opção de trazer a construção e a análise referente aos processos subjetivos de apenas um de nossos participantes, Felipe.

No primeiro encontro de pesquisa, inteiramente amparado no diálogo, Felipe chegou atrasado, por ter sido demandado no trabalho para além de seu horário. Ao entrar na sala de reunião do Google Meet, ele se desculpou, se justificou e permaneceu em silêncio enquanto Rodrigo, Luísa e uma das pesquisadoras seguiam na conversa que estavam tendo entre si, a respeito de como foi sua chegada à Psicologia como curso de graduação e como viam a Psicologia ao entrarem na faculdade. Em dado momento, Rodrigo convidou Felipe para participar:

Rodrigo: Felipe, você quer falar alguma coisa? A gente já tá aqui falando há um tempão, conta da sua perspectiva aí um pouco...

Felipe: Uhum... Posso falar um pouco, sim... É... Falando disso, de como a gente enxergava a Psicologia antes, e como a gente enxerga agora... Sim, o meu contato com a Psicologia, por que eu decidi ir pra Psicologia, é bem clichê. Antes de conhecer, antes de eu ir pra minha psicóloga, entrar no processo terapêutico, o conhecimento que eu tinha de Psicologia era bem senso comum, minúsculo, assim: ‘ah, a Psicologia trata de gente doida’, sei lá, de gente fraca, alguma coisa do tipo...

Levantamos como indicadores a acompanhar tanto o atraso de Felipe, vinculado ao seu trabalho, quanto seu silêncio até Rodrigo o interpelar, nos questionando se e o que estes aspectos poderiam nos ajudar a pensar, oportunamente, sobre sua dinâmica de vida e seus processos subjetivos. A representação de Psicologia que Felipe trouxe que tinha até começar um processo psicoterapêutico, bastante vinculada à doença mental e a uma ótica moralista, foi algo a que sentimos que era importante nos atentar no decorrer da pesquisa, bem como o que ele trouxe sobre sua psicoterapia ter sido um marco de mudança dessa representação para ele. Felipe continuou:

Eu estava passando por um processo de luto, estava muito mal, e decidi buscar uma psicóloga. Quando eu encontrei ela, foi muito bom, assim... Ela... O bem que ela me fez, assim, foi uma coisa que eu não esperava, sei lá, eu sempre fui meio cético, assim, então, foi uma coisa que me impressionou bastante. Era uma época que eu já fazia o meu curso da UnB [universidade federal gratuita], já tava no quarto ano do meu curso da UnB, e tava desanimado com o curso também, e, sei lá, acabei que decidindo trocar pra Psicologia por causa desse contato dessa minha psicóloga, no sentido assim, ‘ah, quero fazer o que ela faz’ mesmo, dentro do consultório. Então, na minha primeira aula de Psicologia, assim, eu tinha isso na minha cabeça: ‘ah, eu quero ser psicólogo dentro dum consultório privado’.

Chamou-nos a atenção o modo que Felipe fala de seu processo psicoterapêutico, referenciando o bem vivido por ele como algo que a psicóloga lhe proporcionou; como algo, de certa forma, externo a ele e que lhe foi entregue por esta profissional. Ele não se implica, não traz sua própria participação neste bem que ele experienciou. Entendemos que este era um indicador importante a acompanhar, especialmente pelo vivido com esta psicóloga ter levado Felipe a se movimentar rumo a um novo caminho profissional (outro aspecto que tomamos como indicador). O que esta reorientação de curso de graduação mobiliza subjetivamente e em termos de trajetória de vida, e no que ela implica? Ficamos com estes questionamentos. Felipe seguiu:

Dentro da Psicologia, eu fui vendo que alguns valores que eu tinha, alguns pensamentos que eu tinha, naturalmente, assim, que eu pensava por mim mesmo, estavam na Psi... É... Eu sempre acreditei que as pessoas poderiam mudar, então, tipo assim, se você fez uma coisa ruim, você não precisa pagar por aquilo durante a sua vida inteira, você pode melhorar, você evolui, né... E, na Psicologia, quando eu estudei Psicologia, meio que... Eu... Fiquei interessado... Eu achei... Fiquei mais interessado ainda, porque na Psicologia eu vi uma fundamentação teórica pra isso que eu já pensava... Pô, como psicólogo, você acredita que as pessoas podem mudar o comportamento delas, porque senão... É, não faz muito sentido você tá lá, sei lá, na clínica, por exemplo...

