1. Introdução
O Brasil, durante séculos, negou a existência de preconceito contra os negros, o que sempre remeteu a ideia de que o país é uma “ilha de democracia racial”, na qual o brasileiro não é racista, mas afirma estar cercado por eles, como explica Schwarcz (2007). Até a década de 90, o estado brasileiro não se utilizava das categorias de discriminação racial e racismo para oferecer explicações acerca do fato da população preta possuir os índices mais baixos de desenvolvimento humano, em contraposição aos índices elevados dos brancos. No entanto, devido a importante luta do movimento negro, o Estado, reconhecendo a realidade das discriminações e desigualdade que acometem os negros no país, em parceria com o Conselho Nacional de Educação promoveu uma série de debates que resultaram, posteriormente, em determinações legais para estudos sobre o tema nas instituições de ensino formal (Munanga, 1996).
De modo similar, os povos indígenas sofreram por terem a sua identidade étnica apagada ao longo da história do Brasil (Lima, 2014). Também vale ressaltar o período pós-colonial, no qual os indígenas deixaram de ser vistos como um problema a ser resolvido, já que a mão de obra antes realizada por eles passou a ser feita por imigrantes europeus, o que contribuiu para que eles se tornassem ainda mais invisibilizados socialmente e historiograficamente (Souza et. al., 2018). Apenas em 1973 houve a criação da lei que dispõe sobre o Estatuto do Índio - Lei Nº 6.001/73 - e que tem como propósito proteger e preservar as suas tradições e costumes, como também estender a proteção das leis do Estado aos mesmos de forma a “integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional” (Lei nº 6.001, 1973). E em 1988, com a Constituição (Artigo 231) houve o reconhecimento pelo Estado dos indígenas como “cidadãos plenos e diferenciados”, assegurando-os o exercício dos direitos sociais e individuais, bem como o bem-estar, a liberdade, a igualdade, a justiça e a segurança (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988).
Nesse contexto, a Lei de nº 10.639/03 instituiu a obrigatoriedade do conteúdo de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana em todas as disciplinas do currículo escolar da educação básica nas diretrizes e bases da educação nacional (Lei nº 10.639, 2003). Posteriormente, foram elaboradas a Resolução CNE 01/2004 e o Parecer CNE 03/2004, instrumentos oficiais que, além de regulamentarem o cumprimento da Lei, contém orientações para a abordagem das temáticas étnico-raciais nos espaços educacionais (Parecer CNE/CP 003/2004, Resolução CNE nº 1, 2004). Mais tarde, com a promulgação da lei 11.645/08, foi instituída, de modo complementar, a obrigatoriedade do Ensino de História e Cultura Indígenas nos Ensinos Fundamental e Médio em todas as disciplinas escolares, de modo que, atualmente, a temática relativa à diversidade, cultura, etnia e raça é, por lei, dever de inclusão obrigatória dentro das escolas (Lei nº 11.645, 2008).
No artigo que abre a Resolução 01/2004, são instituídas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (Resolução nº 1, 2004). O Parecer CNE 03/2004, dando continuidade ao enfoque neste tema, determina, dentre outras coisas, ações a serem desenvolvidas pelas Instituições de Ensino Superior que possuam programas de formação inicial ou continuada de professores, dentre as quais, observa-se a inclusão de temáticas e questões relativas às africanidades no conteúdo das atividades curriculares e disciplinas dos respectivos cursos.
Segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das relações Étnico-Raciais, os educadores necessitam reformular suas formas e práticas de ensino no que tange às temáticas étnico-raciais, de modo a construir uma relação integrada entre cultura, diversidade, ensino e educação (Santos, 2021).
