1. Introdução
Nas últimas duas décadas, três importantes políticas públicas foram aprovadas pelo Ministério da Saúde para reorganização do sistema de saúde brasileiro: a Política Nacional de Saúde Mental (PNSM) (Brasil, 2017a), a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) (Brasil, 2017b) e a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) (BRASIL, 2006). A PNSM compreende ações para a reorganização do Sistema Único de Saúde (SUS) no atendimento das pessoas com transtornos mentais, sendo uma estratégia para a humanização, integralidade e inclusão social através da criação da Rede de Atenção Psicossocial (Mexko & Benelli, 2022).
A PNAB, por sua vez, abrange equipes de Estratégia da Saúde da Família (ESF), Núcleos Ampliados de Saúde da Família (NASF) e Academias da Saúde, fortalecendo as ações de promoção à saúde, prevenção de doenças e reabilitação, e priorizando um cuidado acessível, universal, longitudinal e integral, enfatizando a família e a comunidade (Mattioni et al., 2022).
No tocante à PNPIC, seu objetivo é incluir práticas terapêuticas e racionalidades médicas, além da biomédica, em diversos contextos da rede de atenção à saúde, promovendo um cuidado diversificado e holístico que considere as condições físicas e mentais das pessoas (Habimorad et al., 2020). Assim, a interconexão entre saúde mental, APS e PNPIC pode alinhar-se com os princípios orientadores do SUS: universalidade, integralidade e participação social.
No Brasil, há diversos estudos sobre a oferta das PNPIC na APS (Diniz et al., 2022; Miranda et al., 2022; Oliveira et al., 2022; Pereira et al., 2022; Ribeiro, 2022), incluindo suas implicações na saúde mental dos usuários da Unidade Básica de Saúde (Carvalho & Nóbrega, 2017; Pereira & Tesser, 2021; Muricy et al., 2022; Silva et al., 2022). Além disso, o CAPS tem sido alvo de investigações qualitativas para compreender as contribuições das PNPIC para a saúde mental de seus usuários (Carvalho et al., 2013; Papa & Dallegrave, 2016; Marques, 2017; Sampaio et al., 2018; Oliveira & Ponte, 2019).
Na literatura internacional, também se destacam os benefícios das PNPIC na APS (Shirwaikar et al., 2013; Danell et al., 2020; Gunnarsdottir et al., 2020) e no tratamento de questões de saúde mental (Hamilton & Marietti, 2017; Amoateng et al., 2018; Han et al., 2018; Musyimi et al., 2018; Buchanan et al., 2018; Zingela et al., 2019; Durr & Lunde, 2020; Liem, 2020; Sanches, 2020; Seet et al., 2020; Wemrell et al., 2020). No entanto, a exploração acadêmica das PNPIC, considerando as experiências e afinidades entre os profissionais que as oferecem em contextos diversos, como a APS e o CAPS, ainda é incipiente e requer mais estudos (Tesser & Sousa, 2012; Barros et al., 2020).
Em meio a recorrentes episódios depressivos durante a pandemia de COVID-19 e o contato constante com a morte, doenças e isolamento social, a saúde mental das pessoas está mais desafiada do que nunca. Diante dessas realidades, somadas à falta de tratamento digno para doenças mentais, à escassez de recursos governamentais e à desvalorização dos profissionais que trabalham com PNPIC no CAPS e na APS, torna-se oportuno investigar experiências semelhantes em locais de trabalho com histórias, peculiaridades e heterogeneidades distintas (Ferreira, 2022).
Assim, surge a seguinte questão: quais são as percepções dos profissionais de saúde que utilizam as PNPIC na APS e no CAPS? Supõe-se que esses profissionais possam compartilhar experiências convergentes em relação aos processos de trabalho e aos efeitos positivos no cuidado físico, mental e social. Portanto, esta análise pretende contribuir para a compreensão das convergências dos fenômenos em questão, bem como para a reflexão sobre o papel das PNPIC como política pública de saúde, com base nas experiências dos profissionais que as implementam no cotidiano dos serviços de saúde (Telesi Júnior, 2016; Santos et al., 2018). Dessa forma, o estudo busca compreender as percepções atribuídas por profissionais de saúde que oferecem PNPIC sobre a oferta de serviços na APS e no CAPS da Região Metropolitana de Goiânia (RMG).Este ficheiro de instruções para os utilizadores de Word deve ser usado como modelo, sem alterar as formatações atuais. Por favor, submeta os ficheiros Word finais e revistos do seu texto na plataforma da NTQR, em publi.ludomedia.org. Note que não precisamos do texto impresso.
