1. Introdução e Metodologia
Estudo de investigação na área da saúde, na perspetiva da enfermagem de saúde comunitária e de saúde pública, com recurso a metodologia qualitativa, na modalidade de estudo de caso. Neste trabalho centramo-nos em especial na área da enfermagem de saúde pública, ainda que hoje a designação comum seja, nos termos do Regulamento nº 428/2018, da Ordem dos Enfermeiros Portugueses (OE), “enfermeiro especialista em enfermagem comunitária na área de enfermagem de saúde comunitária e de saúde pública e na área de enfermagem de saúde familiar”.
Para Flick (2006), a investigação qualitativa segue métodos abertos, por melhor se ajustarem à complexidade do objeto, e Bowling (2009), acrescenta que é a mais adequada, quando há pouco conhecimento do fenómeno observado, as questões são complexas e incentivam a explorar e a gerar hipóteses. Creswell (2009) sustenta que esta não pretende generalizar os resultados, pois identifica que o valor está na particularidade do caso e não na generalização.
Yin (2018, p. 2) realça que o estudo de caso é o método a escolher, comparado com outros, “quando as questões principais de pesquisa são perguntas “como”, (how), ou “porquê”, (why), quando tens pouco ou nenhum controlo sobre os comportamentos, e o foco de estudo é um fenómeno contemporâneo, (ao contrário de ser totalmente histórico), “o caso””, não sendo claramente evidentes as fronteiras entre o fenómeno e o contexto.
O “caso” é o foco principal do estudo. Trata-se de uma entidade concreta, que pode ser uma pessoa, ou um grupo, ou até uma organização ou mesmo uma comunidade. Já o fenómeno contemporâneo é sempre uma manifestação do mundo real, que se vai estudar no presente, ainda que sem excluir também o respetivo passado recente. Assim se estabelece o sujeito no estudo de caso. Ao passo que o contexto são os dados exteriores ao caso, estabelecendo, ao mesmo tempo, os seus limites do caso, e a respetiva unidade de análise (Yin, 2018).
O “caso”, nesta investigação, são os enfermeiros especialistas de saúde comunitária e de saúde pública, situados num ACES, e, em especial na respetiva Unidade de Saúde Pública (USP), o fenómeno contemporâneo, sendo que, o ACES funciona ao mesmo tempo como o seu contexto, e limite, constituindo a unidade de análise, configurando um estudo de caso único.
Os ACES “são institutos públicos de regime especial, integrados na administração indireta do Estado, dotados de autonomia administrativa e podendo deter património próprio, constituídos por centros de saúde”. Que têm “por missão garantir a prestação de cuidados de saúde primários à população de determinada área geográfica”. Desenvolvendo “atividades de promoção da saúde e prevenção da doença e de tratamento e acompanhamento no processo de assistência à saúde, contribuindo para o aumento da literacia em saúde e assegurando respostas de proximidade e de integração de cuidados. (DL nº 52/2022, p. 19).
1.1 Descrição da Metodologia
Para Yin (2015), o estudo de caso é uma abordagem metodológica de investigação, adequada para compreender, explorar ou descrever intervenções no seu contexto, com múltiplas técnicas de recolha de dados. Recorremos à entrevista, à observação direta e à análise documental dos registos oficiais e em arquivos, relativos aos indicadores públicos e publicitados do Agrupamento de Centros de Saúde (ACES), dos últimos 10 anos. O recurso a várias fontes de dados, para as triangular, confere-lhe a validade exigida (Foss & Ellefsen, 2002, Coutinho, 2011).
Conforme Yin (2018), as entrevistas de estudo de caso assemelham-se mais a conversas guiadas do que a questionários estruturados. Ainda que se siga uma linha de questionamentos estruturada e consistente, o conjunto de questões é mais provável que seja fluído do que rígido.