A educação baseada nas relações étnico-raciais, africanidades e indigenismos, objetiva, de modo prioritário, a formação de cidadãos e de uma sociedade voltada para a promoção de condições equitativas no exercício de direitos políticos, sociais e econômicos. Contudo, a reflexão acerca do papel da universidade no preparo de cidadãos críticos que pensem e sejam conscientes sobre as questões étnico-raciais e sociais não é tarefa simples (Matte Júnior, 2017). Segundo Aranha (1996), as universidades surgiram no século XI como estabelecimentos de saber erudito, local onde ocorriam os grandes debates, principalmente, naquilo que concerne às questões universais. Posteriormente, se fortaleceram e começaram a construir uma ideologia de fundo com a finalidade de legitimação dos interesses burgueses. Deste modo, explica-se, em parte, as pretensões de certas instituições universitárias que objetivam a universalização de padrões e o atendimento da lógica dos dominadores, sendo estes últimos sintetizados pelo mercado de trabalho; deixando, por outro lado, de enfatizar certos assuntos profundamente relevantes da cultura e história de seu povo. Muitas universidades ainda hoje reproduzem esses paradigmas, colocando para segundo plano os temas raciais e étnicos.
É nesta perspectiva que se questiona: como a Universidade Federal da Bahia (UFBA) e a Universidade do Estado da Bahia (UNEB) estão organizando a formação docente de modo que atenda à proposição das leis e diretrizes que regulamentam a abordagem da temática étnico-racial no sistema educacional?
2. Metodologia
O presente trabalho se trata de uma pesquisa qualitativa, de caráter comparativo. Tem como objetivo analisar a abordagem das questões étnico-raciais nos componentes curriculares obrigatórios dos cursos de licenciatura da UFBA e da UNEB. Para isso, realizaram-se uma análise documental e uma análise de similitude, com suporte do software Iramuteq.
A pesquisa qualitativa, segundo Minayo et. al. (2016, p. 22), possibilita que o pesquisador se integre de modo mais aprofundado “[...] no universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis”. De modo adicional, Maanen (1979) define a pesquisa qualitativa como aquela que tem por finalidade traduzir e expressar o sentido dos fenômenos do mundo social. Partindo dessa compreensão, aduziu-se ser esta a perspectiva de análise mais coerente para o objetivo do estudo.
Diante disso, Pimentel (2001, p. 180) explica que “Estudos baseados em documentos como material primordial ... extraem deles toda a análise, organizando-os e interpretando-os segundo os objetivos da investigação proposta”.
Ademais, observa-se que a análise documental se perfaz como de suma importância para a pesquisa qualitativa uma vez que ora complementa informações obtidas por outras técnicas, ora desvela novos e outros aspectos de um problema ou de um tema (Ludke & André, 1986). Considerando estes fatos, ressalta-se a relevância de desenvolver o presente estudo seguindo tal proposta.
Nesse contexto, o uso de softwares na pesquisa qualitativa tem se apresentado como um importante aliado do rigor metodológico desde a década de 80. Entre os benefícios mais relevantes de sua utilização é possível citar a dinamização do processo de organização e tratamento dos dados textuais. Contudo, é necessário ressaltar que tais ferramentas apenas dão suporte ao processo de análise, que depende essencialmente da interpretação dos pesquisadores envolvidos (Camargo & Justo, 2013; Souza, Wall, Thuler, Lowen & Peres, 2019). Na presente investigação, o uso de tal ferramenta foi bastante relevante e otimizou significativamente os processos, tendo em vista principalmente o volume de arquivos que foram analisados.
O software utilizado foi o Iramuteq. Este, é largamente empregado para o tratamento de dados textuais e para realização de análises lexicográficas. Sobretudo, por apresentar rigor estatístico e possuir uma gama de possibilidades de análises lexicais. Baseado no ideal de “ciência livre”, o programa tem acesso gratuito e do tipo open source e foi desenvolvido na linguagem de programação Python, utilizando o software R para realização de suas análises estatísticas (Camargo & Justo, 2013).
