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New Trends in Qualitative Research

versão On-line ISSN 2184-7770

NTQR vol.18  Oliveira de Azeméis out. 2023  Epub 30-Nov-2023

https://doi.org/10.36367/ntqr.18.2023.e891 

Artigo Original

Desigualdade de gênero na Atenção Primária à Saúde: Uma Revisão Integrativa da Literatura

Gender Inequality in Primary Health Care: Na Integrative Review of the Literature

Wellington Severino Alves Mamedes1 
http://orcid.org/0000-0003-0817-8375

Dinair Ferreira Machado2 
http://orcid.org/0000-0003-3006-7110

Margareth Aparecida Santini de Almeida2 
http://orcid.org/0000-0002-4603-2513

1 Prefeitura Municipal de Piracicaba, Brasil

2 Faculdade de Medicina de Botucatu-UNESP, Brasil


Resumo

A violência contra a mulher, o distanciamento masculino do cuidado em saúde primário e a discriminação contra as pessoas LGBTQIA+, lésbicas, gays, bissexuais, transgênero, queer, intersexo, assexual, são expressões do construto social de gênero que estão postas como desafios aos profissionais de saúde, que devem desenvolver estratégias de enfrentamento a essas iniquidades sociais em saúde. Por outro lado, a ordem societária pautada na desigualdade de gênero cria barreiras de acesso aos serviços de saúde e consecutivamente aumentam as disparidades sociais. Este estudo objetivou identificar, na literatura, os fatores que contribuíram para a (re) produção da desigualdade de gênero no âmbito da Atenção Primária à Saúde brasileira. Para isso, foi realizada uma revisão integrativa da literatura, cuja amostra final foi composta por 40 artigos. A coleta de dados foi realizada nas bases de dados: Scientific Eletronic Library Online (SciELO) e Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS). Os estudos foram selecionados por meio dos descritores controlados combinados com operadores booleanos: (Gender and Health OR Género y Salud OR Gênero e Saúde) AND (Primary Health Care OR Atención Primaria de Salud OR Atenção Primária à Saúde). No corpus de analise, destacou-se a prevalência dos estudos qualitativos. Os estudos evidenciaram que, nos serviços de atenção primária, a concepção de gênero é orientado por preceitos biologizantes, frutos de um modelo de atenção em saúde biomédico que além de fragmentar as ações dos profissionais de saúde, impede que haja uma abordagem sociocultural de emancipação, corroborando assim para efetivação e naturalização da desigualdade de gênero.

Palavras-Chave: Atenção Primária em Saúde; Gênero e Saúde; Iniquidade de gênero.

Abstract

Violence against women, male distancing from primary health care and discrimination against LGBTQIA+, lesbian, gay, bisexual, transgender, queer, intersex, asexual people are expressions of the social construct of gender that pose challenges to professional’s health professionals. who must develop strategies to face these social inequalities in health. The social order based in gender inequality can make it difficult the access to health services and consecutively to increase health inequities. This study aimed to identify, in literature, the factors that contributes for a (re) production of gender inequality within the scope of Primary Health Care. It was made an integrative review, which final sample was composed by 40 articles. The studies evidenced that gender is guided by biologizing precepts which comes from a biomedical model that besides breaking up the health professional’s actions, prevents that happens an emancipation socialcutural approach, and therefore it corroborates to naturalization and effectuation of gender inequality in primary health services.

Keywords: Primary Health Care; Gender and Health; Gender Inequality.

1. Introdução

A desigualdade de gênero caracteriza-se como um problema social que repercute no estado de saúde dos indivíduos, o qual pode ser prevenido ou amenizado quando as práticas dos profissionais de saúde adotam o gênero como fator transversal na sociedade (Organização Mundial da Saúde [OMS], 2018).

Por sua vez, a estrutura social baseada na desigualdade de gênero pode contribuir para práticas que dificultam o acesso aos serviços de saúde, e consecutivamente aumentam as iniquidades em saúde (Christoffersen & Hankivsky, 2021).

São vários os desdobramentos trazidos por uma estrutura social favorecedora da desigualdade de gênero. A violência contra a mulher por parceiro íntimo, que por vezes culmina em feminicídio, evidencia a magnitude do problema.

O Brasil ocupa a 5ª posição no ranking dos países com maior índice de feminicídio (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada [IPEA], 2022).

A discriminação contra a população LGBTQIPA+ (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, queer, intersexo, pansexuais e assexuais) é outro problema advindo da naturalização e biologização dos gêneros, criando barreiras de acesso ao grupo pelos serviços de saúde (Butler, 2015).