O que quer dizer, que o investigador tem dois trabalhos, durante uma entrevista de estudo de caso, seguir a sua própria linha de questionamento, como prevista no protocolo, e verbalizar as questões de uma forma não enviesada. É a diferença entre as questões de why (porquê), e how (como). Questionar o why, cria uma atitude defensiva por parte do entrevistado, pelo que how se torna a forma preferencial de começar qualquer questão na conversa real (Yin, 2018).
Nesta investigação, as entrevistas também foram a principal fonte de recolha de dados, a partir de um protocolo previamente preparado, associado a um “Consentimento Informado, Livre e Esclarecido”.
A observação direta acontece no contexto real do caso. Assim, o fenómeno a ser investigado para além, de carregar uma trajetória histórica, compõe-se de aspetos humanos, sociais e ambientais que estão disponíveis para observação. Tais observações alimentam as fontes de evidências, podendo ser formais ou informais. A observação direta é útil, porque acrescenta informação ao fenómeno que está a ser estudado (Yin,2015).
Para as primeiras, formais, seguimos os instrumentos observacionais preparados, um guião de observação e correspondente consentimento. As observações informais decorreram em simultâneo ao trabalho de campo, por exemplo, durante a realização das entrevistas.
O consequente registo foi feito no “caderno de notas de campo”, logo que surgiu a oportunidade, para não estarmos a tomar notas no decorrer das situações, pelo que de inibidor podia representar. Somente em casa foi feito o preenchimento do guião de observação direta. O conjunto dos guiões deu origem a uma folha de Excel, com as temáticas em coluna, e as observações em linha, criando assim o respetivo banco / base de dados.
As observações diretas, mais formais, foram em número de oito, com a duração média de três horas cada e decorreram entre setembro e dezembro de 2019.
Recorremos ainda, à análise dos documentos relacionados com os indicadores publicitados pela ARSLVT, e a própria Unidade, conforme autorizado, como consta do Parecer Favorável da Comissão de Ética.
Em respeito aos princípios éticos, para a necessária proteção dos sujeitos participantes, elaboramos, e foram apresentados e aceites e por cada um dos participantes, o respetivo Consentimento Informado, Livre e Esclarecido, no momento anterior à realização da correspondente entrevista, garantindo-lhes ainda confidencialidade e anonimato, no subsequente tratamento e análise dos dados, bem como a sua divulgação científica.
Os participantes foram enfermeiros, com uma média de tempo de serviço de 25 anos, mas a diferença vai de 13 a 40 anos. No que respeita ao tempo na especialidade, a média é de 9 anos, mas encontramos enfermeiros com 2 anos e 27 anos de especialização. A especialidade com mais sujeitos, na amostra, é a enfermagem de saúde comunitária, e apenas seis dos entrevistados detinham a especialidade de enfermagem de saúde pública, sendo que, três deles, com a designação de enfermagem de saúde comunitária e de saúde pública.
A média de tempo de serviço nos cuidados de saúde primários era de 16 anos, sendo que a média para aí chegar foi de 10 anos. O tempo médio na atual situação era também de 10 anos, ainda que tenhamos encontrado enfermeiros perto dos 30 anos no mesmo serviço. A grande maioria era do sexo feminino, e a média de idades rondava os 48 anos, na realidade entre 34 e 63 anos.
Foram realizadas 31 entrevistas, não tendo havido qualquer contacto prévio, ou conhecimento pessoal com nenhum dos entrevistados, nem eles conheciam o entrevistador (investigador). O respetivo agendamento foi realizado, na sua maioria, através de email e alguns presencialmente. No dia da entrevista realizamos uma breve apresentação do estudo, e seus objetivos, bem como foi obtida a assinatura do já referido individual Consentimento Informado, Livre e Esclarecido.
As etapas metodológicas são semelhantes às dos outros tipos de pesquisa, definir o caso único ou o grupo de casos similares, saber o que já se sabe sobre o caso, que pode incluir uma revisão de literatura. Por fim os dados são, a maior parte das vezes, mas não exclusivamente, qualitativos por natureza (Heale & Twycross, 2018).