2. Metodologia
Trata-se de um estudo descritivo, exploratório e de abordagem qualitativa. Representa um recorte de duas dissertações de mestrado intituladas, respectivamente, "Práticas Integrativas e Complementares na Atenção Primária à Saúde: Percepções dos profissionais sobre a oferta dos serviços na Região Metropolitana de Goiânia" e "Práticas Integrativas e Complementares em Saúde: a realidade dos Centros de Atenção Psicossocial da Região Metropolitana de Goiânia." Ambas integram o macroprojeto de pesquisa "Práticas Integrativas e Complementares nos serviços de Atenção Primária em Saúde - Região Metropolitana de Goiânia." A primeira pesquisa contemplou as percepções dos profissionais de saúde que implementam as PICS sobre a oferta dos serviços na APS na RMG. A segunda, por sua vez, tinha o mesmo objetivo, porém foi conduzida junto aos profissionais de saúde ofertantes de PICS nos CAPS. A partir das análises dos conteúdos das entrevistas desse universo de profissionais, surgiram novas perguntas de pesquisa capazes de serem respondidas pela investigação qualitativa. Esta é a versão expandida do texto apresentado nas Atas do Congresso Ibero-americano de Investigação Qualitativa (CIAIQ) realizado em Lisboa, Portugal, em 2023 (Silva et al., 2023).
Adotaram-se os seguintes critérios de elegibilidade: todos os profissionais de saúde ofertantes de alguma PICS na APS ou no CAPS poderiam ser um possível participante no período de coleta de dados das pesquisas. Como critério de exclusão, consideraram-se aqueles profissionais que estavam ausentes do trabalho por motivo de licença de qualquer natureza.
Os participantes com atuação na APS foram selecionados da seguinte maneira: Primeiramente, identificaram-se, mediante o Sistema de Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (SCNES) (Ministério da Saúde, 2017), 274 serviços, os quais compreendiam Centros e Unidades Básicas de Saúde (UBS), Núcleos Ampliados de Saúde da Família (NASF) e Academias da Saúde. Entretanto, não se obtiveram as anuências de três secretários municipais de saúde para a execução do estudo. Logo, nos 17 municípios participantes da pesquisa contavam com 234 serviços, cujos gerentes auxiliaram no reconhecimento dos profissionais ofertantes de PICS na APS.
O levantamento indicou, no que se refere ao segundo semestre de 2017, existiam 23 serviços de APS, nos quais 29 profissionais ofertavam alguma PICS, em cinco cidades da RMG.
Dos 29 eventuais participantes, sete profissionais não participaram do estudo: um se recusou a participar; três não foram contactados e três haviam encerrado a oferta de PICS. Além disso, duas profissionais estavam de licença-prêmio e, por isso, foram excluídas da pesquisa. Portanto, 20 profissionais, de 14 serviços de APS, de três municípios participaram do estudo. O período de coleta de dados na APS compreendeu os meses de janeiro a agosto de 2018.
No que diz respeito à seleção dos participantes nos CAPS, sucedeu de modo semelhante. Inicialmente, era necessária a enumeração e identificação dos municípios que dispunham de CAPS a população. Duas estratégias foram utilizadas para a realização desta etapa do estudo: o contato direto com a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) e pesquisa no SCNES. Assim, identificamos a presença de 22 CAPS em nove municípios. Deste total, duas SMS informaram que não havia oferta de PICS disponível em seus CAPS e uma não foi contactada. Diante disso, a pesquisa ocorreu em seis cidades da RMG.
Posto isto, realizou-se o contato por e-mail e/ou telefônico com o gestor/coordenador do CAPS para a apresentação da pesquisa e da pesquisadora, além da solicitação da indicação dos profissionais que implementavam alguma PICS no serviço de saúde mental. No total, 72 profissionais foram indicados como potenciais participantes do estudo. Houve a tentativa de contato telefônico com todos os participantes. Contudo, houve uma recusa e 26 possíveis participantes não foram contactados. Por conseguinte, 45 profissionais, de 15 CAPS, de seis municípios da RMG, participaram da pesquisa. A coleta de dados ocorreu entre os meses de dezembro de 2019 e fevereiro de 2020.