A literatura também tem demonstrado que a saúde dos homens tem sido negligenciada tanto pelos homens que acabam postergando o cuidado, quanto pelos serviços que não incorporam o tema no cotidiano de práticas de saúde (Connell, 2020).

As desigualdades de gênero são construídas por meio de representações simbólicas e mitos, via de regra, as mulheres têm sua imagem associada à docilidade, à fragilidade, à passividade e à submissão, enquanto a do homem associa-se à virilidade, à fortaleza ao comando e à liderança.

Estes significados incorporam e moldam conceitos normativos sobre ser homem e mulher expressos nas doutrinas religiosas, arcabouços jurídicos e políticas públicas, dentre outros.

O gênero também denota aspectos de subjetividades, modos de ser e sentir e apreende as relações homem e mulher, homem-homem e mulher-mulher (Scott, 1995; Arruzza et al., 2019).

No Brasil, paulatinamente, vêm sendo implementadas políticas com enfoque de gênero na qual a Atenção Primária à Saúde (APS) tem sido lócus privilegiado para a execução de tais políticas, como: a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PNAISM/2004), a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH/2008), e a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (2013), além da Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra Mulher (2011).

Contudo, ainda há uma lacuna entre o que tem sido preconizado pelas políticas e a prática cotidiana dos profissionais de saúde, demonstrando assim que a mudança deste paradigma demanda intenso investimento em formação continuada de profissionais para uma leitura crítica da ordem societária pautada na desigualdade de gênero.

Diante deste contexto, em que o gênero enquanto um determinante social em saúde constrói desigualdades e as naturaliza na sociedade, além de interferir no processo saúde-doença, pergunta-se quais os fatores que contribuem para a manutenção da desigualdade de gênero na atenção primária brasileira?

Assim, o objetivo deste artigo foi identificar, na literatura, os fatores que contribuíram para a (re) produção da desigualdade de gênero na atenção primária brasileira.

2. Metodologia

Trata-se de uma pesquisa qualitativa do tipo revisão integrativa da literatura, que permite a sistematização e a síntese de uma ampla gama de estudos acerca de uma problemática específica e previamente definida. Na fase de elaboração, foram seguidas as etapas recomendadas pela literatura, a saber:

1) estabelecimento do problema mediante formulação de hipótese ou questão de pesquisa;

2) seleção da amostra, após definição dos critérios de inclusão e exclusão;

3) caracterização dos estudos (definem-se as informações a serem extraídas dos estudos);

4) análise dos resultados, identificando similaridades e conflitos;

5) Apresentação e discussão dos resultados (Whittermore, 2005).

A coleta de dados foi realizada nas seguintes bases de dados: Scientific Eletronic Library Online (SciELO) e Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS).

Os estudos foram selecionados por meio dos descritores controlados combinados com operadores booleanos: (Gender and Health OR Género y Salud OR Gênero e Saúde) AND (Primary Health Care OR Atención Primaria de Salud OR Atenção Primária à Saúde).

A opção por estudar somente o Brasil foi pautada na perspectiva de que as estruturas sociais são distintas por estarem relacionadas a determinados contextos sociais e históricos. Portanto, entendeu-se que a desigualdade de gênero no país foi socialmente construída conforme a história e a formação do povo brasileiro.

Foram analisados estudos publicados no formato de artigos, disponíveis na íntegra e nos idiomas português, inglês ou espanhol, sem recorte temporal. As buscas nas bases de dados foram realizadas no período de agosto a novembro de 2019.

A partir disso, foram encontrados 262 artigos. Desses estudos, 211 não correspondiam aos critérios de inclusão e 11 estavam duplicados, sendo o corpus de análise composto por 40 artigos. Conforme descrito na figura 1.

Figura 1 Fluxograma da seleção da amostra 

Para melhor contextualização dos artigos selecionados foi elaborado um quadro, contendo informações referentes a: autoria, área de publicação, base de indexação, ano de publicação, periódico, título, tipo de estudo, temática, objetivos e os principais resultados.

3. Resultados e Discussão

3.1 Características dos artigos

Dos 40 artigos incluídos nesta revisão, 33 são qualitativos, seis quantitativos e apenas um estudo com método misto. Cinco artigos eram estudos de caso, 16 eram descritivo-exploratório, um estava fundamentado na grounded theory, cinco etnografias, uma cartografia, um exploratório, quatro descritivo, seis transversal descritiva e um que adotou a triangulação dos dados.

