1. Introdução
A desigualdade de gênero caracteriza-se como um problema social que repercute no estado de saúde dos indivíduos, o qual pode ser prevenido ou amenizado quando as práticas dos profissionais de saúde adotam o gênero como fator transversal na sociedade (Organização Mundial da Saúde [OMS], 2018).
Por sua vez, a estrutura social baseada na desigualdade de gênero pode contribuir para práticas que dificultam o acesso aos serviços de saúde, e consecutivamente aumentam as iniquidades em saúde (Christoffersen & Hankivsky, 2021).
São vários os desdobramentos trazidos por uma estrutura social favorecedora da desigualdade de gênero. A violência contra a mulher por parceiro íntimo, que por vezes culmina em feminicídio, evidencia a magnitude do problema.
O Brasil ocupa a 5ª posição no ranking dos países com maior índice de feminicídio (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada [IPEA], 2022).
A discriminação contra a população LGBTQIPA+ (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, queer, intersexo, pansexuais e assexuais) é outro problema advindo da naturalização e biologização dos gêneros, criando barreiras de acesso ao grupo pelos serviços de saúde (Butler, 2015).
A literatura também tem demonstrado que a saúde dos homens tem sido negligenciada tanto pelos homens que acabam postergando o cuidado, quanto pelos serviços que não incorporam o tema no cotidiano de práticas de saúde (Connell, 2020).
As desigualdades de gênero são construídas por meio de representações simbólicas e mitos, via de regra, as mulheres têm sua imagem associada à docilidade, à fragilidade, à passividade e à submissão, enquanto a do homem associa-se à virilidade, à fortaleza ao comando e à liderança.
Estes significados incorporam e moldam conceitos normativos sobre ser homem e mulher expressos nas doutrinas religiosas, arcabouços jurídicos e políticas públicas, dentre outros.
O gênero também denota aspectos de subjetividades, modos de ser e sentir e apreende as relações homem e mulher, homem-homem e mulher-mulher (Scott, 1995; Arruzza et al., 2019).
No Brasil, paulatinamente, vêm sendo implementadas políticas com enfoque de gênero na qual a Atenção Primária à Saúde (APS) tem sido lócus privilegiado para a execução de tais políticas, como: a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PNAISM/2004), a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH/2008), e a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (2013), além da Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra Mulher (2011).
Contudo, ainda há uma lacuna entre o que tem sido preconizado pelas políticas e a prática cotidiana dos profissionais de saúde, demonstrando assim que a mudança deste paradigma demanda intenso investimento em formação continuada de profissionais para uma leitura crítica da ordem societária pautada na desigualdade de gênero.
Diante deste contexto, em que o gênero enquanto um determinante social em saúde constrói desigualdades e as naturaliza na sociedade, além de interferir no processo saúde-doença, pergunta-se quais os fatores que contribuem para a manutenção da desigualdade de gênero na atenção primária brasileira?
Assim, o objetivo deste artigo foi identificar, na literatura, os fatores que contribuíram para a (re) produção da desigualdade de gênero na atenção primária brasileira.
2. Metodologia
Trata-se de uma pesquisa qualitativa do tipo revisão integrativa da literatura, que permite a sistematização e a síntese de uma ampla gama de estudos acerca de uma problemática específica e previamente definida. Na fase de elaboração, foram seguidas as etapas recomendadas pela literatura, a saber:
1) estabelecimento do problema mediante formulação de hipótese ou questão de pesquisa;
2) seleção da amostra, após definição dos critérios de inclusão e exclusão;
3) caracterização dos estudos (definem-se as informações a serem extraídas dos estudos);
4) análise dos resultados, identificando similaridades e conflitos;
5) Apresentação e discussão dos resultados (Whittermore, 2005).
A coleta de dados foi realizada nas seguintes bases de dados: Scientific Eletronic Library Online (SciELO) e Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS).
Os estudos foram selecionados por meio dos descritores controlados combinados com operadores booleanos: (Gender and Health OR Género y Salud OR Gênero e Saúde) AND (Primary Health Care OR Atención Primaria de Salud OR Atenção Primária à Saúde).
A opção por estudar somente o Brasil foi pautada na perspectiva de que as estruturas sociais são distintas por estarem relacionadas a determinados contextos sociais e históricos. Portanto, entendeu-se que a desigualdade de gênero no país foi socialmente construída conforme a história e a formação do povo brasileiro.
Foram analisados estudos publicados no formato de artigos, disponíveis na íntegra e nos idiomas português, inglês ou espanhol, sem recorte temporal. As buscas nas bases de dados foram realizadas no período de agosto a novembro de 2019.