Levantamos como indicadores a ser acompanhados, aqui: 1) a vinculação que Felipe teceu entre a Psicologia e seus valores pessoais; 2) a relação especificamente trazida por ele, neste sentido, entre “fazer algo ruim” e “pagar pela vida inteira”, e 3) a conexão que, ao que nos pareceu, ele fez entre melhorar, evoluir e, especificamente, mudar o comportamento - na medida em que nos questionamos se isto poderia apontar para uma representação de Psicologia sob uma ótica majoritariamente comportamental, em que a mudança tem a ver privilegiadamente com o observável. Oportunamente, Felipe contou:

Ah, eu queria falar uma coisa que, assim, acho que foi o ponto que realmente, quando eu olhei, quando eu entrei em contato com isso, eu pensei: ‘pô, acho que eu tô no curso certo, eu tô entrando numa carreira que eu posso ser feliz dentro dela’, que era quando eu comecei a estudar a questão da Saúde Mental, tipo, dos CAPS, de como a gente pode oferecer isso pro público em geral, assim, né... E, assim, porque quando a gente entra em contato com o CAPS e esse meio, assim, são pessoas, ali, que... Que a maioria das pessoas não ligam, tipo, que a maioria da população num tá nem aí pra quem vai lá no CAPS tomar o remédio dele, sabe, porque... Ninguém liga pra essas pessoas basicamente, e, e a Psicologia tá lá, lutando por elas, saca, tentando derrubar a lógica dos manicômios, e fazendo algo pelas pessoas que ninguém se importa... Foi uma coisa que me encheu muito do lado meio que sentimental, digamos assim, da coisa... E aí, isso foi uma coisa que me apaixonou, que me fez me apaixonar pela Psicologia de fato, né, além de querer ajudar novas pessoas, outras pessoas.

Toca-nos, aqui, a contradição entre Felipe identificar os CAPS (Centros de Atenção Psicossociais) privilegiadamente como locais em que as pessoas vão para tomar seus remédios e, simultaneamente, como locais de que a Psicologia participa para derrubar a lógica manicomial. Levantamos esta contradição como indicador a acompanhar. Também tomamos como indicador a paixão de Felipe com a Psicologia ter a ver com ajudar as pessoas, algo que entendemos que podíamos articular com os indicadores relacionados à experiência do processo psicoterapêutico a que ele se referiu anteriormente. Hipotetizamos, a partir desses indicadores, que a psicoterapia se organizava para Felipe sob um viés de ajuda de cunho assistencialista. Assim como sua psicoterapeuta lhe fez um bem em que ele mesmo não atribuiu a si participação, pensamos que ele poderia estar vivendo o tornar-se e atuar como psicoterapeuta sob a égide de ele fazer algo para e pelo outro que este outro não poderia fazer para e por si mesmo: como um fazer sobre o outro. Mais adiante no encontro, Felipe trouxe:

Eu acho que antigamente, mais antigamente, as pessoas tinham a visão do psicólogo como aquele cara que conserta o que não tá encaixado, sei lá, então, tem aquela criança que tá na escola que ela... Que ela dá muito trabalho, então, tipo, sei lá, né, hoje é dar remédio pra ela, mas era: ‘leva pro psicólogo que o psicólogo vai consertar ela’ (...) Tinha essa coisa do psicólogo como a pessoa que vai encaixar a pessoa, sei lá, nos parâmetros da sociedade. Eu tinha um pouco dessa visão também quando eu não fazia Psicologia, e aí... É... Aí, tipo assim, eu pessoalmente tento, a gente tenta, tem em mente, tentar quebrar com isso, e acho que na Psicologia que a gente teve na faculdade, ela vai muito nesse sentido, assim, de você... Independente, assim, da sua abordagem, é realmente isso... Não de uma forma... ‘Ah, vou te consertar aqui pra você...’, sei lá, sei lá, ‘você vai se encaixar no seu trabalho’, alguma coisa do tipo, assim, então... Eu gostei muito disso, assim, então, a pessoa vai no consultório, lá é um espaço pra ela ser ela mesma, então, se ela quiser, sei lá, ser uma pessoa desempregada, lá no consultório, ela vai ser acolhida, né... Sei lá, se ela quiser fazer qualquer coisa da vida dela, mesmo que todas as pessoas ao redor dela não gostem, que todo mundo vá contra isso, lá no consultório, ela vai ter espaço pra ela fazer isso.

Chamou-nos a atenção que, ao falar sobre a Psicologia aprendida na faculdade, voltada a não consertar o outro, o que Felipe enuncia como algo a consertar, em uma perspectiva alternativa de Psicologia, é adequar as pessoas ao trabalho. Ele segue neste exemplo em sua ponderação de que alguém pode, na psicoterapia, querer ser desempregado e ainda assim ser acolhido nisto, mesmo que todos ao seu redor não gostem desta opção de vida. Levantamos estas questões como indicadores. Ponderamos se eles poderiam ter a ver com a área do trabalho, tal como vivida por Felipe, estar em evidência em sua vida no momento da pesquisa, especialmente por também termos tomado como indicador seu atraso para chegar no encontro de pesquisa por ter sido demandado neste sentido. Ficamos nos questionando sobre como se constitui subjetivamente esta esfera para Felipe, e se e como isto se conecta ao seu intento de seguir atuando como psicoterapeuta. Em seguida, Felipe ponderou, ao falar sobre sua experiência no estágio em psicoterapia:

