1. Introdução
Denominadas medicina holística e medicina alternativa nas décadas de 1960 e 1970, as Práticas Integrativas e Complementares em Saúde ganharam o “status” de medicina complementar e medicina integrativa no final do século XX (Barros, 2008). Atualmente são denominadas de Medicinas Tradicionais Complementares e Integrativas (MTCI) pela Organização Mundial de Saúde e, no Brasil, foram legitimadas como política pública em 2006, através da publicação da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC), ampliadas para 29 práticas atualmente (Brasil, 2017; Brasil, 2018; Amado et al., 2017).
Estas diversas nomenclaturas circunscrevem a ideia de práticas e modos de cuidado, mas também de pertencimento cultural, perspectiva que localiza um campo de cuidado ancorado em dimensões mais plurais e atravessadas pelo tempo, por culturas e consequentemente por singularidades e subjetividades.
A legitimação das práticas integrativas no Sistema Único de Saúde brasileiro (SUS) surgiu a partir da necessidade de implantar as práticas que já vinham sendo realizadas, pela crescente demanda da população por melhor atendimento e melhora na qualidade de vida. O modelo biomédico vigente passou a ser questionado pelos excessivos casos de iatrogenia, internações e medicalização desnecessária, bem como pela descontextualização do paciente de seu ambiente social e cultural (Barros, 2000).
Desta forma, estruturou-se um movimento que propõe novas maneiras de aprender e praticar a saúde, que se afirmam em documentos, em políticas públicas e em práticas docentes e formativas de resistência. Esse movimento colocou em destaque a interdisciplinaridade e as linguagens singulares, que contrapõem a visão altamente tecnológica de saúde, governada pela sociedade de mercado (Barreto, 2017).
Para integrar a discussão e o debate sobre as práticas integrativas dentro do modelo de educação hegemônico, propõe-se aqui problematizar diferenças epistêmicas e teorias sobre o processo saúde-doença-cuidado que existem entre estas e que são cruciais para se construir uma ponte entre as barreiras de linguagem igualmente existentes.
O modelo biomédico tem uma abordagem centrada na doença, atua de forma mecanicista, compartimentalizada e centrada no profissional de saúde, o que influencia fortemente os currículos de graduação em saúde internacionalmente (Broom & Adams, 2013). A inserção das PICS neste sistema, segundo Luz (2004), promove uma mudança de paradigma e coloca a saúde como categoria central, valoriza o sujeito doente ao invés da doença, destaca a importância da relação terapeuta-paciente como elemento fundamental do atendimento, resgata a autonomia do paciente e contribui com meios terapêuticos simples, baratos e eficazes em situações comuns de adoecimento.
Esta mudança na forma de cuidar e de enxergar a vida, a saúde e o adoecimento interfere diretamente na forma de conduzir a formação dos profissionais de saúde.
Portanto, neste estudo, compreende-se que as Instituições de Ensino Superior (IES) têm um papel relevante, não somente na discussão de novas formas de produção de cuidado, voltadas para um sistema de saúde público mais efetivo em seus princípios de humanização, promoção à saúde e integralidade dos usuários, mas também na formação de profissionais capacitados para dialogar com diferentes e plurais saberes e necessidades em saúde.
As pesquisas sobre o ensino de PICS nas graduações em saúde apontam para uma predominância de disciplinas em formatos optativos e conteúdos informativos, com escassas oportunidades de prática formativa (Broom & Adams, 2013; Salles et al., 2014; Nascimento et al., 2018; Barboni & Carvalho, 2021; Nelson et al., 2022), o que resulta em uma formação superficial e em uma carência de egressos que conhecem esta temática ou que se sentem seguros para atuar nestas práticas. Uma revisão mais recente (Andrade et al., 2021) confirma uma carência de formação em PICS alinhada aos princípios do SUS e da saúde coletiva; uma oferta crescente de iniciativas privadas de ensino para atender à rápida expansão da demanda das PICS no setor privado; iniciativas pontuais, difusas e heterogêneas nas universidades públicas; predomínio de disciplinas opcionais e informativas e ausência de política indutora para os currículos das graduações em saúde.