A partir disso, foram encontrados 262 artigos. Desses estudos, 211 não correspondiam aos critérios de inclusão e 11 estavam duplicados, sendo o corpus de análise composto por 40 artigos. Conforme descrito na figura 1.
Para melhor contextualização dos artigos selecionados foi elaborado um quadro, contendo informações referentes a: autoria, área de publicação, base de indexação, ano de publicação, periódico, título, tipo de estudo, temática, objetivos e os principais resultados.
3. Resultados e Discussão
3.1 Características dos artigos
Dos 40 artigos incluídos nesta revisão, 33 são qualitativos, seis quantitativos e apenas um estudo com método misto. Cinco artigos eram estudos de caso, 16 eram descritivo-exploratório, um estava fundamentado na grounded theory, cinco etnografias, uma cartografia, um exploratório, quatro descritivo, seis transversal descritiva e um que adotou a triangulação dos dados.
O ano de publicação dos estudos variou de 2005 a 2019, sendo que a maioria deles foram publicados nos últimos seis anos (2014-2019). Em relação a temática discutida pelos artigos, a masculinidades estava presente em 21 estudos, 15 de violência de gênero e saúde da mulher, três sobre sexualidade, gênero e deficiência e saúde mental e um sobre a população LGBTQIA+. Já, no que refere aos sujeitos das pesquisas, prevaleceram as abordagens com os profissionais de saúde (20), os usuários dos serviços de saúde (13) e os usuários e os profissionais (13).
A relação dos artigos estudados apresentada no Quadro 1 foi codificada e numerada dentro de cada grupo para facilitar a discussão, conforme segue: População LGBTQIA+ (LGBT); Masculinidades (M); Violência de gênero (VG); Sexualidade, saúde sexual e reprodutiva (SSSR); Saúde mental (SM); Saúde da mulher (SM); Gênero e deficiência (GD).
Após leitura crítica e integral dos artigos, foi possível elencar duas categorias temáticas de análise: 1) O olhar biologizante dos profissionais da atenção primária sobre a construção sociocultural de gênero; 2) A desigualdade de gênero como um determinante social em saúde.
3.2 O olhar biologizante dos profissionais da APS sobre a construção sociocultural de gênero
Um dos aspectos importantes da literatura avaliada foi a falta de um olhar crítico e questionador por parte dos profissionais que atuam na APS, sobre a construção social de gênero. A prática cotidiana foi muitas vezes orientada pela racionalidade biomédica a qual contribuiu para a (re) produção da desigualdade de gênero nas práticas dos profissionais.
A falta de uma leitura crítica sobre a construção social de gênero induziu os profissionais da atenção primária a atribuírem demandas, como por exemplo, a violência contra a mulher aos profissionais da psicologia e do serviço social (M20, VG9, VG 1, VG 6), não se reconhecendo como sujeitos importantes na abordagem do tema. A violência contra a mulher muitas vezes foi apreendida por preceitos biologizantes que geraram culpa, revitimização e focalizaram simplesmente o tratamento das lesões aparentes, isso quando foram detectadas (VG 1, VG5, VG4, VG6, VG8, VG9, VG12, GSM1).
Alguns estudos destacaram que a naturalização dos estereótipos de gênero perpassam as práticas profissionais, reproduzindo assim o homem viril, forte e sem necessidade dos cuidados em saúde, e a mulher meramente como cuidadora, cujo o corpo deve ser vigiado e controlado simplesmente na esfera da saúde sexual e reprodutiva. (M1, M2, M3, M6, M7, M8, M9, M13, M15, M16, M20, M21).
Cabe ressaltar que, os profissionais de saúde são sujeitos e parte integrante de uma sociedade construída com preceitos do patriarcado e, portanto, compreendem a mulher e o homem a partir dessa lógica, conferindo ao homem o direito de dominação e exploração das mulheres. Este processo perpassa e engloba todos os campos da sociedade. Essa lógica de opressão utiliza do artifício do estado natural para construir relações hierárquicas, na qual os homens são detentores das capacidades e os atributos necessários para vida civil (político), enquanto as mulheres, baseando-se na suposta natureza feminina, são inferiorizadas e remetidas ao espaço privado (Paterman, 1988; Safiotti, 2015).
A construção patriarcal é introjetada nos indivíduos já na infância, desde o nascimento, meninos e meninas são estimulados a agirem de acordo com a construção patriarcal de feminilidade e masculinidade (Machado et al., 2021). Os brinquedos infantis são um exemplo claro dessa lógica na sociedade (Nascimento, 2019). Nesse sentido, os profissionais de saúde foram socializados sob essa ótica e se não forem induzidos a um olhar crítico sobre esse processo reproduzirão na prática o que aprenderam da estrutura social.