Eu acho que o importante é você, por exemplo, eu tava lá no estágio e eu tive clientes que eles estavam em sofrimento, né... Chegava no consultório e tava sofrendo, né... Então, você, independente de faculdade, de abordagem, de carreira, você sente uma responsabilidade com a pessoa, então, tipo, eu tô aqui na situação, a pessoa tá aqui, ela tá em sofrimento, tá aqui, buscando ajuda, então, vamo lá... E... E acho que, independente das técnicas, você tem que acreditar naquilo que você faz, né, então... Tipo, né, eu falo que eu gosto da Análise do Comportamento porque (pigarro) é uma coisa que realmente acredito, assim, que, dentro do consultório, quando eu vejo uma pessoa sofrendo, tem uma confiança de ‘isso aqui que eu estudei, o que eu aprendi’, eu acredito que isso vai, de alguma maneira, vai me dar a oportunidade de melhorar ela, né, de ajudar a pessoa.

Levantamos alguns indicadores a partir deste trecho. O primeiro deles diz respeito à fala “independente de faculdade, de abordagem, de carreira, você sente uma responsabilidade com a pessoa”. Questionamos o que isto poderia vir a representar, de maneira que este nos pareceu um indicador importante a acompanhar. Ficamos nos perguntando que responsabilidade seria esta que independe do percurso de vida e do fundamento de trabalho do psicoterapeuta: ainda que ela seja colocada como norte ético soberano, e entendemos que a ponderação de Felipe passava por este lugar, o potencial descolamento disto de outras questões nos chamou a atenção. O segundo indicador tem a ver com a perspectiva de Felipe de que, independente das técnicas, é preciso que o psicólogo acredite no que faz. Também entendemos este como um indicador importante a acompanhar, e o conectamos a outro, construído anteriormente no mesmo encontro, e que diz respeito a como a Psicologia foi subjetivada por Felipe como caminho congruente com seus valores pessoais. O terceiro indicador que levantamos neste trecho envolve a identificação trazida por Felipe entre “melhorar a pessoa” e “ajudar a pessoa”. Entendemos que este indicador torna mais robusta nossa hipótese sobre a psicoterapia estar organizada subjetivamente para Felipe como ajuda de cunho assistencialista, como um fazer do psicoterapeuta sobre o outro. O quarto e último indicador relativo a este trecho é o próprio movimento ativo de Felipe de se colocar como alguém que gosta da Análise do Comportamento e acredita nela. Em nosso entendimento, este indicador se vincula aos relativos à subjetivação conjunta da Psicologia e de valores pessoais de Felipe e, para além disto, com a relevância do momento da pesquisa em que ele se posicionou. Anteriormente a esta sua fala, Luísa e Rodrigo estavam engajados em um diálogo de crítica profunda à Análise do Comportamento, com tom inclusive bastante jocoso, algo que foi se configurando como presente na subjetividade social do grupo no decorrer do encontro. Neste sentido, ficamos com a ideia de que a postura de Felipe de, ainda assim, defender seu terreno, podia dizer de uma emancipação conquistada por ele no sentido de manter sua individualidade, sem se diluir no sistema social organizado no estudo. Ficamos nos questionando como Felipe se vinculava subjetivamente a outros sistemas sociais, e se este movimento podia ter a ver com uma emergência de sujeito ou de agente.

O segundo encontro de pesquisa começou com a apresentação, pelas pesquisadoras, de um episódio da série “Sessão de Terapia”. Neste episódio, o psicoterapeuta atendia pela primeira vez uma jovem atriz cujo nome artístico era Chiara, mas que havia marcado a sessão sob seu nome de batismo, Joana.

Assistimos todos juntos ao episódio, por meio da ferramenta de compartilhamento de tela do Google Meet. Em seguida, procedemos ao diálogo. Felipe ficou bastante mobilizado com o episódio, rapidamente se disponibilizando a compartilhar como ele viu e viveu o que transcorreu:

É... Ela tá... Ela fala que ela tá exausta, tá cansada, acho que ela tá cansada de ser a tal da Chiara, né? Acho que esse é o problema dela... Tá exausta de ser a outra pessoa, e não a Joana, sei lá, alguma coisa do tipo...

Teve esse personagem dessa mulher aí, dessa atriz, que, que realmente, né, tem algumas coisas dela que é muito personagem, né, tipo... Na primeira sessão, ela já começa, com, né, todo aquele fala... Todo aquele falatório, eu achei meio estranho, assim, eu acho que, numa primeira sessão, num sei se você [refere-se a uma das pesquisadoras] já teve primeiras sessões assim, assim, eu acho que é meio difícil de uma pessoa ter essa, aquela postura que ela teve, assim, numa primeira sessão logo de cara. E... E achei coisas legais, assim, que, por exemplo, teve lá no discurso que ela fala, que ela fala que depressão é pra gente fraca, então, é, meio que, meio que o clichêzão da Psicologia, que a gente já tá cansado de fazer...