Neste contexto, é imprescindível dar voz aos docentes que diariamente ensinam, discutem, vivenciam e sentem o que é ser docente de PICS no ambiente acadêmico, onde essas práticas ainda são marginalizadas, escondidas e relegadas a um plano inferior na formação em saúde. Assim, esse trabalho se propõe a conhecer e refletir sobre a perceção de professores e coordenadores da área de saúde acerca da inserção das PICS na formação em saúde.
2. Metodologia
Trata-se de um estudo exploratório-descritivo, que apresenta as perceções dos coordenadores e professores das Instituições de Ensino Superior (IES), que oferecem disciplinas relacionadas com as PICS, no contexto de formação acadêmica dos cursos de graduação em saúde no Estado da Bahia, Brasil.
A pesquisa envolveu 15 subáreas da saúde (Biomedicina, Ciências Biológicas, Educação Física, Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia, Fonoaudiologia, Medicina, Medicina Veterinária, Nutrição, Odontologia, Psicologia, Serviço Social, Saúde Coletiva e Terapia Ocupacional) definidas pela Organização Internacional do Trabalho - OIT e incluiu o curso de Bacharelado Interdisciplinar em Saúde.
Em uma primeira etapa da pesquisa, uma análise documental analisou as matrizes curriculares dos 414 cursos de graduação em saúde do estado da Bahia, públicas e privadas, onde foram detetados 94 cursos, que incluíam alguma referência ao ensino ou prática de uma das 29 PICS em suas matrizes curriculares.
A segunda etapa da pesquisa convidou os professores, coordenadores de curso e coordenadores de Extensão das IES, via e-mail ou telefone para participar da pesquisa.
O instrumento de coleta utilizado foi um questionário eletrônico estruturado contendo questões com dados de variáveis, desenvolvido pela ferramenta Research Electronic Data Capture (REDCap). O questionário eletrônico foi enviado por e-mail e respondido após a leitura do termo de consentimento livre e esclarecido - TCLE e concordância em participar da pesquisa.
O questionário foi constituído de perguntas abertas sobre: 1. Os Conceitos de PICS que os professores e coordenadores possuem; 2. As motivações dos professores e coordenadores ao inserirem as PICS nos cursos; 3. A perceção dos docentes e coordenadores sobre a resposta dos discentes frente às PICS nas IES e 4. A perceção dos docentes e coordenadores sobre os efeitos da inserção das PICS na formação dos discentes.
Foram coletadas, no total, 64 respostas. Os relatos das questões abertas foram transcritos na íntegra e analisados com as ferramentas da análise de conteúdo, compreendendo, segundo Minayo (1993), a pré-análise do material coletado com a realização da leitura flutuante, constituição do corpus dos dados e leitura aprofundada para a identificação das unidades de contexto (UC) e unidades de registro (UR). Os trechos estão identificados pela letra R, seguida da ordem em que responderam ao instrumento, tendo a seguinte configuração: R1, R2, R3 e assim sucessivamente.
O Projeto foi registrado - CAAE: 36947220.2.0000.5544 - e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa Humana da Escola Bahiana de Medicina e Saúde, respeitando-se os princípios éticos, em acordo com as Resoluções 466/12 e 510/16 do Conselho Nacional de Saúde - CNS.
3. Resultados
O corpo de dados coletados e trabalhados nesta investigação mostrou uma riqueza de informações, analisados de forma detalhada e profunda. Das 64 respostas coletadas, uma foi descartada por não se tratar de curso de graduação. As 63 respostas obtidas contemplaram 79,1% de pessoas do gênero feminino; 64,5% professores, 17% coordenadores de graduação, 6,3% coordenadores de extensão e 6,3% coordenadores de centro de PICS.