O ano de publicação dos estudos variou de 2005 a 2019, sendo que a maioria deles foram publicados nos últimos seis anos (2014-2019). Em relação a temática discutida pelos artigos, a masculinidades estava presente em 21 estudos, 15 de violência de gênero e saúde da mulher, três sobre sexualidade, gênero e deficiência e saúde mental e um sobre a população LGBTQIA+. Já, no que refere aos sujeitos das pesquisas, prevaleceram as abordagens com os profissionais de saúde (20), os usuários dos serviços de saúde (13) e os usuários e os profissionais (13).

A relação dos artigos estudados apresentada no Quadro 1 foi codificada e numerada dentro de cada grupo para facilitar a discussão, conforme segue: População LGBTQIA+ (LGBT); Masculinidades (M); Violência de gênero (VG); Sexualidade, saúde sexual e reprodutiva (SSSR); Saúde mental (SM); Saúde da mulher (SM); Gênero e deficiência (GD).

Quadro 1 Publicações analisadas segundo grupos populacionais, ano de publicação, autoria principal e principais resultados 

Após leitura crítica e integral dos artigos, foi possível elencar duas categorias temáticas de análise: 1) O olhar biologizante dos profissionais da atenção primária sobre a construção sociocultural de gênero; 2) A desigualdade de gênero como um determinante social em saúde.

3.2 O olhar biologizante dos profissionais da APS sobre a construção sociocultural de gênero

Um dos aspectos importantes da literatura avaliada foi a falta de um olhar crítico e questionador por parte dos profissionais que atuam na APS, sobre a construção social de gênero. A prática cotidiana foi muitas vezes orientada pela racionalidade biomédica a qual contribuiu para a (re) produção da desigualdade de gênero nas práticas dos profissionais.

A falta de uma leitura crítica sobre a construção social de gênero induziu os profissionais da atenção primária a atribuírem demandas, como por exemplo, a violência contra a mulher aos profissionais da psicologia e do serviço social (M20, VG9, VG 1, VG 6), não se reconhecendo como sujeitos importantes na abordagem do tema. A violência contra a mulher muitas vezes foi apreendida por preceitos biologizantes que geraram culpa, revitimização e focalizaram simplesmente o tratamento das lesões aparentes, isso quando foram detectadas (VG 1, VG5, VG4, VG6, VG8, VG9, VG12, GSM1).

Alguns estudos destacaram que a naturalização dos estereótipos de gênero perpassam as práticas profissionais, reproduzindo assim o homem viril, forte e sem necessidade dos cuidados em saúde, e a mulher meramente como cuidadora, cujo o corpo deve ser vigiado e controlado simplesmente na esfera da saúde sexual e reprodutiva. (M1, M2, M3, M6, M7, M8, M9, M13, M15, M16, M20, M21).

Cabe ressaltar que, os profissionais de saúde são sujeitos e parte integrante de uma sociedade construída com preceitos do patriarcado e, portanto, compreendem a mulher e o homem a partir dessa lógica, conferindo ao homem o direito de dominação e exploração das mulheres. Este processo perpassa e engloba todos os campos da sociedade. Essa lógica de opressão utiliza do artifício do estado natural para construir relações hierárquicas, na qual os homens são detentores das capacidades e os atributos necessários para vida civil (político), enquanto as mulheres, baseando-se na suposta natureza feminina, são inferiorizadas e remetidas ao espaço privado (Paterman, 1988; Safiotti, 2015).

A construção patriarcal é introjetada nos indivíduos já na infância, desde o nascimento, meninos e meninas são estimulados a agirem de acordo com a construção patriarcal de feminilidade e masculinidade (Machado et al., 2021). Os brinquedos infantis são um exemplo claro dessa lógica na sociedade (Nascimento, 2019). Nesse sentido, os profissionais de saúde foram socializados sob essa ótica e se não forem induzidos a um olhar crítico sobre esse processo reproduzirão na prática o que aprenderam da estrutura social.

Deste modo, a desigualdade de gênero que foi socialmente construída pode e deve ser socialmente desconstruída pela inserção desse conteúdo na formação de profissionais de saúde e também na prática dos serviços de saúde, especialmente os da APS, a qual tem como premissa atenção integral com abordagem biopsicossocial e intersetorial das demandas (Machado et al., 2021; Mendonça et al., 2020).