1.2 Tratamento e Análise dos Dados
No tratamento dos dados recorremos ao software MAXQDA2020, sendo a autora a codificadora. As entrevistas foram primeiro objeto de uma transcrição ipsis verbis, exceto no que se tratava de coloquialismos, bem como de expressões repetidas, e marcas próprias da oralidade, sendo-lhes atribuído o respetivo código alfanumérico, pelo qual passaram a ser identificadas, desde então.
A seguir, através da elaboração de uma tabela em Excel, foram criadas linhas para cada sujeito, e colunas para cada questão, do protocolo de entrevista, em ordem a mais facilmente observar as regularidades existentes. Também, numa tabela em Excel foram agrupados os dados, retirados da ficha de entrevista, que fez parte do mesmo protocolo, para traçar o perfil dos entrevistados.
A análise foi feita com recurso ao já referido programa informático de análise qualitativa de dados, o MAXQDA2020, onde foram criados os códigos e agrupados nas cinco categorias emergentes: o conhecimento das competências pelo enfermeiro; a prática do enfermeiro sistematizada em intervenções; o que facilita e dificulta o desempenho das competências; as intervenções de facto e as competências previstas; enquadramento legal e regulamentar que o enfermeiro identifica.
Para análise das evidências organizamos uma matriz interpretativa dos dados, composta por duas estratégias e duas técnicas de análise, entre as propostas por Yin (2018). A primeira estratégia parte das proposições teoréticas prévias, que conduzem o caso em concreto, e a segunda consiste em trabalhar os dados emergentes. A estas, juntamos duas técnicas de análise, combinar padrões, “pattern matching”, e construir explicações, “explanation building”. Esta matriz operacionalizou-se através da análise dos dados recolhidos.
Assim, a primeira estratégia partiu das proposições prévias, desenhadas para a colheita dos dados, configurando assim as nossas prioridades analíticas. A segunda estratégia, pelo contrário, visou fazer sobressair os dados emergentes, independentemente de qualquer prioridade anterior, uma vez que, simplesmente se dedicou a “passear entre os dados”, ou a “jogar com eles”, como propõe o autor (Yin, 2018).
A primeira técnica analítica teve como finalidade comparar dados com padrões prévios, formados a partir de evidências pré-existentes, antes mesmo de começarmos a colheita de dados. Assim, partimos de afirmações retiradas de pesquisas anteriores, uma Revisão Scoping de Literatura (Cunha et al., 2019) bem como uma RSL (11), centradas na mesma temática, com resultados já publicados. Seguindo Yin (2018), fomos investigar os “comos (how’s)” e os “porquês (why’s)”, para concordar com eles, ou os contradizer.
Com a segunda técnica analítica, dedicamo-nos a levantar hipóteses explicativas, uma vez que, nesta metodologia de estudo de caso, se prevê a construção de explicações para o objeto em estudo, como propõe Yin (2018).
Recentemente publicaram-se outros estudos nesta área da enfermagem de saúde pública, como é o caso de “Experiences of front-line nurses combating coronavírus disease-2019 in China: A qualitative analysis”, de Liu et al. (2020), “Development of a COVID-19 alternate care site from ground the COVID-19 pandemic”, de Edmonds et al. (2020).
Sendo os enfermeiros o maior grupo de trabalhadores em saúde, em Portugal, como frisou o relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS, 2018), são importantes os seus contributos, para a promoção da saúde e prevenção da doença (Cunha et al., 2022).
Pretendemos responder à questão de investigação: quais as intervenções dos enfermeiros especialistas de saúde comunitária e de saúde pública no ACES, em especial na USP?
2. Resultados e Discussão
2.1 Competências
Tomando como referência o conceito do Regulamento/OE nº 76/2018 (p. 3478), competências são:
“os conhecimentos, habilidades, e atitudes que dão resposta às necessidades, nos diversos domínios de intervenção, acrescentando, às competências de enfermeiro especialista, a perícia fruto da complexidade permanente dos conhecimentos, práticas e contextos numa área de intervenção avançada, potenciando a promoção da qualidade da intervenção do enfermeiro especialista”.