Através desse programa, é possível desenvolver análises lexicais, das mais simples às mais complexas, sendo elas: Análises Estatísticas, Especificidades e Análise Fatorial Correspondente (AFC), Classificação Hierárquica Descendente (CHD), Análise de Similitude e Nuvem de Palavras. Para tanto, é necessário preparar o corpus textual com as codificações corretas das linhas de comando e coerentes com os objetivos do estudo, além de formatar o texto segundo as especificidades do software para evitar erros (Camargo & Justo, 2013). Na construção do corpus textual desta investigação, foram consideradas como variáveis: as disciplinas em si, os diversos campi onde são ofertadas, os seus respectivos cursos e, se o conteúdo das ementas apresentava uma abordagem direta ou indireta de conteúdos inerentes à temática étnico-racial.
Neste estudo, optou-se pela realização de Análises de Similitude. Esta, se constitui como de fundamental importância para a compreensão dos agrupamentos e conexões dos elementos analisados, organizando-os com a finalidade de contribuir para a compreensão dos seus sentidos (Alves-Mazzotti, 2007). Baseada na teoria dos grafos, através dela, é possível organizar e distribuir o vocabulário do corpus em análise “de forma facilmente compreensível e visivelmente clara” (Camargo & Justo, 2013, p. 515). A partir disso torna-se possível também identificar as coocorrências entre as palavras.
Diante disso, os resultados dessa análise podem ser chamados de “árvores de similitude”, que consistem em diagramas, que apresentam o agrupamento das palavras de acordo com a sua correlação, a partir dos indicadores estatísticos identificados pelo software (Klant & Santos, 2021).
Considerando isso, o tamanho das palavras dispostas e a espessura dos ramos que as conectam são variáveis, de acordo com o grau de correlação identificado entre elas. Seguindo as configurações corretas do software, é possível ainda converter os agrupamentos em diferentes halos coloridos que tornam a interpretação ainda mais didática. (Camargo & Justo, 2013). Para executar essa análise no programa, o pesquisador deve selecionar as classes de palavras de interesse para o estudo. Na presente investigação, para a criação das árvores de similitude das duas instituições foram consideradas as seguintes classes de palavras presentes no corpus: substantivos, adjetivos, verbos.
Nessa perspectiva, o emprego da análise documental construiu-se a partir da leitura integral e análise das ementas de todos os componentes curriculares disponíveis dos cursos de licenciatura da UFBA e da UNEB, coletados nos sites oficiais das respectivas instituições. Nesta etapa, a priori foi realizada a identificação das ementas que continham elementos inerentes à proposta da educação para as relações étnico-raciais. Para tanto, utilizou-se como parâmetro de análise as Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais, bem como as Leis de n° 10.639/03 e 11.645/08.
Tendo como base tais documentos, na sequência foi realizada a separação das ementas identificadas previamente quanto à abordagem dada a temática em seu texto. Foram consideradas como disciplinas de abordagem direta de elementos da educação étnico-racial, aquelas que apresentavam em seu texto oficial temáticas também expressas diretamente nos textos das Diretrizes e/ou das Leis analisadas. De modo similar, foram consideradas como de abordagem indireta, aquelas disciplinas que no texto da ementa não explicitavam diretamente tais temas, no entanto propunham a abordagem de temáticas afins ou apresentavam entre os conteúdos programáticos propostos ou referências utilizadas, elementos afins a proposta da educação para as relações étnico-raciais.
Feito isto, foram criados então dois corpus textuais para serem submetidos ao software, um para cada instituição, contendo todas as ementas analisadas e classificadas na etapa prévia e seguindo as coordenadas de variáveis explicitadas anteriormente. As árvores de similitude geradas pelo Iramuteq, permitiram então explorar de maneira ainda mais minuciosa o textos em questão, evidenciando em halos coloridos os principais conjuntos de palavras mais frequentemente associados, de uma maneira bastante didática e de fácil visualização. Isto, associado a leitura integral das ementas, permitiu que fossem identificados e interpretados os principais núcleos de sentidos dados a temático objeto do estudo, dentro dos textos. Nesse sentido, a análise de similitude foi significativa e trouxe importantes contribuições à investigação.