Nos dois trechos acima, levantamos alguns indicadores. O primeiro deles teve a ver com como Felipe viu e viveu o episódio sendo mobilizado principalmente pelo viés de discutir a pessoa atendida. Apesar de atuar como psicoterapeuta, espontaneamente, seu olhar e sua fala se detiveram sobre pensar “o caso”, e não também a postura do profissional e a qualidade de interação e de vínculo que se estabeleceu entre este profissional e a pessoa atendida. Isto nos chamou a atenção, e conectamos este indicador à nossa hipótese, cada vez mais robusta, da organização subjetiva da psicoterapia para Felipe como ajuda de cunho assistencialista. O fazer sobre o outro que esta perspectiva carrega em seu bojo tem como característica esta dinâmica de o espaço da psicoterapia se restringir a olhar para a pessoa atendida, e não também para o psicoterapeuta em sua prática, bem como para a relação terapêutica. Felipe fez um movimento semelhante no terceiro encontro, em que assistimos com os participantes um episódio da série “This Is Us” que retratava uma sessão de psicoterapia de um dos personagens principais da história. Quando passamos ao diálogo, ele novamente discutiu apenas a pessoa atendida, e não também o psicoterapeuta e a relação com o outro. Nos dois encontros, ele apenas passou a uma reflexão sobre o profissional e o vínculo quando interpelado neste sentido pelos outros participantes do estudo.

Outro indicador que levantamos a partir dessas situações diz respeito a Felipe possivelmente ainda se situar, em relação ao campo da psicoterapia, mais como pessoa atendida - buscando mimetizar a atuação de sua psicoterapeuta, que ficou como referência e como modelo para ele - do que como psicoterapeuta que cria, de maneira autoral, suas próprias formas de trabalhar. Entendemos que as referências e os modelos que subjetivamente elegemos ao longo de nossas trajetórias participam de nossa criação autoral, mas, no amadurecer do psicoterapeuta, cada vez mais como integração que possibilita um salto qualitativo diferenciado, e cada vez menos como repetição do que tais referências e modelos fazem e nos levam a viver ao nos relacionarmos com eles. Ficou para nós a impressão de que Felipe ainda está se apropriando de ver e viver a si mesmo como psicoterapeuta e, portanto, de discutir a profissão a partir deste lugar.

A esta altura, a partir dos indicadores e das hipóteses já construídos, passamos a representar teoricamente a conformação subjetiva da psicoterapia para Felipe como ajuda de cunho assistencialista, e composta pelos sentidos subjetivos: 1) prática empreendida pelo psicoterapeuta como um fazer sobre o outro e como um discutir este outro; 2) prática voltada ao psicoterapeuta levar o outro a melhorar e a evoluir, como se ele pudesse conduzir este outro; 3) a identificação do melhorar e do evoluir com o comportamento observável, ou seja, com aquilo que o psicoterapeuta entende como melhorar e evoluir no que o outro faz, e não no que é vivido como tal pela pessoa atendida; 4) a sobreposição entre ajudar a pessoa atendida e o psicoterapeuta, ele mesmo, “melhorar” a pessoa atendida (como se isto fosse possível); 5) uma contradição entre uma lógica manicomial e uma lógica de emancipação, contradição esta que se vincula aos modos como os valores e crenças pessoais de Felipe aparecem em sua experiência subjetiva da Psicologia, e 6) estar em um lugar, em relação ao espaço da psicoterapia, ainda mais de pessoa atendida do que de psicoterapeuta.

Além disso, também tecemos para os processos subjetivos de Felipe uma configuração subjetiva relativa ao trabalho. A este ponto da pesquisa, pensamos que esta esfera estava sendo vivida por ele como um imperativo, um fardo, e a partir de nossa representação teórica desta configuração nos seguintes sentidos subjetivos: 1) a experiência do “consertar” alguém como adequar este alguém ao trabalho, e 2) a importância de acolher alguém desempregado, e especialmente alguém que escolheu estar desempregado. No momento da pesquisa, Felipe estava trabalhando em uma outra área que não a psicoterapia, algo que nos fez pensar sobre como se relacionariam subjetivamente esta configuração do trabalho e a configuração da psicoterapia de que falamos no parágrafo anterior.

Ainda no segundo encontro, Luísa trouxe sua inquietação acerca do reconhecimento social do psicoterapeuta, puxando este tema para uma discussão sobre a divulgação da psicoterapia e do profissional no Instagram. Rodrigo e Felipe tomaram parte nesta discussão da seguinte maneira:

Luísa: Eu fico pensando muito nisso, das pessoas da Psicologia querendo se... Se colocar no Instagram, e eu fico vendo... Como tá sendo trabalhoso, como é difícil você conseguir... É, é quase um jogo de convencimento, de falar que tem valor isso que a gente faz. Eu vejo assim... É muito abstrato, sabe?