E aplicadas a este enfermeiro, conforme enuncia o Regulamento/OE nº 428/2018 (p. 19354):
“O perfil de competências específicas do Enfermeiro Especialista em Enfermagem Comunitária que integra, juntamente com o perfil das competências comuns do enfermeiro especialista definidas em regulamento próprio, o conjunto de competências clínicas especializadas e concretizadas consoante o alvo e contexto de intervenção, na área de Enfermagem de Saúde Comunitária e de Saúde Pública (…)”.
E tendo em conta que, o artigo 2º, do mesmo Regulamento (2018, p. 19354), define as “competências específicas do Enfermeiro Especialista em Enfermagem Comunitária, na área de Enfermagem de Saúde Comunitária e de Saúde Pública”, que são:
“a) Estabelece, com base na metodologia do Planeamento em Saúde, a avaliação do estado de saúde de uma comunidade; b) Contribui para o processo de capacitação de grupos e comunidades; c) Integra a coordenação dos Programas de Saúde de âmbito comunitário e na consecução dos objetivos do Plano Nacional de Saúde; d) Realiza e coopera na vigilância epidemiológica de âmbito geodemográfico”.
Através do guião das entrevistas, conseguimos obter resultados sobre, como na prática os enfermeiros concretizam estas suas competências, em intervenções no contexto real de atuação.
Apesar de outras evidências (Guedes et al., 2016), os enfermeiros aparentam compreender as suas competências, mesmo as que referem concretizar menos. Construímos a hipótese de que estes enfermeiros, mesmo não tendo uma relação semelhante com todas as suas competências, leva à prática a maioria delas, e ainda estão disponíveis para uma diversidade de atividades. Apesar de estarem bem preparados, frequentemente sentem-se limitados pelo que lhes atribuem (Cunha et al., 2021).
Ainda que não esteja confirmado um ambiente favorável, à atribuição de mais competências aos enfermeiros, discute-se esta opção (Temido et al., 2014; Temido et al., 2015). Fronteira et al. (2020), afirmam que, em Portugal, haverá abertura ao alargamento do papel dos enfermeiros, ainda que se constate pouca capacidade de mobilização dos próprios, que poderão estar divididos sobre o assunto.
Também noutras realidades esta problemática parece discutir-se, mesmo tendo em conta as diferenças culturais de países como a Índia, a China, o Japão, o Brasil, ou os EUA. Referimos o estudo brasileiro que faz a análise das competências e seu desenvolvimento (Lopes et al., 2020), ou, o estudo americano, sobre a revisão das competências dos enfermeiros de saúde comunitária e de saúde pública (Campbell et al., 2020).
De salientar que o atual “Programa Formativo que integra o ciclo de estudos do curso de Mestrado, que visa o desenvolvimento de competências específicas do Enfermeiro”, nestas áreas, parece alargá-las, como é exemplo das seguintes: epidemiologia/bioestatística; promoção da literacia e autocuidado; determinantes sociais e da saúde; governação clínica; políticas de saúde; saúde ambiental; contratualização e financiamento (Programa Formativo/OE, 2021 & Declaração de Rectificação/OE, 2021).
2.2 Intervenções
Intervenção é um conjunto de ações com um objetivo coerente para provocar mudança ou produzir resultados identificáveis (Frich, 2003). E, segundo a Classificação das Intervenções de Enfermagem, uma intervenção será qualquer tratamento, que se baseia no julgamento e conhecimento clínico, realizada por um enfermeiro, com o objetivo de melhorar o estado do paciente/cliente (Bulechek et al., 2010). E, de acordo com Shiell et al. (2008), uma intervenção pode ser apresentada como uma série de eventos interrelacionados, que ocorrem dentro de um sistema mais alargado, com o qual estão em constante interação, no sentido de modificar os determinantes de saúde de uma população.