Em vista deste percurso metodológico, evidenciou-se que o conjunto desses métodos, atuando de forma complementar, demonstrou ser bastante efetivo para o bom desenvolvimento do presente estudo. A partir disso, acredita-se que a comparação dos seus resultados permite vislumbrar como a decolonialidade e as narrativas étnico-raciais atravessam o ensino superior público no estado da Bahia.
3. Resultados e Discussão
Foram analisadas 1004 ementas de componentes curriculares de 30 cursos de licenciatura da Universidade Federal da Bahia. Destes, 27 componentes curriculares apresentaram em seu texto alguma abordagem da temática étnico-racial (2,68%). As análises apontaram que os cursos com mais componentes com conteúdos de cunho étnico-racial foram História, Música, Música-Piano, Dança e Teatro. Já os cursos com menor oferta foram Ciências Biológicas, Computação, Matemática e Química.
A análise de similitude gerada com as ementas da UFBA, apresentada a seguir na Figura 1, resultou num diagrama com sete halos. Essa distribuição permite inferir que a palavra “estudo” teve grande importância no corpus, sendo o núcleo originário do halo verde-água e ainda o ponto de conexão com a origem de outros halos. Observou-se que neste halo, foram identificadas também outras palavras frequentemente associadas a ele como: “educação, ensino, análise, processo, arte, fundamento, literatura, contemporâneo, questão, conceito, cultural, histórico, principal, crítica, aspecto, antropologia e didático”. Diante disso, percebeu-se que um dos enfoques temáticos predominantes foi o estudo de diversas manifestações artísticas, seus fundamentos e conceitos, considerando aspectos históricos e críticos. Sua influência na composição cultural e importância para a educação brasileira. Esse achado corrobora com o anterior, que apontou os cursos de Música, Dança e Teatro como alguns dos principais cursos com abordagem de temas referentes a educação para as relações étnico-raciais.
Quanto a UNEB, foram analisados 3.654 componentes curriculares, de 69 cursos de licenciatura. Destes componentes, 550 ementas apresentaram abordagens da temática étnico-racial (15,05%). As licenciaturas que apresentaram o maior número de componentes curriculares relacionados à temática étnico-racial foram as de História, Pedagogia, Teatro, Geografia, Matemática, Letras/Português. Enquanto isso, as que menos ofertaram disciplinas inerentes à temática, foram Física, Química, Ciências Biológicas, Letras/Francês, Letras/Inglês, Letras/Espanhol e Educação Física.
Na árvore de similitude gerada a partir das ementas da UNEB, apresentada na Figura 2, a seguir, foram identificados seis halos. Foi possível observar que o termo “estudar” teve grande destaque no diagrama, e constituiu a origem do halo amarelo, de maior representação do corpus. Outras palavras de destaque que também configuraram este grupo foram “formação, questão, cultura, brasileiro, analisar, texto, abordar, diverso, produção, nacional, literário, antropologia, literatura, espaço, século, perspectiva, diferente e novo”. Considerando isso, percebeu-se que um dos enfoques da abordagem de conteúdos étnico-raciais nos currículos é o estudo do processo de formação da sociedade brasileira, com ênfase no estudo de textos literários e em como eles refletem essa realidade e a diversidade da cultura nacional.
Segundo Silva (1995), as narrativas curriculares são fundamentais no que tange à delimitação de quais grupos sociais podem apenas ser representados, quais possuem o poder de representar a si e aos outros e quais devem ser excluídos dos processos representativos. Ademais, tais narrativas valorizam de maneiras diferentes os grupos sociais, de modo que elementos como a política, cultura, história, conhecimentos, religião, de determinados grupos acabam por possuir maior grau de relevância em detrimento de outros.
Lombardi (2021) acrescenta que a concepção de projetos político-pedagógicos nas instituições educacionais brasileiras tem sido historicamente marcada por referências culturais majoritariamente brancas. No entanto, é fato que as culturas negras e indígenas e suas produções artísticas são elementos fundamentais na construção da identidade da população brasileira e, portanto, é de caráter primordial que façam parte das propostas pedagógicas das instituições. Dessa maneira, é significativo que nos currículos da UFBA e da UNEB a educação para as relações étnico-raciais e a arte e a literatura estejam tão diretamente relacionadas. Sobretudo considerando que os campi principais de ambas as instituições situam-se no município de Salvador, considera a cidade mais negra fora do continente africano.