3.1 Conceito de PICS
Os respondentes foram estimulados a registrar o conceito de PICS que possuem, através de uma questão aberta e de forma discursiva “Qual é o conceito de PICS para você?”. A análise de conteúdo identificou duas categorias conceituais sobre as PICS, afirmadas como 1. Prática de Cuidado e 2. Racionalidades em Saúde. A análise permitiu qualificar os sentidos atribuídos ao cuidado e quatro subcategorias foram identificadas (figura 1): 1.1 Cuidado integral do ser em múltiplas dimensões, 1.2 Cuidado alternativo ou distinto da medicina convencional, 1.3 Cuidado como auxílio ou complementar à medicina convencional e 1.4 Cuidado voltado para si ou autocuidado.
Na primeira subcategoria (1.1), os respondentes correlacionaram o conceito de PICS a uma abordagem de cuidado, saberes e recursos que consideram uma visão integral do ser humano, considerando os múltiplos aspetos e dimensões do ser através de termos como “integração corpo, mente e espírito”, “saúde física, mental e psíquica”, “bem-estar”, “bem viver”, “saúde e qualidade de vida”, “visão ampliada de saúde” e “visão holística”, a exemplo da seguinte resposta:
“São intervenções em saúde e bem-estar que proveem do conhecimento espiritual, ancestral, da natureza e do cosmos, e das múltiplas dimensões do ser humano que provem harmonia e equilíbrio” (R20).
A visão de cuidado integral nasceu a partir do termo holismo surgido na década de 1950, pelo médico Evarts Loomis que, em 1978, passou a englobar uma “especialidade médica, artística e científica que trata e previne doenças e foca em uma condição ótima de saúde que visa um balanço dinâmico do físico, emocional, mental, ambiental, social e espiritual do indivíduo” (Ahha, 2016).
No entanto, esta forma de cuidar já era praticada por antigas civilizações e tradições de cura da Índia e China, há mais de cinco mil anos, englobando a vida saudável em equilíbrio com a natureza e integrando os múltiplos aspectos do ser (Botsaris, 2013).
A subcategorias 1.2 “cuidado alternativo” e 1.3 “cuidado complementar” podem ser vislumbradas nas respostas de alguns questionários:
“São práticas de cuidados que tem como referência paradigmas não tradicionais e biomédicos e que tem como visão de homem e de mundo a integralidade.” (R18)
“Práticas complementares para restabelecimento da saúde integral do indivíduo, levando em consideração outros aspetos do ser humano, tais como suas emoções e saberes antigos tradicionais. Devem auxiliar no processo de cura física, emocional e mental dos indivíduos, devendo ser aplicados de acordo com as características de cada pessoa e sua aceitação.” (R17)
“São práticas utilizadas durante muitos anos pela medicina tradicional chinesa e grupos populacionais como benzedeiras ou curandeiras, xamãs (indios), yoguis (hindus), entre outros, que atuam utilizando técnicas da natureza para reorganizar o equilíbrio energético do corpo físico, mental, emocional e espiritual do ser humano, restaurando e promovendo a saúde. Essas práticas integram e complementam a terapia médica convencional, sem, contudo, excluí-la” (R26).
Em um ambiente de insatisfação com o funcionamento de saúde surgem diversas propostas não hegemônicas que se materializam nos conceitos de medicina holística, medicina naturalista e medicina alternativa. Esta última invade os anos 1980 e, segundo Barros (2008), situa-se na fronteira da medicina oficial e adota uma abordagem não convencional. O termo medicina alternativa foi institucionalizado pela OMS, em 1962, no intuito de diferenciar diversas abordagens de cuidado adotadas em contraposição à medicina especializante e tecnocientífica (Brasil, 2018). Já o modelo complementar surgiu no final do séc. XX com a finalidade de amainar as tensões do campo da saúde e harmonizar parte desses conflitos. A denominação Medicina Complementar traz, assim, a possibilidade de associação de modelos, o que para uma política pública como a PNPIC, incute, a ideia da utilização de recursos complementares à medicina convencional que “auxiliam” e “complementam” o atendimento convencional (Otani & Barros, 2011).