Rodrigo: Eu acho um saco, isso! (fala no meio da fala de Luísa, com bastante ênfase na palavra “saco”, levantando a voz)

Felipe: (também entra na fala de Luísa) Mas isso é... É o mercado, é uma coisa que... A lógica do mercado que a Psicologia tá inserida...

Levantamos como indicador, neste trecho de diálogo, esta naturalização de Felipe da inserção da Psicologia em uma lógica de mercado como algo a se aceitar. Já no terceiro encontro, Felipe trouxe:

Quando o episódio acabou, assim, tava mais pro final da sessão deles lá, eu, eu lembro que eu pensei assim: ‘nossa, essa foi uma sessão de terapia muito boa’, saca, porque eles... Eles... Teve muita coisa, né, muita intervenção, muita interpretação da psicoterapeuta.

Tomamos como indicador este entendimento de Felipe de que a sessão boa é a sessão em que o psicoterapeuta toma a frente, intervém, interpreta, sem uma reflexão, por parte dele, acerca da qualidade do vivido disto para a pessoa atendida e em seu processo. Pensamos que isto se conecta aos sentidos subjetivos que já estávamos organizando para sua configuração subjetiva da psicoterapia, uma vez que isto diz também de uma visão assistencialista (este é o papel do psicoterapeuta, conduzir o outro) e de um fazer sobre o outro em detrimento de fazer com este outro, favorecendo que ele se escute e olhe para si. Ficamos nos perguntando se e como isto poderia se conectar à naturalização da inserção da Psicologia na lógica de mercado acima apontada.

No terceiro encontro, os participantes adentraram espontaneamente uma discussão sobre a divulgação da psicoterapia e do psicoterapeuta no Instagram. Trazemos abaixo um trecho grande desta conversa, destacando as falas de Felipe, e em seguida seguimos focando em seus processos subjetivos:

Rodrigo: O que vocês estão falando me faz pensar (...) Quando alguns alunos colocam, ou alguns dos recém-formados colocam algumas coisas prontas no Instagram... Sei lá... ‘Como lidar com ansiedade’, e aí pegam aquele discurso da Psicologia da Saúde, muitas vezes, aquele negócio de coping, uns conceitos bem estereotipados, no meu ponto de vista, e aí colocam lá: ‘como lidar com a saúde’, (...) aí falam de meditação, de um monte de coisa. É a mesma coisa com essas fórmulas prontas pra qualquer coisa: pra depressão, pra ansiedade, pra isso, pra aquilo, pra num sei o quê, e aí... Porque é o que a pessoa fez, né, a pessoa saiu da universidade e falou: ‘ah, eu posso copiar isso aqui e passar’, né, a pessoa num tem... [ele se referia, ao falar de copiar e passar, a decorar conceitos para mecanicamente escrevê-los nas provas, algo de que Luísa falava anteriormente]

Luísa: Eu tava falando com uma amiga minha sobre isso, e ela tava falando justamente como ela está se sentindo vendida, porque esse é o discurso que as pessoas vão comprar e, se ela não botar assim, as pessoas não estão nem aí pra conversa dela... (Felipe interrompe).

Felipe: É, gente, mas a lógica de mercado afeta a Psicologia, não tem muito a fazer, né... (Luísa interrompe).

Luísa: Cara, isso é muito... Isso é muito triste... (com expressão pesarosa) E aí acaba que fica, claro, pra cada pessoa na vida se colocar e ter peito e disposição de falar: ‘não vou fazer assim, e ponto, e vou arcar com as conseqüências’, claro. Mas segue aí, Rodrigo.

Rodrigo: É isso mesmo, como é difícil... A maneira como que eu penso a Psicologia é totalmente o oposto do que as pessoas colocam lá no Instagram. Eu vejo aquilo ali e falo: ‘eu não consigo ser isso, assim, eu não vou fazer isso’. (...) Porque nisso você reduz toda a complexidade que é o fenômeno psicológico pra um tipo de atividadezinha, sacou? (...) Eu entendo que é a lógica [de mercado], mas só que... Prejudica muito a complexidade do psicológico. (...) é um trabalho também que envolve uma postura e uma lupa científica que é essa de se deparar com o não-saber (...).

Felipe: Eu ia comentar, volta um pouco lá no psicólogo que se vende, né... Eu acho assim: fora do consultório, eu sou a favor do psicólogo se vender mesmo porque a gente tem que aceitar que a gente vive numa lógica de mercado, e a gente tem que vender o nosso produto. Agora, dentro do consultório, a partir dali, cara, ali, tem que ser 100% Psicologia, sabe? Você dar discurso pronto dentro do consultório só pra pessoa voltar depois, saca, acho que isso não é ético, então, você tem que fazer Psicologia, mesmo que diminua a probabilidade de a pessoa voltar e, assim, né, financeiramente, voltar e continuar pagando ali a sessão, mas fora, cara... Sei lá, eu acho que... Eu num jul... Eu vejo a galera lá do Instagram, sabe, eu apoio essa galera, porque a gente saiu da faculdade, né, e... Ninguém conhece a gente, né, e a gente num é o único psicólogo do mundo, então... Sei lá, tem... Principalmente no início a gente tem que se vender bastante. Eu tô me preparando pra me vender...