Na figura 1, os halos verde-água, amarelo, roxo, rosa e verde estão diretamente conectados. Isso pôde ser justificado, conforme será descrito na sequência, porque todos eles enfatizaram manifestações artísticas, seus elementos intrínsecos e importância educacional, entre outros fatores.
Nesta figura, o halo amarelo foi originado a partir da palavra "música" e composto também pelos termos "musical e capoeira". Esse agrupamento demonstrou um foco dado à educação musical e como através dela é possível explorar também elementos tradicionais da cultura nacional, destacando-se a capoeira, mas também outros, suas heranças afro-brasileiras e indígenas, incluindo a relação entre a música e a religiosidade.
A Universidade, enquanto instituição produtora de conhecimento e formadora de futuros profissionais para a sociedade, tem o papel de repensar a estrutura hegemônica educacional e incluir nos processos formativos as epistemologias subalternizadas. Nesse sentido, a capoeiragem, que destacou-se no halo em questão, inicialmente surgiu como arma ou instrumento de trabalhos não formais de negros e era considerada ilegal, mas ao longo do tempo foi ressignificada em elemento de identidade cultural e esportivizada, tornando-se inclusive Patrimônio Cultural Imaterial do povo brasileiro em 2008 (Machado & Costa, 2016). Nessa perspectiva, seu estudo e a educação musical como um todo, tem muito a contribuir com a educação para as relações étnico-raciais ao explorar as complexidades relativas “às musicalidades africanas, afrodiaspóricas e indígenas” (Santos & Candusso, 2021, p. 7).
Quanto ao halo roxo, o termo que o originou foi "identidade" e além dele, compuseram este grupo as palavras "construção, trajetória, teoria e folclore". A criação desse conjunto demonstrou que outro enfoque do corpus textual analisado foi o aprendizado de trajetórias que contribuíram para a construção de identidades, sobretudo culturais, dando destaque ao estudo de aspectos do folclore brasileiro para fazê-lo.
Para Gomes (2002), o processo de construção da identidade étnico-racial possui sua ênfase principal na diferença. Segundo a autora, "nenhuma identidade é construída no isolamento. Ao contrário, é negociada durante a vida toda por meio do diálogo, parcialmente exterior, parcialmente interior, com os outros” (Gomes, 2002, p. 39). Desse modo, o estudo das trajetórias que compuseram o percurso de formação das identidades culturais dos grupos étnicos que fazem parte do Brasil, a partir da perspectiva folclórica, evidencia a promoção de um olhar multicultural que, ao se diferenciar do eurocentrado, propõe de maneira dialógica a integração do folclore “a discussões mais amplas sobre a construção histórica das diferenças, dos preconceitos e formas de superá-los” (Canen & Santos, 2009, p.182). É importante destacar neste ponto, que não se trata aqui de “folclorizar” aspectos das culturas africanas e indígenas, mas de abordar criticamente elementos que já compõem o folclore desses grupos para discutir questões mais amplas como o respeito a diversidade cultural.
Já o halo verde originou-se a partir do termo "história" e junto com ele, foi constituído também das palavras "dança, período, século, mediterrâneo, nacional e XIX". A análise deste conjunto permitiu inferir que na mesma linha dos agrupamentos anteriores, este também enfatizou uma arte, no caso a dança, e como através dela, de sua história e elementos intrínsecos, é possível estudar e compreender períodos históricos e suas influências na narrativa da nacionalidade brasileira.