A quarta subcategoria de cuidado, identificada como “autocuidado”, pode ser compreendido como a realização de ações dirigidas a si mesmo ou ao ambiente, a fim de regular o próprio funcionamento de acordo com seus interesses na vida, funcionamento integrado e bem-estar (Oren, 1991). A ações de autocuidado são voluntárias e intencionais, envolvem a tomada de decisões e têm o propósito de contribuir de forma específica para a integridade estrutural, o funcionamento e o desenvolvimento humano (Bub et al., 2006), observada na resposta abaixo:
“As PICS são recursos terapêuticos, de autocuidado e de manutenção da saúde que abordam o indivíduo de forma integra, não dissociando o físico, emocional e espiritual. Utiliza tecnologias leves de cuidado e proporcionam o autoconhecimento e autonomia do indivíduo sobre sua presença no mundo, suas relações, seu comportamento e cuidado com seu corpo.” (R1)
Com relação aos sentidos atribuídos à outra categoria 2. “Racionalidades em saúde” foi possível distinguir, nas respostas, duas subcategorias: 2.1 Conceitos de PICS associados aos “Sistemas Médicos Complexos” e 2.2 “Práticas/Conhecimentos Ancestrais”. O termo “Sistemas Médicos Complexos”, mencionado pelos respondentes, foi adotado pela PNPIC e está associado ao conceito de Racionalidade Médica, formulado por Madel Luz.
Com base nesta categoria, foram descritas semelhanças e diferenças entre quatro sistemas médicos: a Medicina Convencional (Biomédica), Medicina Tradicional Chinesa, Homeopatia e Medicina Ayurvédica (Luz, 1997). Neste estudo, foram definidas seis dimensões comuns a todos: Doutrina Médica, Morfologia, Fisiologia ou Dinâmica Vital, Sistema Diagnóstico, Sistema terapêutico e Cosmologia, ou visão de mundo (Nascimento, 2013). Trata-se de uma categoria complexa e de análise aprofundada, que traz reflexões sobre os sistemas de pensamento que fundamentam as PICS dentro do campo da Saúde. A ideia de Sistemas Médicos Complexos foi incorporada à PNPIC desde a sua elaboração e foi fundamental para a sustentação teórica desta política pública.
Desta forma, a categoria de Racionalidades Médicas e o estudo dos Sistemas Médicos Complexos vem sendo um instrumento analítico de fundamental importância no processo de legitimação das medicinas e práticas de orientação vitalista (Simoni, 2013) e passaram a fornecer subsídios para a produção de normas e legislação específica para as PICS nos âmbitos municipais e estaduais, como a Política Estadual de Praticas Integrativas e Complementares em Saúde do Estado da Bahia [PEPICS-BA] (Bahia, 2020).
A subcategoria 2.2 “Práticas/Conhecimentos Ancestrais” foi definida a partir dos termos mencionados “medicina tradicional chinesa” “práticas ancestrais que se espelham nas leis da natureza”, “medicina indígena”, “conhecimento ancestral, saberes populares, saberes antigos tradicionais”, “outras racionalidades em saúde” e “paradigmas não tradicionais”, mencionados pelos respondentes, e refletem a amplitude do conceito de integralidade para além da visão do indivíduo, como ser biopsicossocial cultural e espiritual, integrando saberes ancestrais tradicionais que abordam cosmologias diversas.
O conceito de Medicinas Tradicionais Complementares e Integrativas (MTCI) foi definido pela Organização Panamericana de Saúde (OPAS) como “um amplo conjunto de práticas de atenção à saúde baseado em teorias e experiências de diferentes culturas utilizadas para promoção da saúde, prevenção e recuperação, levando em consideração o ser integral em todas as suas dimensões” (Who, 2001). Estas constituem importante modelo de cuidado à saúde, sendo em muitos países a principal oferta de serviços à população e em outros, como no Brasil, de forma complementar ao sistema convencional.
Apesar desta categoria se fazer presente no conceito dos professores respondentes, Moebus e Merhy (2017), em uma crítica à genealogia da construção da PNPIC, identificam ausências importantes das práticas indígenas e africanas de produção de cuidado e da arte de partejar das parteiras tradicionais, dentre outras. No entanto, a PEPICS-BA tem realizado o diálogo com as práticas populares e tradicionais, incluindo-as em seu escopo.