As entrevistas foram pré-agendadas com o profissional, por contato telefônico ou WhatsApp. Nessa abordagem, eram feitas uma explanação da pesquisa, dos pesquisadores e a marcação da entrevista em dia e horário de acordo com a disponibilidade do participante. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas, ou seja, guiadas por um roteiro previamente elaborado, mas indagações durante as entrevistas poderiam ocorrer e ser aprofundadas pelos entrevistadores caso fossem de interesse do estudo.
As entrevistas foram conduzidas por dois pesquisadores. Os profissionais da APS foram entrevistados por um pesquisador, do sexo masculino e fisioterapeuta. Em contrapartida, os atuantes com as PICS nos CAPS foram entrevistados por uma pesquisadora, do sexo feminino, enfermeira e professora universitária. Os dois entrevistadores não detinham quaisquer contatos ou conhecimentos pregressos com os participantes. Ambos eram inexperientes na condução de entrevistas semiestruturadas. Sendo assim, as duas primeiras entrevistas implementadas na APS e no CAPS foram usadas também como treinamento aos pesquisadores. Utilizaram-se das duas primeiras entrevistas para testagem do roteiro de entrevistas, identificando possíveis inconsistências, questões dúbias ou que causassem confusão ao entrevistado. Após esse teste com o instrumento, não foi observada a necessidade de mudanças no roteiro, considerado adequado para o gerenciamento das entrevistas tanto na APS quanto no CAPS.
As entrevistas presenciais foram empreendidas nos consultórios dos CAPS e dos serviços de APS sem qualquer interferência externa ou intercorrência nas gravações, estando somente o pesquisador e o entrevistado no local.
Antes de iniciar as entrevistas, os pesquisadores explicavam novamente os benefícios, a finalidade e os riscos da pesquisa, bem como a entrega do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) a ser assinado pelo participante, resguardando a sua identidade e a confidencialidade dos dados coletados. Após isso, a entrevista era executada tendo, em média, duração de 40 minutos, sendo gravadas em áudio e, posteriormente, transcritas na íntegra.
Vale lembrar a alteração da modus operandi da coleta de dados por meio de entrevistas presenciais para as realizadas em contato telefônico em virtude da pandemia da COVID-19. A partir de então, as coletas de dados foram retomadas por meio de ligações telefônicas. Dessa forma, entre os meses de maio e agosto de 2020 foram realizadas as entrevistas por telefone com os profissionais dos CAPS.
Os dados obtidos foram analisados por meio da Análise de Conteúdo Temática (Bardin, 2016). Para gerenciar a análise dos dados, utilizamos o programa de apoio à análise qualitativa software NVivo© Plus versão 12. As entrevistas transcritas foram importadas para o software. Codificaram-se os discursos com a letra “P”, acrescida do número atribuído a cada participante e o local onde a entrevista foi executada. Primeiramente, na fase de pré-análise, organizamos o material a ser analisado mediante leitura flutuante. Em seguida, iniciou-se a exploração do material. Nessa fase, a categorização possibilita e facilita as inferências e interpretações. Foram identificados os núcleos de sentido e selecionados os fragmentos de textos que, de fato, representavam os argumentos mais significativos, os quais foram codificados no software.
A codificação das entrevistas foi realizada de forma independente pelos dois pesquisadores: o entrevistador ficou responsável pela codificação das entrevistas com os profissionais da APS, enquanto a entrevistadora se encarregou das entrevistas com os participantes do CAPS. A codificação seguiu um conjunto predefinido de códigos, conforme descrito por Tesser e Sousa (2012). As análises subsequentes envolveram a comparação das codificações realizadas pelos dois pesquisadores para verificar a presença dos mesmos códigos nos dois conjuntos de dados. Os códigos que emergiram do estudo de Tesser e Sousa (2012) foram incluídos no nosso estudo por consenso entre os dois codificadores. A última etapa da análise de dados consistiu no tratamento dos resultados e nas interpretações à luz do referencial teórico presente na literatura científica, bem como dos dados coletados por meio das entrevistas. Para preservar o anonimato dos entrevistados, os trechos das narrativas foram identificados com a letra “P”, seguida do número atribuído a cada participante, juntamente com o local onde a pesquisa foi realizada (APS ou CAPS). É importante destacar que o estudo atendeu a todos os requisitos estabelecidos nas Resoluções nº 466/2012 e nº 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde/Ministério da Saúde, tendo sido aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Goiás sob o parecer nº 2.057.783.