Para Machado (2018), a dança é tão antiga quanto a existência da humanidade. As danças folclóricas, danças de roda, danças tradicionais enquanto expressões da cultura de determinado povo ou sociedade, revelam o modo de como os sujeitos se relacionam entre si e com o meio onde vivem. De igual modo, contribuem também para a conformação da identidade nacional dos povos. No que tange a esfera educacional brasileira, Machado (2018, p. 66) defende que “a dança no campo pedagógico oferece uma reconexão, um “recordar” dos valores civilizatórios tão necessários para que possamos viver em harmonia com nós mesmos e com o outro”. Para a autora, a dança e a sua consequente corporeidade aguçam e enriquecem as trocas culturais das etnias que conformam o Brasil. Algo que só reafirma sua relevância no contexto da educação para as relações étnico raciais.
No halo rosa, a palavra de maior destaque e que deu origem ao grupo foi "cultura". Além dela, também formaram o agrupamento os verbetes "homem, moderno, popular, república, prático e teatro". Neste halo, ficou evidente que um dos focos temáticos das ementas analisadas foi o aprendizado de elementos da cultura popular brasileira, principalmente através do teatro, destacando-se a história deste no Brasil e na Bahia.
De acordo com Eugénio e Santana (2018), o teatro, no Brasil, já havia sido utilizado como ferramenta de trabalho para a abordagem das questões étnico-raciais a partir da experiência do Teatro Experimental do Negro (TEN). Fundado no ano de 1944, durante mais de 20 anos o TEN contribuiu para a discussão das relações raciais no Brasil, com a sua atuação voltada, sobretudo, às áreas de teatro e educação. Ainda segundo Eugénio e Santana (2018), a utilização de técnicas geradas pelo teatro pode contribuir de maneira significativa com a formação docente, principalmente no que concerne às relações étnico-raciais. O emprego de oficinas auxiliaria fortemente no processo de formação, visto que “é uma oportunidade de vivenciar situações concretas e significativas, baseada no tripé sentir-pensar-agir, com objetivos pedagógicos” (Paviani & Fontana, 2009, p.78).
Na figura 2, a cultura também emergiu como um enfoque muito importante, demonstrando que na UNEB esse tem também se destaca. O halo azul teve como palavra de origem justamente “cultura”, e ligadas a ela “conceito, história e contemporâneo”. Tal resultado demonstrou que outro enfoque na abordagem de conteúdos étnico-raciais nos currículos analisados é no aprendizado do conceito de cultura e suas implicações, levando em consideração aspectos históricos e suas influências para a realidade contemporânea.
O halo verde, também da Figura 2, por sua vez, evidenciou como central a palavra “cultural” e a partir dela, os demais termos que compuseram o grupo foram “estudo, relação, conhecimento, aspecto, histórico, concepção, construção, partir, refletir, científico, língua, português, indígena”. Diante disso, foi possível inferir que outra ênfase do corpus analisado está no estudo de elementos históricos que influenciam a construção da concepção de língua prevalente hoje e como tais aspectos tiveram impacto também no contexto cultural. Levando em conta além de elementos de influência africana, outros de origem indígena.
Nesse sentido, para Gomes (2018), as concepções de cultura presentes e consolidadas no âmbito curricular escolar, possuem engendradas em seu seio o racismo, o sistema patriarcal e as relações de poder que produzem práticas coloniais e colonizadoras. A colonialidade se materializa nos espaços acadêmicos quando há a adoção, pelos educadores, de posturas arrogantes naquilo que concerne às diversidades étnica, racial; quando há a disponibilização para o corpo discente de referenciais teóricos que possuem visões coloniais de mundo, quando há uma seleção restritiva dos conteúdos a serem discutidos com o alunado, buscando priorizar-se somente uma leitura unilateral da realidade sobre as variadas questões sociais, políticas e culturais. Deste modo, observa-se uma necessidade urgente do cuidado com a descolonização dos currículos. Ainda nessa perspectiva, o estudo de uma língua, ministrado a partir de um recorte que verse sobre os seus aspectos culturais, permite conhecê-la intrinsecamente. E, de igual modo, também oferece a possibilidade de análise de mecanismos danosos que se projetam na atualidade, como, por exemplo, o racismo.