As Práticas Tradicionais e Populares são definidas como “os conhecimentos trazidos e realizados pelos descendentes dos povos originários de cada território” e advêm das tradições orais, resultantes do imbricamento cultural de vários saberes, sobretudo na Bahia, oriundos das populações indígenas e afro-brasileiras (Bahia, 2020), o que justifica a presença destes termos nas respostas dos professores desta região do país.
A inserção das Práticas Tradicionais e Populares na PNPIC não visa necessariamente a incorporação destas nos serviços de saúde ou no ensino universitário, mas visibiliza o diálogo com estas nestes espaços de produção de saúde, despertando no futuro profissional sentidos necessários para um cuidado integral, para um olhar sobre aspetos subjetivos, individuais, de identidade cultural e espiritual de cada indivíduo.
3.2 Motivação dos professores e coordenadores ao inserirem as PICS nos cursos
A partir da pergunta sobre a finalidade com que as PICS são inseridas nas disciplinas curriculares e atividades complementares, foram categorizadas três dimensões (Tabela 1): 1. “Conhecimento/Sensibilização”, 2. “Cuidado e Autocuidado” e 3. “Aquisição de habilidades”. A categoria que concentrou o maior número de respostas foi a relacionada à aquisição de conhecimentos (79%), sensibilização dos discentes para o tema (74%) e “demonstração/vivência das PICS” (74%).
Estas motivações se devem à escassa e pontual abordagem das PICS ao longo da formação do estudante. Este pequeno tempo dentro de uma disciplina é aproveitado em sua totalidade para fornecer algum conceito e propiciar uma vivência prática de cuidado, sensibilizando o discente para estas novas (e antigas) formas de cuidar e de pensar a saúde e extrapolar o pensar mecânico da medicina biomédica, para ativar o sentir, através de um toque, de uma respiração profunda, ou de uma experiências de conexão mais profundas consigo e com o outro, como a resposta R1: “Vendo (...) a necessidade que as(o) alunas(o) da área da saúde no sentido de ampliar a visão do cuidar ampliando-o para além do paradigma biomédico e sensibilizando-os para o cuidado holístico e humanizado.”
É importante destacar também a apresentação de outras possibilidades de atuação profissional (53%) e o conhecimento das políticas públicas em PICS (68%). É sabido que apesar de as Diretrizes Curriculares nacionais (DCN) terem um papel prioritário na elaboração dos Projetos Pedagógicos dos cursos e suas matrizes curriculares, a autorização (ou habilitação) em determinadas especialidades, por parte dos conselhos profissionais, acaba tendo forte influência sobre a oferta de disciplinas e atividades formativas no percurso do acadêmico (Borba et a.l, 2020).
A inserção das PICS nos cursos também foi assinalada como forma de trazer conceitos de racionalidades em saúde (37%) e evidências científicas (32%), o que legitima e proporciona mais segurança e confiabilidade para estas formas de pensar a saúde.
A finalidade de capacitação do estudante em alguma prática integrativa, bem como a inserção do discente no campo da extensão foram assinaladas por 45% e 39% dos respondentes. Isso pode ser justificado pela pouca carga horária das disciplinas de PICS, predominância de disciplinas optativas e escassas oportunidades de abordagem das PICS em disciplinas não específicas (Nascimento et al., 2018; Nelson et al., 2022) o que inviabiliza uma formação mais consistente em PICS no ambiente da graduação em saúde. Atividades de PICS demandam cargas horárias mais extensas para a fim de se vivenciar e dialogar com as experiências vividas. Desta forma, ao se pensar na inserção das PICS na formação discente é necessário que sejam disponibilizadas cargas horárias apropriadas que viabilizem estas experiências e garantam a aquisição de competências necessárias.
Proporcionar bem-estar (32%) e cuidado (26%) aos discentes também foram citados como objetivos das iniciativas.
Os professores justificaram suas respostas, reforçando a utilização das PICS como ferramenta pedagógica para ampliação do conhecimento sobre cuidado ampliado, diversidade nas possibilidades profissionais e como estratégia pedagógica em sala de aula, como a utilização de algumas delas na abordagem de grupos.