Luísa: Mas eu acho, Felipe, que tem uma questão de como se vender, que é o que eu e o Rodrigo estamos falando. O ‘como’ é muito importante, não vir de ‘5 passos pra você sair dessa’. Se tivesse 5 passos pra você sair dessa, você num... Botava num livro, vendia, num tinha psicólogo... Então, é justamente, é... É mentiroso fazer isso. Você está simplesmente... É mentiroso, você querer realmente se vender ao mercado num nível que você não tem compromisso com você, compromisso com a sua profissão, compromisso com a ética... O ‘como’, sabe, é questão da pessoa parar um segundo e refletir como que ela pode usar do discurso, de fato, científico, transformar ele, de uma forma mais palpável, pras pessoas que vão ler, conseguirem... É... Se identificarem e quererem buscar essa psicoterapia, esse psicoterapeuta em questão (...) Você pode ser totalmente autoral, totalmente no nível blogueirinha, mas pertinente, e sem... Matar a Psicologia. Eu entendo que tem a lógica de mercado, eu entendo que é pesado, que é puxado. Mas dá pra fazer.

Rodrigo: Eu também penso assim. Eu sei que a gente tem uma lógica de mercado, a gente não vive em um mundo a par desse, e a gente tem que se adaptar a algumas coisas, mas é como realmente a gente se adapta a isso, né? (...) Por exemplo, o Gabriel [professor, nome fictício]. Olha como que o Gabriel faz, ele pega uma análise lá dele, bota, posta, ele tem um negócio lá, ele tem todo um trabalho, mas o trabalho dele é fino, é rebuscado, lá ele não fala assim: ‘comportamento operante é o que você faz quando você aperta um botão’, ele não faz isso (todos riem).

Felipe: É... Mas é porque o Gabriel também é diferente, né... Ele tem uma carreira estabilizada, a gente está falando de pessoas que estão começando agora. (...) Eu perdoo, eu perdoo, eu só num perdoo no consultório. Dentro do consultório eu não perdoo, aí realmente não dá...

Levantamos como indicador para pensar os processos subjetivos de Felipe, nesta conversa, seu entendimento de que “vender nosso produto” como psicoterapeutas é algo que permite uma dupla via no posicionamento de divulgação: uma que tem a ver com o que se faz fora do consultório para autopromoção, em que há maior permissividade, e outra que tem a ver com o que se faz dentro do consultório e que, para ele, é a única que é efetivamente fazer Psicologia - como se a outra via não fosse e, portanto, não passasse pelo mesmo crivo ético do que a atuação nos atendimentos. Conectamos este indicador a outros que construímos anteriormente, um sobre a responsabilidade do psicoterapeuta com a pessoa atendida ser “independente” de faculdade, de abordagem, de carreira, e outro vinculado ao psicoterapeuta precisar, para Felipe, acreditar no que faz. Entendemos, ao integrar estes três indicadores, que há uma desvinculação, na experiência subjetiva de Felipe, entre o mundo da vida e o tornar-se e atuar como psicoterapeuta. No quarto encontro de pesquisa, os participantes preencheram o instrumento complemento de frases e, posteriormente, nos engajamos em um diálogo em que eles compartilharam suas respostas e em que conversamos sobre elas. Neste encontro, Felipe trouxe, ao falar sobre como viveu o instrumento:

É, foi, foi muito reflexivo, assim, foi mais um, um olhar pra si, né? Então, tipo, tinha algumas perguntas aqui, ‘daqui a cinco anos...’ [frase do instrumento], por exemplo, sei lá, nunca tinha parado muito pra pensar realmente, tipo: ‘nossa, será que eu... Que eu quero daqui a cinco anos?’, então, foi mais ou menos isso, assim, foi um, um olhar pra dentro, né?

Esse instrumento é uma parada muito pessoal, né? E aí, sei lá, o momento, assim, de vida que eu, pessoalmente, tô passando, é muito menos de filosofar, menos de pensar no seu meio, no que acontece ao seu redor e mais, tipo, de fazer e de atingir coisas, e de produzir. Então, sei lá, tipo, tentar menos entender como as coisas são, elas estão... Não tentar mudar elas e só tentar fazer o seu, sabe? É assim que eu tô, acabei de sair da formação, e tal, tô ficando meio velho... Então, assim, as minhas respostas, elas foram, assim, um pouco até objetivas, por exemplo, a, a segunda que a gente ia falar, né, o do ‘quero...’ [uma frase do instrumento], né? Aí eu botei aqui: ‘quero atingir meus objetivos’, sabe? Então, é, eu fiquei pensando quando eu fui responder, tipo: ‘ah, o que que eu quero hoje?’ E assim, pô, eu tenho 29 anos, e até, desde, sei lá, a idade que eu já tenho hoje eu já quis tanta coisa, sabe? Mas hoje mesmo, assim, se fosse, se tivesse um gênio aqui e falasse: ‘pô, que que você quer?’, né, seria atingir os meus objetivos e, dentre esses objetivos, existem os objetivos profissionais, obviamente, os financeiros, né? E como pessoa também, aí...