Deste modo, a desigualdade de gênero que foi socialmente construída pode e deve ser socialmente desconstruída pela inserção desse conteúdo na formação de profissionais de saúde e também na prática dos serviços de saúde, especialmente os da APS, a qual tem como premissa atenção integral com abordagem biopsicossocial e intersetorial das demandas (Machado et al., 2021; Mendonça et al., 2020).
No decorrer dos tempos o ensino em saúde foi caracterizado por um formato centrado no conhecimento técnico da assistência individual às doenças, que recobre a relevância da interface entre a saúde e os aspectos políticos, socioeconômicos e socioculturais que organizam a vida em sociedade. Tal contexto, apesar de lento, está em transformação, pois tem aumentado a preocupação para que o processo de formação possibilite a articulação entre o ensino em saúde e as necessidades sociais em saúde, sendo pautado no conceito ampliado de saúde (Costa et al., 2019).
O saber biomédico não dá conta de compreender a desigualdade de gênero porque está fundamentado em princípios de causalidade linear e mecânica. Nesse modelo, os sujeitos são vistos de forma fragmentada e isolada do seu contexto social, frutos de uma abordagem sociológica positivista (Camargo, 2021).
A centralização da atenção em saúde nas doenças e não nos usuários contribui para a redução do principal objeto da área da saúde, a produção do cuidado integral. Nesse modelo, a estruturação das relações sociais por meio de desigualdades deixa de ser relevante para a identificação e o atendimento das necessidades de saúde dos sujeitos (Giordani et al., 2020).
A integralidade pode ser entendida como uma imagem-objetivo que comporta as características desejáveis do sistema de saúde e de suas práticas, entre essas características destaca-se: a capacidade de os profissionais articularem ações assistenciais com as ações preventivas, mediante o diálogo, a escuta qualificada, com um olhar crítico para o contexto de vida dos sujeitos e o contexto imediato de cada encontro que motivou o atendimento em saúde (Pinheiro & Matos, 2009).
O principal atributo da integralidade, portanto, é a apreensão ampliada das necessidades de saúde, mas se as práticas em saúde não disporem das características desejáveis da integralidade, essa apreensão é prejudicada (Gurgel et al., 2017). Por exemplo, se a construção social de gênero não é considerada nos serviços de saúde, é certo que as necessidades em saúde que estão estruturadas pela desigualdade de gênero também não serão identificadas, pois são silenciadas e ou inferiorizadas como uma demanda estranha à área da saúde.
Por mais integral que seja o atendimento de uma unidade de saúde, as necessidades de saúde sempre extrapolam os recursos disponíveis de um setor específico, porque são determinadas social e historicamente. Quando os serviços de saúde não estão direcionados para a apreensão ampliada das necessidades em saúde, o trabalho em rede é prejudicado, visto que os profissionais não buscam identificar as necessidades a serem trabalhadas intersetorialmente (Cecílio & Reis, 2018).
Nessa direção, para o avanço das políticas com ênfase em gênero, a hegemonia do paradigma biomédico precisa ser amplamente problematizada, quanto ao (re) forço das assimetrias de gênero, pois, é inegável a sua contribuição para a invisibilidade do gênero nos serviços de saúde (Azeredo & Schraiber, 2021).
3.3 O gênero como um determinante social em saúde
Os estudos apontaram para desarticulação entre as normatizações e orientações das políticas e a prática profissional com enfoque na desigualdade de gênero. Tal lacuna contribuiu para uma visão naturalizada, impossibilitando a compreensão do gênero como um determinante social em saúde e consequentemente a sua importância no processo saúde-doença (M18, VG13, M12, VG6, VG3).
Em geral, a falta de incorporação das políticas nas práticas de saúde não ocorre pelo simples desconhecimento dos profissionais, e sim porque o exercício profissional é uma instância distinta da política que ainda permanece em constante conflito, especialmente referente à questão de gênero (Azeredo & Schraiber, 2021). Nesse caso, a desigualdade de gênero não é apreendida como um determinante social, justamente, porque o gênero não é compreendido como estruturante da sociedade e, portanto, não é concebido como uma determinação social, ou seja, uma ordem societária que orienta e legitima práticas, comportamentos e visões de mundo (Hankivsky & Hunting, 2021).
A noção de determinação social compreende a saúde e a doença a partir de um processo que é determinado pelo modo como a sociedade se organiza. Ou seja, o gênero, a classe social e a raça/etnia são construções sociais que operam como processos de determinação social da saúde. Essa leitura contribui para um maior aprofundamento nas raízes dos problemas sociais na saúde dos sujeitos (Garbois & Dalbello-Araujo, 2017).