Em uma outra pergunta, quando questionados sobre a motivação pessoal para inserir as PICS na formação discente, os professores relatam que as experiências pessoais de autocuidado e utilização das PICS como recurso em sua saúde bem como o contato com as PICS durante a sua formação universitária, seja como disciplina, extensão, formação profissional foram determinantes para a inserção destas práticas na sua vida pessoal e em suas práticas de ensino. Segundo Franco (2022), enquanto o conhecimento das práticas integrativas não se encontra estabelecido na formação em saúde, o que se observa é que os profissionais assumem estas práticas em decorrência de experiências pessoais frustradas com o modelo hegemônico.
3.3 Visão dos docentes sobre a aceitação dos discentes frente às PICS nas IES
Dos 39 respondentes, docentes e coordenadores que afirmaram saber da existência de atividades de PICS na instituição, 71,8% (n=28) consideram a avaliação dos estudantes como muito satisfatória e satisfatória, respetivamente. Os dados foram compilados na Figura 2. As justificativas foram classificadas em quatro categorias, afirmadas como: interesse dos discentes pelas PICS, auxílio no desempenho, aprendizado ou melhora o vínculo com a disciplina, questões curriculares e aquisição de competências.
Na opinião da maioria dos professores, a resposta dos estudantes frente a este breve contato com as PICS é bastante satisfatória e se justifica, em suas falas, pelo interesse dos discentes pelas PICS, pelo auxílio das práticas no desempenho estudantil, no aprendizado ou melhora do vínculo com a disciplina (R13:“os alunos ficam mais motivados, proativos nas atividades desenvolvidas”) e na aquisição de competências (R32:“conhecimento de novas formas de atuação” e “habilidades técnicas para a abordagem e o cuidado do paciente”).
A inclusão das PICS nos currículos dos cursos de saúde das IES é um assunto que desperta a atenção dos estudantes, visto o aumento da procura das PICS pela população e a necessidade de atendimento a todos em suas diferentes opções de terapêuticas, se contrapondo ao modelo de saúde hegemônico centrado na doença (Christensen & Barros, 2010). Franco (2022), afirma que as disciplinas e atividades curriculares de PICS, são janelas para uma direção diferente daquilo que é historicamente consolidado e hegemônico nos cursos de graduação da área de saúde, onde os estudantes têm contato com as práticas para além do conteúdo teórico.
Os professores que lecionam PICS, proporcionam vivências práticas como respiração, meditação e aromaterapia, o que se configura como uma estratégia para essa aproximação ao objeto de estudo do componente (Franco, 2022).
Os efeitos e sentidos percebidos pelos docentes podem ser explicados pela conceção do organismo trimembrado (pensar, sentir, fazer), idealizado por Rudolf Steiner, idealizador da Medicina Antroposófica, também aplicada ao campo pedagógico, na compreensão do aprendizado. Para Steiner, é necessário despertar a consciência para impulsionar a vontade abrindo caminhos para ações transformadoras. O ponto de partida é a conscientização, seguida de ações imbuídas de sentido e afeto (Machado, 2010).
Desta forma, além dos conceitos teóricos básicos das PICS, é fundamental que os estudantes vivenciem estas práticas no dia a dia da sua formação, de maneira a perceber os sentidos produzidos em seu corpo/mente/espírito.
As observações dos docentes sobre os efeitos percebidos nos discentes ao inserir as práticas integrativas nas disciplinas e atividades complementares, vão desde a ampliação do olhar do estudante sobre a saúde até o reforço de conceitos de saúde coletiva e efeitos sobre a saúde dos discentes.
3.4 Perceção sobre os efeitos da incerção das PICS na formação de discentes
Quando os docentes e coordenadores foram questionados, sobre “Quais são os efeitos produzidos pela inserção das PICS na formação dos estudantes?”, foram identificadas três categorias principais de resposta: 1. o efeito sobre a “ampliação do olhar do estudante sobre a saúde”, 2. o “reforço de conceitos de saúde coletiva” e 3. os “efeitos sobre a saúde dos discentes”.