E, uma intervenção comunitária (ou de saúde pública) tem como foco a promoção e preservação da saúde das populações. As intervenções comunitárias realçam a promoção de saúde, a manutenção da saúde e a prevenção das doenças nas pessoas, e incluem estratégias para lidar com o clima social e político, no qual a população reside (Bulechek et al., 2010).
No entanto, como sublinha Minary et al. (2018), é necessário identificar os mecanismos que sustentam a eficácia de uma intervenção, bem como a forma em que uma intervenção pode ser adaptada, e transferida para outro contexto. Na visão de que, as intervenções de saúde pública são complexas e dependentes do contexto, a proposta é de que sejam identificados e descritos os elementos da intervenção que podem ser transferidos, para assegurar o seu potencial de efetividade num contexto específico.
Dos dados recolhidos, resultou que os enfermeiros estarão conscientes que as suas intervenções correspondem às competências, pelo que se formulou a hipótese de que, não existindo uma prevalência da intervenção vacinação, esta será, a que sentem especialmente “sua”. Tendo em conta a grande diversidade de atividades que relatam, demonstram ainda disponibilidade até para algumas que não seriam suas, de carácter administrativo, mas relevantes para o desempenho das que lhe são próprias (Cunha et al., 2021).
Das evidências científicas recolhidas, um texto ainda refere que muitos enfermeiros de saúde pública, têm como principal intervenção a vacinação (Haron et al., 2019), mas as inovações em enfermagem e feitas por enfermeiros, vão acontecendo um pouco por todo o mundo, marcadas pelas novas possibilidades da informática, da comunicação e da globalização (Cunha et al., 2020a).
Assim, Giltenane et al. (2021) evidenciam o importante papel dos enfermeiros de saúde pública, na primeira visita pós-natal, para as mulheres que vivem o processo de transição para a parentalidade. Ou o estudo que refere a criação de uma sala comunitária virtual, que liga os profissionais de saúde, às pessoas idosas em casa (Lewis et al., 2017). Nos EUA é proposto o uso da ciência do comportamento, para reforçar a enfermagem de saúde pública, quer na pesquisa, quer na prática (Sleet & Dellinger, 2020).
No contexto português, Melo et al. (2020) propõem processos inovadores, para a avaliação de enfermagem de vigilância epidemiológica, denominando-a diagnóstico de enfermagem. E a abordagem epidemiológica da hipertensão pela enfermagem, para evidenciar o contributo dos enfermeiros (Melo et al., 2021).
Brousselle e Guerra (2017), sustentam que, apesar da saúde pública, se ter dedicado à saúde e equidade, deve voltar-se para a sustentabilidade das ações humanas, que se terá tornado na principal causa determinante da sobrevivência, e da saúde das populações. O que tem uma relação direta com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Organização das Nações Unidas (ONU) que também se aplicam à enfermagem de saúde pública (Osingada & Porta, 2020).
Dos dados resultou que as intervenções mais relevantes dos enfermeiros na USP, são a vigilância epidemiológica, mesmo que na vertente da vacinação, a gestão e a capacitação de grupos. Mas também que os enfermeiros não se sentem reconhecidos, até porque muitas das suas intervenções se diluem na equipa multidisciplinar (Cunha et al., 2021a e Cunha et al., 2021). Como Schaffer et al. (2015), salientam, muitas das intervenções dos enfermeiros são invisíveis.
O exercício profissional dos enfermeiros baseia-se em três pressupostos, relação interpessoal com o cliente, tomada de decisão fundamentada em evidências científicas, e considerações de natureza humanista, como o respeito pela liberdade e dignidade humanas (Cantante et al., 2020). Porém, reconhece-se que o pressuposto básico será o da existência de enfermeiros em número suficiente.