Quanto à abordagem e problematização de questões sociais e suas origens, ambas as instituições demonstraram essa preocupação. Na UFBA, na figura 1, o halo azul, iniciado a partir do verbete "estado", teve como outros termos constituintes "político, econômico, economia, crise, novo e social". Este grupo, distanciou-se dos demais da árvore, inclusive na representação gráfica, porque destacou aspectos políticos, econômicos e sociais que contribuíram e contribuem para a conformação da sociedade brasileira tal como ela é. Nesta seara, evidenciou-se também papéis do Estado, na perspectiva institucional, tratando-se de questões históricas e contemporâneas relativas aos Estados Português, Brasileiro e Estados Africanos, tais quais elementos do colonialismo como mecanismos de conquista e dominação de povos indígenas e o tráfico de escravizados.
E ainda na Figura 1, o halo vermelho, originado pelo termo "sociedade", que foi um dos mais representativos no corpus, também abordou essa perceptiva. Este, foi constituído também pelas palavras "império, formação, problema, geral, reforma, mundo, constituição, Brasil, expansão, sistema, brasileiro, português e Europa". Neste conjunto observou-se que dois temas centrais e paralelos destacaram-se. O primeiro deles foi o Império Português e as influências europeias na constituição da sociedade brasileira, inclusive nos problemas que ela enfrenta até hoje. E o outro foi o estudo dos sistemas e reformas educacionais brasileiras, segundo as perspectivas histórica e organizacional.
Já na UNEB, na Figura 2, o halo vermelho destacou esse aspecto a partir da palavra “social”, que se encontrou fortemente associada ao termo “discutir”. Neste agrupamento também foram incluídos os termos “político, Brasil, econômico, política, movimento e tema”. Este conjunto de vocábulos elucida que neste halo, o enfoque está na discussão de temas sociais, políticos e econômicos que são de grande importância para o Brasil, como o racismo.
O halo rosa (Fig. 2), por sua vez, destacou como principal a palavra “processo” e incluiu em seu grupo também os verbetes “africano, estado e África”. Neste caso, o foco percebido foi na discussão de temas relativos ao desenvolvimento do continente africano, incluindo aspectos históricos, políticos e sociais.
Por fim, o halo roxo (Fig. 2) teve como elemento principal e originário do seu grupo, a palavra “educação”. Conectados a ela encontram-se também os termos: “didático, ensino, contexto, identidade, prático, desenvolvimento, básico”. A partir disso, foi possível inferir o enfoque nos debates acerca de temas relativos à educação, incluindo o processo de ensino e a didática que ele demanda. Dando ênfase às ações e abordagens práticas podem proporcionar melhor aprendizado dos indivíduos e desenvolvimento de sua identidade, enquanto sujeitos.
A discussão de problemáticas sociais é de suma importância na esfera da educação para as relações étnico-raciais, uma vez que ambas, muitas vezes, estão intrinsecamente conectadas. Siqueira et. al. (2021) defendem que a educação transcende a transmissão de conteúdos, uma vez que esta deve incluir também saberes culturais e sociais, sobretudo, aqueles que concernem às vivências dos sujeitos atores no processo de aprendizagem. Desse modo, é possível contribuir de maneira bastante significativa para a formação de atores sociais, principalmente, conscientes de seus papéis.
De acordo com Marques et. al. (2017), é de suma importância a problematização dos processos de significação e produção de saberes em países colonizados como o Brasil, de forma a se analisar como foram e são construídos, ao longo do tempo, os encontros entre culturas diferentes, desde a colonização até a contemporaneidade. Segundo Maldonado-Torres (2007), o colonialismo se manteve presente em todo o processo de construção da sociedade brasileira, sobretudo no que tange aos espaços de produção do conhecimento, junto com os ideais da modernidade e democracia.