No decorrer dos tempos o ensino em saúde foi caracterizado por um formato centrado no conhecimento técnico da assistência individual às doenças, que recobre a relevância da interface entre a saúde e os aspectos políticos, socioeconômicos e socioculturais que organizam a vida em sociedade. Tal contexto, apesar de lento, está em transformação, pois tem aumentado a preocupação para que o processo de formação possibilite a articulação entre o ensino em saúde e as necessidades sociais em saúde, sendo pautado no conceito ampliado de saúde (Costa et al., 2019).

O saber biomédico não dá conta de compreender a desigualdade de gênero porque está fundamentado em princípios de causalidade linear e mecânica. Nesse modelo, os sujeitos são vistos de forma fragmentada e isolada do seu contexto social, frutos de uma abordagem sociológica positivista (Camargo, 2021).

A centralização da atenção em saúde nas doenças e não nos usuários contribui para a redução do principal objeto da área da saúde, a produção do cuidado integral. Nesse modelo, a estruturação das relações sociais por meio de desigualdades deixa de ser relevante para a identificação e o atendimento das necessidades de saúde dos sujeitos (Giordani et al., 2020).

A integralidade pode ser entendida como uma imagem-objetivo que comporta as características desejáveis do sistema de saúde e de suas práticas, entre essas características destaca-se: a capacidade de os profissionais articularem ações assistenciais com as ações preventivas, mediante o diálogo, a escuta qualificada, com um olhar crítico para o contexto de vida dos sujeitos e o contexto imediato de cada encontro que motivou o atendimento em saúde (Pinheiro & Matos, 2009).

O principal atributo da integralidade, portanto, é a apreensão ampliada das necessidades de saúde, mas se as práticas em saúde não disporem das características desejáveis da integralidade, essa apreensão é prejudicada (Gurgel et al., 2017). Por exemplo, se a construção social de gênero não é considerada nos serviços de saúde, é certo que as necessidades em saúde que estão estruturadas pela desigualdade de gênero também não serão identificadas, pois são silenciadas e ou inferiorizadas como uma demanda estranha à área da saúde.

Por mais integral que seja o atendimento de uma unidade de saúde, as necessidades de saúde sempre extrapolam os recursos disponíveis de um setor específico, porque são determinadas social e historicamente. Quando os serviços de saúde não estão direcionados para a apreensão ampliada das necessidades em saúde, o trabalho em rede é prejudicado, visto que os profissionais não buscam identificar as necessidades a serem trabalhadas intersetorialmente (Cecílio & Reis, 2018).

Nessa direção, para o avanço das políticas com ênfase em gênero, a hegemonia do paradigma biomédico precisa ser amplamente problematizada, quanto ao (re) forço das assimetrias de gênero, pois, é inegável a sua contribuição para a invisibilidade do gênero nos serviços de saúde (Azeredo & Schraiber, 2021).

3.3 O gênero como um determinante social em saúde

Os estudos apontaram para desarticulação entre as normatizações e orientações das políticas e a prática profissional com enfoque na desigualdade de gênero. Tal lacuna contribuiu para uma visão naturalizada, impossibilitando a compreensão do gênero como um determinante social em saúde e consequentemente a sua importância no processo saúde-doença (M18, VG13, M12, VG6, VG3).

Em geral, a falta de incorporação das políticas nas práticas de saúde não ocorre pelo simples desconhecimento dos profissionais, e sim porque o exercício profissional é uma instância distinta da política que ainda permanece em constante conflito, especialmente referente à questão de gênero (Azeredo & Schraiber, 2021). Nesse caso, a desigualdade de gênero não é apreendida como um determinante social, justamente, porque o gênero não é compreendido como estruturante da sociedade e, portanto, não é concebido como uma determinação social, ou seja, uma ordem societária que orienta e legitima práticas, comportamentos e visões de mundo (Hankivsky & Hunting, 2021).

A noção de determinação social compreende a saúde e a doença a partir de um processo que é determinado pelo modo como a sociedade se organiza. Ou seja, o gênero, a classe social e a raça/etnia são construções sociais que operam como processos de determinação social da saúde. Essa leitura contribui para um maior aprofundamento nas raízes dos problemas sociais na saúde dos sujeitos (Garbois & Dalbello-Araujo, 2017).

A baixa perspectiva crítica do gênero enquanto determinação social em saúde contribuiu para o déficit de estratégias de enfrentamento da problemática em questão (M6, M9, SM2, M11, M10, VG5, VG7, VG11, M4, VG10). Crenças e valores sociais estão contidos nos olhares dos profissionais de saúde, visíveis pelo modo como justificam as desigualdades de gênero baseando-se em estigmas e estereótipos de gênero (M5, M14, M15, M17, M18, M19, M20, GD1). O que significará diferentes desdobramentos para o gênero.