3. Resultados e Discussão
Foram entrevistados 65 profissionais de saúde, sendo 20 da APS e 45 dos CAPS. As características sociodemográficas dos participantes do estudo estão relatadas na Tabela 1. Os códigos e as categorias temáticas estão descritos na Figura 1.
3.1 Percepções convergentes do trabalho com as Práticas Integrativas e Complementares na Atenção Primária à Saúde e nos Centros de Atenção Psicossocial
No que diz respeito a esta categoria temática, é possível perceber que as PICS potencializam os meios e os fins do trabalho tanto na APS quanto nos CAPS. Para os entrevistados, as PICS proporcionam a implementação de abordagens mais amplas e holísticas, permitindo uma atenção mais centrada no indivíduo em sua totalidade. Esse achado reforça a ideia de que a oferta de PICS em ambos os níveis da rede de atenção à saúde atende às necessidades dos usuários. A aprovação dessas políticas nacionais de saúde visa a reorganização do sistema de saúde brasileiro com foco na pessoa, no paciente, relegando a doença a um segundo plano. Os excertos do conteúdo das entrevistas a seguir ilustram esse ponto:
"O uso das PICS nos permite enxergar o ser humano à nossa frente, o paciente que está ali, de uma forma mais ampla. Ela nos permite olhar além dos sintomas que ele está apresentando, como dores ou enxaquecas, e buscar compreender as causas subjacentes, que muitas vezes estão relacionadas a traumas ou questões mais profundas." (P22 - CAPS)
"A Auriculoterapia, o Reiki e outras práticas integrativas ampliam o horizonte da medicina ocidental, que muitas vezes prefere simplesmente tratar os sintomas em vez de compreender o indivíduo como um todo." (P9 - APS)
Essa abordagem ampliada, holística e centrada no usuário tem sido observada em outras pesquisas (Sampaio et al., 2018; Pereira & Tesser, 2021; Oliveira et al., 2022). Ao adotar uma abordagem mais holística e personalizada, em contraste com a abordagem ortodoxa da medicina contemporânea ocidental, as PICS demonstram sua capacidade de atender aos objetivos da APS e dos CAPS (Shirwaikar et al., 2013).
Além disso, os profissionais de saúde que oferecem PICS valorizam os conhecimentos e as racionalidades não biomédicas, reconhecendo também as perspectivas, visões de mundo e habilidades dos usuários como elementos fundamentais na resolução dos problemas apresentados na APS e nos CAPS. O indivíduo não é visto como um receptáculo vazio a ser preenchido com prescrições e culpabilizações, mas sim como um colaborador e parceiro na busca por soluções para seu próprio sofrimento. Conforme relatado pelos entrevistados:
"Recentemente, fiz o acolhimento de uma pessoa em situação de rua, e ela mencionou que, em outro CAPS, participava de sessões de musicoterapia e gostava muito. Ela até tinha seu violão e se sentia bem durante as sessões. Isso facilitou sua inserção em nosso grupo de musicoterapia." (P18 - CAPS)
"Nessa dinâmica, em que o usuário desempenha um papel central em sua própria história, os cuidados em saúde facilitados pela oferta de PICS enfatizam o papel da APS e dos CAPS em fortalecer habilidades pessoais e sociais, como o autocuidado e o autoconhecimento." (P29 - CAPS)
"A Terapia Comunitária permite que você se empodere e se torne o autor de sua própria vida." (P5 - APS)
De mais a mais, as PICS satisfazem uma abordagem de fortificação da comunidade e das famílias. A APS e o CAPS, em seus processos de trabalho, consideram os entes como essenciais na lida com os seus usuários. Entretanto, esse manejo familiar pode ser um tanto quanto delicado com a biomedicina sendo a racionalidade dominante. As cisões históricas enfrentadas pela medicina contemporânea ocidental entre arte de curar e a ciência da doença tornam as PICS ainda mais importantes para esses dois serviços de saúde. Nas palavras dos entrevistados,
“A família muitas vezes adoece junto [...] preparar a família, tem que preparar. Tanto, é igual assim, o que a gente mais tem queixa aqui é o paciente, ele fala assim "á ninguém me compreende em casa, fala pra mim que eu sou doido, vai me amarrar e vai me jogar lá no sanatório", o que a gente mais escuta. Então assim, a gente, a gente, aconselha, orienta assim, a pessoa que ta convivendo com você não tem esse preparo, esse discernimento porque ele não viveu, então ele não sabe o que é”. (P3 - CAPS)
“[...] como a gente conversa sobre os problemas que elas trazem. Nós fazemos várias conexões neuronais a respeito daquilo, buscando as saídas [...]. Então essa coisa de tentar se colocar no lugar do outro, tentar achar uma solução para aquilo, ajudando essa pessoa, eu estou me ajudando na realidade [...]”. (P5 - APS)
Esse resultado está alinhado com outro achado da literatura (Pereira & Tesser, 2021). O foco do cuidado na APS e no CAPS deve levar em consideração a família e não só o indivíduo em sofrimento.