Ainda segundo Marques et. al. (2017), a herança colonial atuou fortemente no processo civilizador brasileiro e produziu como resultado, dentre outras, a subalternização epistêmica, uma vez que hierarquizou e inferiorizou todos aqueles saberes que não se enquadravam no modelo eurocêntrico, o qual coloca o colonizador em uma posição de superioridade em relação ao indivíduo colonizado. Desse modo, os autores defendem a importância das propostas interculturais e decoloniais dentro do ponto de vista epistemológico e curricular, uma vez que possibilitam o diálogo na perspectiva da diversidade e da diferença cultural e atuam na descolonização do saber.
É fato que as epistemologias dominantes têm suprimido há muito tempo as epistemologias do sul. E isto é um grande reflexo de como a colonialidade atua perversamente até hoje alimentando um sentimento de subalternidade naqueles povos e locais fora do eixo eurocêntrico. (Souza, 2013). Nessa perspectiva, Oliveira e Candau (2010) expõem a colonialidade do saber, que se manifesta na desvalorização de toda produção de conhecimentos não europeus. Em contrapartida a isso, a educação para as relações étnico-raciais busca não só minimizar as desigualdades decorrentes dos preconceitos raciais, mas também destacar a importância e a necessidade de se aprender a partir de referências e conhecimentos africanos, afro-brasileiros e indígenas.
Acerca disso, Coelho e Coelho (2021) sugerem que o enfrentamento de problemas sociais como o racismo, deve observar também a necessidade de discussão dos processos de ensino e abordagens didático-pedagógicas coerentes com a problematização de temas sensíveis em sala de aula, principalmente no que concerne ao destaque da relação entre eles e a interação do corpo discente com o mundo. Tais enfrentamentos necessitam transcender a reformulação dos currículos e se efetivar, de fato, em práticas cotidianas que atuem na promoção da consciência cidadã e no cumprimento das demandas da sociedade civil.
Finalmente, vale destacar que a identificação desse enfoque nas artes, na história e na literatura, nas perspectivas de educação para as relações étnico-raciais adotadas pela UFBA e pela UNEB, segundo a análise exposta aqui, denota uma compreesão da relevância dessas áreas do conhecimento para este fim. Isto corrobora diretamente com o texto das DCN que no inciso 3º do artigo 3º afirma que no ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira na educação básica deve ser dada ênfase aos componentes curriculares de Educação Artística, Literatura e História do Brasil. Dessa maneira, também na formação de professores, temáticas afins a estes componentes devem ser reforçadas para que isso se projete na prática docente cotidiana.
4. Considerações Finais
Em vista dos resultados apresentados neste presente estudo, pode-se constatar que a construção das ementas que possuem conteúdos étnico-raciais nas instituições analisadas levou em consideração termos como história, sociedade, cultura, política e educação. Isso leva a concluir que ambas as universidades estão de acordo com o que é proposto pelas DCN para a Educação das Relações Étnico-Raciais e também com a Lei nº11.645/2008, mesmo que esses conteúdos, do ponto de vista proporcional à carga horária total do curso, não estejam presentes de forma satisfatória nos cursos de licenciatura da UFBA e UNEB, especialmente da UFBA (2,68% das ementas analisadas).
Ficou evidente que a busca pela decolonialidade está presente nas ementas das duas universidades, visto que nos textos das ementas e em ambas as árvores de similitude, pôde-se observar que há enfoque em temas como sociedade, cultura e formação, como também em aspectos econômicos, políticos e sociais que resultaram na construção da sociedade brasileira atual.
A importância deste estudo se dá pela conclusão de que a educação é um meio imprescindível para a emancipação ideológica. É através da mesma que se pode construir cidadãos críticos e observadores e é por isso que é muito importante entender como que ocorre a formação dos estudantes e também dos professores, principalmente em temas que necessitam de mais espaço e visibilização, como a presença de heranças africanas e indígenas na sociedade brasileira. Nesse sentido, a metodologia empregada foi bastante importante para evidenciar os achados e dinamizar os processos da investigação.
Sobre as limitações do estudo, é importante frisar que se trata de uma análise documental. Dessa maneira, estudos complementares seriam importantes para investigar de que maneira estes conteúdos estariam sendo efetivamente empregados na prática em sala de aula.