Apesar da hipótese, de que não terá prevista, apenas uma relação muito direta com o público, nem prestará serviços individualizados mais do que comunitários, confirmada nos dados, a que se acrescenta a pouca visibilidade das intervenções destes enfermeiros, diluídas na equipa, não diminui o seu valor. Assim, a vigilância epidemiológica, planeamento e gestão de projetos, apresentam relevantes contributos para a saúde pública e para as políticas de saúde (Cunha et al., 2021a), e revelam-se muito úteis e necessárias para a saúde das populações, e para os bons indicadores de saúde do ACES.
Também Rosa e Squires (2019), partindo dos ODS da ONU (2018), sublinham que a própria natureza da enfermagem de saúde pública é efetivar mudanças em saúde, para o bem da população.
E o artigo de Gwon et al. (2020), realça que 41.000 enfermeiros de saúde pública nos EUA, representam cerca de 18% do total da força de trabalho em saúde pública, e são muito importantes na melhoria dos indicadores de saúde (comportamentos de risco para a saúde e mortalidade precoce).
2.3 Fatores Facilitadores
Formulamos a hipótese que os enfermeiros terão consciência da importância de continuar a sua formação, e reconhecem ainda outros fatores, que facilitam o seu desempenho, apontando como exemplos, a boa comunicação, boa definição de funções, instalações e condições de trabalho com qualidade.
Sobressaiu dos dados que os enfermeiros se sentem bem onde estão, e a fazer o que fazem. Apontam as características pessoais, e as boas instalações, em geral, como fatores facilitadores, mas apresentam dificuldades organizacionais. Sentem-se bem a trabalhar em equipa, mas também “diluídos” nela, o que lhes traz alguma insatisfação, a que acresce a falta de uma chefia direta de enfermagem (Cunha et al., 2021).
Martins et al. (2020), apontam como fatores motivacionais dos enfermeiros em cuidados de saúde primários, recompensas, desenvolvimento de carreira, reconhecimento, local de trabalho/ambiente da prática de enfermagem, financiamento baseado no desempenho, liderança e realização profissional. O que se assemelha com os resultados dos dados que recolhemos (Cunha et al., 2021).
Em consonância, um estudo israelita (Kagan et al., 2017), aponta a vantagem de uma frutuosa colaboração com a academia e desenvolvimento de conhecimento em parceria. Um texto japonês (Ogawa, 2020), descreve quatro fatores associados à confiança profissional dos enfermeiros de saúde pública: prática com técnica, conhecimento aprofundado, recurso a evidências, e académicos no local de trabalho. Gwon et al. (2020), indicam terem identificado como principais características favoráveis dos Public Health Nurses (PHN), a preparação académica e os anos de experiência, diretamente relacionados com os resultados em saúde da população.
Do lado institucional, Yeager et al. (2017), apontam como fatores mais favoráveis à permanência de enfermeiros na saúde pública, flexibilidade de horários e autonomia no trabalho. Farrelly et al. (2019), sinalizam como dificuldade o isolamento, que leva ao sentimento de vulnerabilidade e dissociação dos seus pares, pelo PHN.
2.4 Regulação
Concluiu-se que, os enfermeiros referem conhecer os regulamentos da OE, mas não tão bem as restantes normas que os regem, e formulou-se a hipótese de que é importante o conhecimento, e o interesse dos enfermeiros pela regulação, até porque o impulso para alterações normativas pode depender também do seu contributo (Cunha et al., 2021).
Mesmo tendo em conta as diferenças culturais, o mesmo se verificará noutras realidades. Varghese et al., (2018) defendem que, sendo os enfermeiros “a espinha dorsal do sistema de saúde”, o seu papel na tomada de decisões, quer no domínio clínico, quer no de saúde pública, não é reconhecido na Índia. Por isso, advogam que, para reforçar o poder e liderança da enfermagem, só através de reformas institucionais. O que só acontecerá através de uma tomada de posição coletiva dos enfermeiros, que questione o status quo, e as estruturas que o sustentam.