Na categoria 1. “ampliação do olhar dos discentes sobre a saúde”, foram identificadas sete subcategorias relatadas como: 1.1 “ampliação do olhar sobre o cuidado ampliado” e 1.2 “ampliação das formas de cuidado”; 1.3 “ampliação da escuta dos discentes para os pacientes”; 1.4 “ampliação do leque de recursos terapêuticos”, 1.5 “ampliação do campo de atuação profissional”; 1.6 “agregação de conhecimentos relacionados saberes populares e ancestrais” e 1.7 “outras racionalidades em saúde”.
A ampliação do olhar sobre o cuidado integral (1.1), sobre as formas de cuidado (1.2) e ampliação da escuta (1.3) são respostas muito frequentes dos alunos frente a este contato com as PICS em sua formação.
Nogueira (2010) traz esta mesma constatação sobre uma disciplina de Medicina Chinesa e Homeopatia do curso de medicina da Universidade Federal Fluminense. Segundo a autora, é possível “facilitar a construção de um olhar integral sobre os usuários dos serviços de saúde, resgatando os aspetos subjetivos do adoecimento” (2010, p.130) e que a reflexão sobre as “racionalidades médicas” pode se tornar uma ferramenta importante para a formação de profissionais capazes de lidar com a complementaridade entre os saberes, na perspetiva da integralidade.
Outros efeitos como a ampliação do leque de recursos terapêuticos (1.4) e do campo de atuação profissional (1.5); agregação de conhecimentos relacionados saberes populares, ancestrais (1.6) e outras racionalidades em saúde (1.7) são observados por diversos autores (Nogueira, 2010, James & Bah, 2014; Nascimento et al., 2018; Armson et al., 2019) e podem ser exemplificados com a resposta do R21: “As PICS oportunizam uma olhar mais holístico, humanizado e biopsicossocial dos estudantes, gestão do autocuidado, além de ampliar seu campo de atuação profissional”.
A segunda categoria identificada como 2. “reforço de conceitos de saúde coletiva” inclui três subcategorias, identificadas como 2.1 “fortalecimento de conceitos sobre promoção da saúde e prevenção de agravos, 2.2 “atenção básica em saúde´” e 2.3 “abordagem centrada no usuário”, como efeitos da inclusão das PICS na formação dos discentes (Figura 3).
O trecho de uma das respostas torna explícita tal reflexão: “Ampliação do leque de possibilidades de recursos de cuidado individuais e coletivos, com foco desde a promoção da saúde, prevenção de agravos até o processo de cura e reabilitação. Compreensão e respeito aos diferentes saberes e atores da saúde (para além do recorte de profissionais de saúde)” (R4). Desta forma, é possível estabelecer uma articulação entre as características conceituais das PICS e as premissas humanizantes atuais do campo da Saúde Coletiva, tais como: a ampliação da clínica, o acolhimento, o cuidado e a integralidade das ações de saúde (Nogueira, 2010). As PICS apresentam-se plenas de potencialidades de contribuição para a construção da integralidade no SUS (Tesser, 2010).
Como reforço à importância das PICS para o fortalecimento dos princípios do SUS, destaca-se a publicação de uma Nota Técnica pelo Grupo Temático de Racionalidades Médicas e PICS da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) em 2019, que traz recomendações para uma formação de qualidade em PICS e que deveriam ser seguidas desde o contato com estas nos cursos de graduação (Abrasco, 2019).
A terceira categoria incluída nesta análise foi a perceção dos respondentes sobre a saúde do estudante e estímulo ao autocuidado destes, e três subcategorias foram construídas: 3.1“maior consciência corporal”, 3.2 “autoconhecimento” e 3.3 “mais tranquilidade, redução de ansiedade...”. Por vezes, em uma mesma resposta, várias unidades de sentido aparecem em articulação, como podemos ver na resposta do Q29: “Só efeitos benéficos: autoconhecimento, autoamor, autocuidado, autocura... e por aí vai”.
O contexto pandêmico em que vivemos atualmente agudizou ainda mais a crônica situação de sofrimento da sociedade no século XXI.