Tomamos como indicadores, nestes trechos: 1) Felipe nunca ter parado para olhar para seu projeto de vida em uma dimensão temporal mais ampla, e 2) a contradição entre isto e seu momento, em que estão presentes preocupações com o tipo de caminho que ele está gerando para si mesmo, especialmente ao que concerne ao seu vivido do tempo como algo, em nossa perspectiva, que está correndo, que está acabando. Conectamos a estes indicadores um que havíamos já construído acerca de uma desvinculação, na experiência subjetiva de Felipe, entre o mundo da vida e o tornar-se e atuar como psicoterapeuta. Ficamos nos questionando sobre como o tempo estar conformado subjetivamente como escasso impacta a configuração subjetiva da psicoterapia, e o entendimento de Felipe sobre a divulgação no Instagram e sua naturalização da lógica de mercado. Ao compartilhar sua resposta para a frase do instrumento “sinto medo...”, Felipe pontuou:

Eu botei uma coisa meio clichê, mas vou contextualizar, e o contexto... É muito pessoal. Botei que sinto medo de fracassar, né? (...) O fracasso que eu digo, que é... Tipo... É... Acho que tem a ver... Assim, com uma coisa bem pessoal, que é uma forma de que... Que eu enxergo algumas... Do jeito que eu fui criado, educado... (...) Desde sempre, muito novo e tudo, né, meu pai conseguiu um emprego bom, e aí ele botou muito di... Tipo, me botou nas, nas coisas, assim, tipo, em aula, saca? Pagou, tipo, escola muito cara, tipo, inglês, muito caro, tudo muito caro... E, e aí, quando eu fui formando pra ir pra faculdade, né, tipo, sempre, teve aquele discurso de, de tipo: ‘ah, você faz isso, né, eu pago isso pra você e você tem que fazer isso, tem que conseguir esse curso, tem que passar na UnB [universidade federal gratuita], tem que ser não sei o quê’. E aí, aí de certa forma, é... Sempre teve um... Sempre... Existe essa relação da minha família de como, como... De que eu fosse um investimento, saca? Então, eu sou um investimento e eu tenho que pagar esse investimento que botaram nas minhas costas... De volta, né? E... E aí, quando eu falo, medo de fracassar, de certa forma, tem a ver com, com essa relação, saca? Que... Tenho medo de esse investimento que tem nas minhas costas não ter valido a pena, sabe? (...) E eu acho que tem como, sim, você ter um filho, você investir muito dinheiro nele e não fazer ele se sentir um... Uma ação da bolsa que você tá botando dinheiro e ela vai valorizar e vai te devolver o dobro daquilo, sabe?

Este trecho nos permitiu representar e significar os processos subjetivos de Felipe em uma dimensão bem mais aprofundada e rica.

A partir dele, elencamos teoricamente sentidos subjetivos relacionados à família como presentes também na configuração subjetiva da psicoterapia e na configuração subjetiva do trabalho: sentidos subjetivos em que a performance, a produtividade, o retorno financeiro mais rápido possível aparecem subjetivados pela égide de uma dívida de vida a ser paga, e cujo tempo para tanto se achata e se estreita cada vez mais. Passamos a entender que tanto a naturalização da lógica de mercado na divulgação no Instagram quanto a experiência subjetiva de Felipe da psicoterapia como algo dividido em duas vias de critérios éticos e de ação - a via de fora do consultório e a via de dentro - se conectam fortemente à sua necessidade de fazer jus ao que foi colocado sobre suas costas, a uma trajetória de vida que não foi escolha sua, mas a que ele ainda responde, paradoxalmente, mesmo tendo trocado de curso de graduação e ido para uma universidade paga, que foi a que se formou em Psicologia.

A esta altura da pesquisa, problematizamos que, embora Felipe tenha tido posturas no decorrer dos encontros que permitem pensar um certo grau de emancipação em alguns de seus sistemas sociais (como, por exemplo, no trecho que em discutimos sua defesa da Análise do Comportamento), ele ainda se encontra subjetivamente orientado pelas diretivas de seu sistema social familiar - sistema social familiar este em que, em nossa perspectiva, estão configuradas diretivas da subjetividade social dominante no que concerne, por exemplo: 1) ao tempo “certo” de viver e fazer as coisas na vida, e 2) ao valor máximo do cumprir com este tempo, e do ganhar dinheiro rápido, como indicativos de sucesso. Entendemos que, embora Felipe enuncie uma criticidade em relação à sua criação e à sua família, subjetivamente os afetos e as normas presentes nestas relações se configuraram dominantemente como o colorido que matiza sua experiência - algo que entendemos que diverge do que ele identifica conscientemente e racionalmente como sua representação e sua prática da/na Psicologia. Ficamos reflexivas sobre a conexão disto com um indicador que levantamos ainda no primeiro encontro, relativo a uma identificação, nos processos subjetivos de Felipe, entre “fazer algo ruim” e “pagar pela vida inteira”.