A baixa perspectiva crítica do gênero enquanto determinação social em saúde contribuiu para o déficit de estratégias de enfrentamento da problemática em questão (M6, M9, SM2, M11, M10, VG5, VG7, VG11, M4, VG10). Crenças e valores sociais estão contidos nos olhares dos profissionais de saúde, visíveis pelo modo como justificam as desigualdades de gênero baseando-se em estigmas e estereótipos de gênero (M5, M14, M15, M17, M18, M19, M20, GD1). O que significará diferentes desdobramentos para o gênero.
Na perspectiva do feminino, as práticas de saúde, em geral, estão relacionadas à saúde sexual e reprodutiva. A mulher, ao ser responsabilizada pela reprodução, passa a ter o corpo sob domínio de uma medicina biologicista que controla a sexualidade e reproduz o patriarcado (M5, M14, M15, M17, M18, M20). Assim, elas são responsabilizadas pelo cuidado da própria saúde, da saúde dos filhos e, também, são acionadas para o cuidado da saúde dos parceiros (M15, M17, M18).
Ainda dentro dessa lógica, esse estudo demonstrou que os corpos que transgridem as fronteiras da orientação sexual heteronormativa e da identidade de gênero socialmente aceita são tidos enquanto pessoas com comportamentos pecaminosos, promíscuos e antinaturais, sendo, muitas vezes, essa leitura orientada por valores sociais e morais de como o comportamento do outro deve ser controlado e/ou tratado (LGBT1).
A heterossexualidade está estabelecida como um modelo de normalidade que deslegitima, com base na genitália, as formas não correspondentes à percepção binária de homem e mulher. Assim, os seres não correspondentes aos padrões “normais” - seja por não adequação do gênero ao sexo biológico (percepção como sendo homem ou mulher), ou desconformidade com a orientação sexual socialmente aceita (homossexualidade) - são tratados de forma discriminatória (Butler, 2015).
Ressalta-se avanços importantes como o movimento contrário à discriminação do público LGBTQIA+ nos serviços de saúde, como a publicação, em 2006, da carta de direitos dos usuários da saúde, por meio da portaria n° 675, que contemplou o direito de receber tratamento pelo nome social e atendimento sem qualquer forma de preconceitos de gênero, como também a promulgação, em 2013, da Política Nacional de Saúde Integral de LGBT, dentre outros (Mello, 2011).
Contudo, apesar destes avanços, um estudo de revisão integrativa demonstrou que a heteronormatividade e a homofobia institucional configuram-se como principais obstáculos para que as referidas políticas sejam implementadas nos serviços de saúde. O que contribui para o reforço das vulnerabilidades enfrentadas pela população LGBTQIA+, com poucas iniciativas realizadas para sensibilizar os profissionais de saúde para o atendimento não discriminatório (Mello, 2011; Silva et al, 2021).
Estes achados revelam um contexto totalmente contrário à proposta da APS, que tem a tecnologia relacional como questão fundamental para produção de saúde. Nessa lógica, valoriza-se o encontro entre profissional-usuário, pois, a fala e a escuta desempenham papel importante para o reconhecimento das necessidades de saúde dos sujeitos (Giordani et al., 2020).
O agir profissional, o trabalho vivo em ato, é um elemento determinante da produção do cuidado, ou seja, as intervenções dos profissionais, que não estão isentas de valores e crenças pessoais, podem implicar no cuidado em saúde. Assim, as práticas de saúde são atravessadas pela visão de mundo dos profissionais, questão que precisa ser considerada pelos gestores e formuladores das políticas de saúde (Azeredo & Schraiber, 2021; Giordani et al., 2020).
4. Considerações Finais
O presente estudo possibilitou identificar os avanços e as limitações da incorporação da desigualdade de gênero na APS. Os preceitos biologizantes revelaram-se fortemente arraigados nas práticas de saúde e nos olhares dos profissionais. Desta forma, o principal fator ainda impeditivo na APS é a hegemonia do modelo biomédico, pois, o gênero requer problematizações socioculturais que extrapolam a capacidade desta racionalidade.
As concepções preconcebidas e discriminatórias evidenciaram um distanciamento entre as práticas de saúde e os princípios fundamentais do Sistema Único de Saúde (SUS), como a universalidade, equidade e integralidade, frutos de uma ordem societária patriarcal e sexista. Um fator central para o êxito das políticas de saúde, sobretudo as com enfoque de gênero, é o fortalecimento e a capacitação dos profissionais de saúde para o enfrentamento dessas desigualdades.
Ainda, cabe ressaltar que para determinados temas complexos de se explicar o real, como a cultura, discriminações, preconceitos, são necessários métodos que possibilitam apreender os significados, os sentidos e o que não é claramente dito, como são os de abordagens qualitativas.