Na perspectiva do feminino, as práticas de saúde, em geral, estão relacionadas à saúde sexual e reprodutiva. A mulher, ao ser responsabilizada pela reprodução, passa a ter o corpo sob domínio de uma medicina biologicista que controla a sexualidade e reproduz o patriarcado (M5, M14, M15, M17, M18, M20). Assim, elas são responsabilizadas pelo cuidado da própria saúde, da saúde dos filhos e, também, são acionadas para o cuidado da saúde dos parceiros (M15, M17, M18).

Ainda dentro dessa lógica, esse estudo demonstrou que os corpos que transgridem as fronteiras da orientação sexual heteronormativa e da identidade de gênero socialmente aceita são tidos enquanto pessoas com comportamentos pecaminosos, promíscuos e antinaturais, sendo, muitas vezes, essa leitura orientada por valores sociais e morais de como o comportamento do outro deve ser controlado e/ou tratado (LGBT1).

A heterossexualidade está estabelecida como um modelo de normalidade que deslegitima, com base na genitália, as formas não correspondentes à percepção binária de homem e mulher. Assim, os seres não correspondentes aos padrões “normais” - seja por não adequação do gênero ao sexo biológico (percepção como sendo homem ou mulher), ou desconformidade com a orientação sexual socialmente aceita (homossexualidade) - são tratados de forma discriminatória (Butler, 2015).

Ressalta-se avanços importantes como o movimento contrário à discriminação do público LGBTQIA+ nos serviços de saúde, como a publicação, em 2006, da carta de direitos dos usuários da saúde, por meio da portaria n° 675, que contemplou o direito de receber tratamento pelo nome social e atendimento sem qualquer forma de preconceitos de gênero, como também a promulgação, em 2013, da Política Nacional de Saúde Integral de LGBT, dentre outros (Mello, 2011).

Contudo, apesar destes avanços, um estudo de revisão integrativa demonstrou que a heteronormatividade e a homofobia institucional configuram-se como principais obstáculos para que as referidas políticas sejam implementadas nos serviços de saúde. O que contribui para o reforço das vulnerabilidades enfrentadas pela população LGBTQIA+, com poucas iniciativas realizadas para sensibilizar os profissionais de saúde para o atendimento não discriminatório (Mello, 2011; Silva et al, 2021).

Estes achados revelam um contexto totalmente contrário à proposta da APS, que tem a tecnologia relacional como questão fundamental para produção de saúde. Nessa lógica, valoriza-se o encontro entre profissional-usuário, pois, a fala e a escuta desempenham papel importante para o reconhecimento das necessidades de saúde dos sujeitos (Giordani et al., 2020).

O agir profissional, o trabalho vivo em ato, é um elemento determinante da produção do cuidado, ou seja, as intervenções dos profissionais, que não estão isentas de valores e crenças pessoais, podem implicar no cuidado em saúde. Assim, as práticas de saúde são atravessadas pela visão de mundo dos profissionais, questão que precisa ser considerada pelos gestores e formuladores das políticas de saúde (Azeredo & Schraiber, 2021; Giordani et al., 2020).

4. Considerações Finais

O presente estudo possibilitou identificar os avanços e as limitações da incorporação da desigualdade de gênero na APS. Os preceitos biologizantes revelaram-se fortemente arraigados nas práticas de saúde e nos olhares dos profissionais. Desta forma, o principal fator ainda impeditivo na APS é a hegemonia do modelo biomédico, pois, o gênero requer problematizações socioculturais que extrapolam a capacidade desta racionalidade.

As concepções preconcebidas e discriminatórias evidenciaram um distanciamento entre as práticas de saúde e os princípios fundamentais do Sistema Único de Saúde (SUS), como a universalidade, equidade e integralidade, frutos de uma ordem societária patriarcal e sexista. Um fator central para o êxito das políticas de saúde, sobretudo as com enfoque de gênero, é o fortalecimento e a capacitação dos profissionais de saúde para o enfrentamento dessas desigualdades.

Ainda, cabe ressaltar que para determinados temas complexos de se explicar o real, como a cultura, discriminações, preconceitos, são necessários métodos que possibilitam apreender os significados, os sentidos e o que não é claramente dito, como são os de abordagens qualitativas.

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Recebido: 30 de Março de 2023; Aceito: 30 de Setembro de 2023

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