4.Considerações Finais

Entendemos que, para Felipe, a prática da psicoterapia, para além de como está conscientemente e racionalmente enunciada, se organiza subjetivamente na conformação conjunta de três configurações subjetivas: a da família, a da psicoterapia e a do trabalho. Os sentidos subjetivos integrados nestas configurações e mobilizados entre elas se vinculam à égide da ajuda assistencialista, da performance, da produtividade, da lógica de mercado e da separação entre a psicoterapia e o percurso e a história de vida de Felipe, ou seja, entre a psicoterapia e o mundo da vida - e notadamente por essas configurações subjetivas estarem privilegiadamente regidas pelo pagamento de uma dívida familiar. Neste sentido, levando em consideração tudo que trouxemos na construção e na análise da informação, compreendemos que é possível pensar Felipe, a partir de seus processos subjetivos vinculados à psicoterapia e à divulgação no Instagram, como agente. Nos encontros, ficou consistente para nós que ele se mobiliza, se movimenta, reflete e se posiciona; contudo, em nossa visão, ele o faz no sentido de concretizar realizações e sonhos que, sim, passam por ele, mas não primordialmente por ele. Pensamos que os modos pelos quais a lógica de mercado se conforma para Felipe como um imperativo naturalizado tem a ver com essas questões, de maneira que a divulgação no Instagram nos moldes da subjetividade social dominante se apresenta como um “mal necessário a ser perdoado”, principalmente no início do exercício profissional, e sob a visão de que fazer diferente não cabe e/ou não é possível nesta fase.

A articulação desses processos subjetivos individuais de Felipe com processos subjetivos da subjetividade social, especialmente da subjetividade social dominante, envolve, em nossa visão, duas dinâmicas que são importantes de serem pontuadas: 1) a vinculação da clínica, como modelo hegemônico da psicoterapia, com a emergência e a consolidação da psicologia mainstream, e 2) a articulação, no capitalismo de vigilância (Zuboff, 2019), entre a lógica de mercado, o consumo e um movimento de espetacularizar e marquetear o existir e o viver - movimento este regido pela égide narcísica do agradar e do impressionar (Lipovetsky, 2019).

No que diz respeito à primeira dinâmica, ela fez e faz com que o campo da psicoterapia tenha sido e permaneça sendo “esterilizado” de sua relação com a subjetividade e com o mundo da vida - algo que está subjetivamente organizado, de maneira singular, para Felipe.

Descolado da história, da sociedade, da cultura, da política, da economia, da arte, dos mitos, da espiritualidade, das emoções, dos sonhos, do corpo, da imaginação, da fantasia, da especulação, dos saberes e fazeres populares, e dos saberes e fazeres das pessoas acerca de si e de suas próprias trajetórias, o campo da psicoterapia se constitui marcado por um duplo silenciamento: o silenciamento da subjetividade de quem se dedica a tornar-se e atuar como psicólogo e psicoterapeuta (necessário a adentrar e a pertencer aos espaços e aos jogos configurados na subjetividade social dominante), e o silenciamento das subjetividades das pessoas que buscam a psicoterapia em suas singularidades. Ponderamos que esse duplo silenciamento organiza subterraneamente no campo da psicoterapia a representação, configurada subjetivamente para Felipe em seu vivido da psicoterapia como ajuda assistencialista, de que é a psicoterapia e o psicoterapeuta quem mostram às pessoas quem elas realmente são e quem realmente podem vir a ser, dependendo dela para avançar e mudar (Mori, 2019).

No que tange à segunda dinâmica, a nosso ver, ela tem contribuído para que a psicoterapia, em sua divulgação nas redes sociais, esteja sendo convertida em bem de consumo sujeito às tendências e aos formatos “da moda” (Morin, 2019; Neubern, 2012) - sendo esta a maneira pela qual processos subjetivos como os configurados para Felipe participam da divulgação da psicoterapia e do psicoterapeuta no Instagram. Assim, a psicoterapia tem sido cada vez mais entendida e propagada, pelos psicoterapeutas, com os intuitos de agradar e impressionar potenciais consumidores, e de entregar a eles o que os psicoterapeutas acreditam que eles desejam. Assim, favorece-se que eles “ofertem” a psicoterapia no Instagram não como um espaço continuamente constituído por eles a partir de seu vivido e de seu pensamento próprios; mas sim subordinando a psicoterapia e seu trabalho, de forma automática, “às coisas como elas são”, “ao mundo como ele é”, ou seja, aos moldes pelos quais o campo da psicoterapia está organizado na subjetividade social dominante.

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Recebido: 30 de Setembro de 2022; Aceito: 30 de Dezembro de 2022

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