O modelo de pensamento neoliberal, em que os indivíduos internalizam um ideal empresarial de si mesmos e passam a se vigiar e se autoavaliar constantemente para alcançar um alto nível de desempenho, tem gerado um adoecimento neuronal, uma “sociedade do cansaço”, marcados por índices elevados de depressão, ansiedade, transtornos de déficit de atenção e síndrome de burnout (Safatle & Silva Jr, 2020; Han, 2015).
Neste contexto, a prática integrativa vem sendo cada vez mais procuradas, na busca de um repouso mental, de uma autonomia no cuidado e de uma reconexão com a natureza e com práticas tradicionais ancestrais. A pesquisa PICCovid que mapeou a utilização de PICS durante a pandemia, identificou um aumento em problemas como ansiedade e insônia e, como principais práticas utilizadas, a meditação e a utilização de plantas medicinais (Observapics, 2020).
Diante da escassez de disciplinas que incluem PICS nos currículos de saúde e do embate epistemológico que permeia a resistência às práticas não hegemônicas, as PICS tendem a ser mais curricularizadas a partir do fortalecimento da Extensão, o que proporciona que os estudantes sejam engajados nas questões sociais e trocas de saberes em tempos tão complexos. Para tanto, os desafios envolvem desde a quebra de paradigmas nos modos de cuidar, quanto na gestão de recursos para garantir a presença das PICS nos projetos e programas.
Desta forma, reforça-se aqui a necessidade de se valorizar todos estes aspetos conceituais e vivenciais ao se elaborar propostas de inserção das PICS na formação dos estudantes da saúde para que estas práticas não sejam apropriadas como meras técnicas pelos modos de produção biomédico ou somente como mais uma opção no concorrido mercado de trabalho.
4. Considerações Finais
A análise de conteúdo das respostas aos questionários, por seu caráter minucioso e detalhista, mostrou-se como um método que permitiu que os sentidos construídos pelos participantes, acerca de suas relações com as PICS, pudessem ser aglutinados em categorias analíticas que nos possibilitaram realizar discussões em articulação com as produções acadêmicas mais recentes sobre o campo da formação, inclusive a partir das diretrizes da PNPIC. Tal análise ressaltou os conceitos, os sentidos e as perceções dos professores e coordenadores, reforçando, assim, a necessidade e validade de se incluir os conteúdos, práticas, vivências, sentidos, pesquisas, discussões e cuidados em PICS na formação do discente em saúde e apontam os caminhos para a elaboração de currículos, disciplinas e atividades curriculares de PICS.
Algumas categorias analíticas ofereceram pistas para o fortalecimento das PICS nos cursos de graduação, a exemplo das categoria “Racionalidades em saúde”, que pode ser mais bem investida, em especial os conceitos de PICS associados aos “Sistemas Médicos Complexos” e às “Práticas e Conhecimentos Ancestrais”, que se mostraram como riquezas teóricas para os participantes da pesquisa, incluindo a abordagem dos paradigmas que orientam as PICS, caso contrário, repetir-se-á a visão fragmentada e tecnicista do modelo biomédico.
No campo das práticas, diversas categorias tornaram evidentes os benefícios para a formação humanizada e ampliada em saúde, cujas unidades de sentido puderam sinalizar aspetos diversos no que tange à aceitação, aos efeitos, à finalidade e à motivação que atravessam a vivência de ensino e da aprendizagem das PICS nos cursos de graduação em saúde no Estado da Bahia. A apropriação das PICS pelo modelo biomédico tem sido cada vez mais frequente, na tentativa adaptá-las aos métodos de pesquisa e organização dos serviços de saúde, exigidos pelos padrões acadêmicos convencionais, mas também como forma de mercantilização fomentada pelo corporativismo das profissões de saúde.
Cada uma das falas aqui foi plenamente valorizada e exposta, atribuindo sentido e valor. Mas acima de tudo, esse estudo testemunha um exercício de muitos autores em garantir a presença de outros modos de cuidar e pensar na integralidade em saúde no âmbito acadêmico.