2.5 Relevância Atual da Enfermagem de Saúde Pública
O relatório da OMS, State of the World’s Nursing 2020, salienta que os enfermeiros são essenciais para fazer acontecer a promessa de “não deixar ninguém para trás”, e para atingir os ODS. Aponta dez direções necessárias, para as políticas da força de trabalho em enfermagem, entre as quais destacam-se: os programas de formação em enfermagem devem formar enfermeiros, que conduzam ao progresso dos cuidados primários e cobertura universal de saúde; a liderança e governo da enfermagem são pontos críticos para reforçar a força de trabalho em enfermagem; os decisores e reguladores políticos devem otimizar a contribuição da prática de enfermagem; os decisores, empregadores e reguladores devem coordenar ações em suporte de um trabalho decente; a regulação profissional da enfermagem deve ser modernizada; e por fim, a colaboração é a chave (OMS, 2020).
Trata-se de mais um desafio para a enfermagem de saúde pública, que se liga ao terceiro objetivo dos ODS, assegurar vidas saudáveis e promover o bem-estar para todas as idades, mas também com o primeiro, do combate à pobreza, o quinto, da igualdade de género, ou o décimo, da redução das desigualdades, na medida em que todos eles representam áreas de vulnerabilidade especial das populações, que diretamente se refletem na saúde pública, em particular.
Mendes e Trevizan (2020), realçam que os serviços prestados pelos enfermeiros precisam de ser evidenciados, através de investimentos em educação, melhores condições de trabalho, melhores salários, autonomia e incentivos à atração de mais jovens para a profissão. Que lhes permitam terem voz ativa na formulação de políticas de saúde, e não apenas os que as implementam e garantem, bem como a assunção de cargos de liderança, dentro do sistema de saúde.
3. Considerações Finais
A abordagem qualitativa, na modalidade de estudo de caso, forneceu as evidências relatadas que acrescentam conhecimentos acerca destes enfermeiros, podendo instigar outras investigações, em áreas geográficas diferentes, que se mostram úteis, perante a lacuna de estudos sobre os mesmos (Cunha et al., 2019).
Alguns desafios emergem desta investigação, com fortes implicações para a teoria e para a prática da enfermagem, em especial para a de saúde pública.
Alguns autores defendem, no contexto pós-pandémico, que a liderança da saúde pública deve tornar-se o novo normal (Czabanowska & Kuhlmann, 2021). E como foi realçado, no contexto do recente Ano Internacional do Enfermeiro, proclamado pela OMS para 2020, importa reforçar a atuação dos enfermeiros (ONU, 2020a). Os enfermeiros de saúde pública, dada a sua preparação, conhecimentos, competências para decisões clínicas, flexibilidade para responder a uma quantidade de necessidades em saúde pública, devem ser os escolhidos, em vez de qualquer uma outra resposta mais económica (Edmonds et al., 2020). No contexto português, converte-se no desafio de devidamente valorizar estes enfermeiros.
Dos dados sobressaiu que o enfermeiro está disponível para uma diversidade de atividades (Cunha et al., 2021). Porém, estes enfermeiros talvez precisem de se centrar mais nas atividades / intervenções que lhe são próprias, levando à prática clínica as suas competências, até na perspetiva do seu possível alargamento. Consideramos que é o desafio de se valorizarem a si próprios.
Tendo em conta a perceção de que as suas intervenções serão pouco visíveis para o público, equipa e pares, face à quantidade e diversidade de intervenções apresentadas, e que noutros contextos geográficos, estes enfermeiros estão na linha da frente, da promoção da saúde e prevenção da doença, como a pandemia destacou, torna-se muito relevante uma maior relação com a comunidade. Trata-se do desafio de “sair de muros”, tornarem-se conhecidos e reconhecidos na comunidade onde prestam cuidados.
Por fim, o conhecimento e o interesse dos enfermeiros pela regulação, até porque as alterações normativas podem depender do seu contributo, é o desafio que passa pela formação contínua, para poderem intervir como cidadãos politicamente participantes.