Esses serviços de saúde foram planejados para abarcar soluções envolvendo o desenvolvimento de estratégias em saúde conjuntamente com os entes da pessoa em questão. Uma vez que a resolução dos conflitos pode ser elaborada dentro do seio familiar, sendo as PICS moderadoras desses problemas a serem resolvidos na atenção psicossocial e primária.
Em conjunto, esta categoria temática evidencia a convergência entre atenção psicossocial, APS e PICS no que diz respeito aos objetos e fins de trabalho, corroborando com o estudo de Tesser e Sousa (2012). A partir da implementação das PICS, as ações de cuidado são centralizadas na pessoa e não na doença em si. Logo, a elaboração dos planos terapêuticos parte do contexto social dos usuários, demonstrando o papel das PICS, então, na reestruturação da APS e dos CAPS como promotoras da saúde e o rompimento com a supervalorização da doença.
3.2 Percepções das modificações do relacionamento dos profissionais com os usuários mediante a oferta das Práticas Integrativas e Complementares na Atenção Primária à Saúde e nos Centros de Atenção Psicossocial
A iniciativa de desenvolver as PICS no CAPS e na APS tem por finalidade oferecer um cuidado inclusivo, ou seja, adaptar as ações em saúde ao contexto social dos usuários, conforme se identifica nas narrativas dos seguintes participantes:
“Para nós, acho que é importante porque isso vai fortalecer mais a comunidade, e aí elas vão aprendendo a enfrentar e a lidar com os seus problemas.” (P13 - APS)
“Elas voltam ao contexto social, voltam às suas atividades.” (P26 - CAPS)
Desse modo, a oferta de PICS nesses locais possibilita uma transformação nas atitudes dos profissionais quando estabelece a possibilidade de horizontalização das relações entre eles e os usuários. Cria um espaço de diálogo e argumentação comum, ao proporcionar aos usuários a vivência de aprendizados e inclusão social a partir da valorização do conhecimento experienciado para além da ciência.
Com isso, os vínculos terapêuticos são fortalecidos. Os profissionais se colocam em equidade com os usuários ao sistematizar situações, por intermédio das PICS, de encorajamento e sociabilidade por parte dos usuários para que se tornem corresponsáveis em seu processo de cuidado. Nesse sentido, os profissionais revelam:
“Acaba tendo uma proximidade maior [...] A gente acaba ouvindo histórias pessoais, de casa, marido, de filho.” (P1 - APS)
“Tem que dar alta para o usuário, e eles não querem sair porque cria um vínculo. O vínculo deles se torna bem forte, e necessita dar alta, e eles não querem sair.” (P28 - CAPS)
Esse resultado concorda com outros achados (Marques, 2017; Mendes, 2018; Oliveira et al., 2019; Oliveira et al., 2022; Diniz et al., 2022; Silva et al., 2022). O profissional de saúde, ao acolher as narrativas dos usuários, além de oferecer mais uma técnica terapêutica, oferece uma escuta qualificada e ativa aos usuários. Consequentemente, estabelece uma conexão entre o cuidado meramente prescritivo e uma abordagem mais próxima, humana e empática (Ferreira, 2016).
Assim, os entrevistados reconhecem a oferta das PICS como um universo usado para socializar os sentimentos do cotidiano e a troca de experiências entre os usuários. Mediante esse reconhecimento, efeitos na saúde mental dos usuários são percebidos pelos profissionais.
“[...] como disse uma senhora que frequenta nosso grupo, [...] ela falou assim: “a melhor parte da minha semana é segunda-feira que eu venho encontrar meus amigos.” (P6 - APS)
“Os adolescentes têm melhorado a partir das intervenções e as propostas de cuidado em conjunto, de grupos de atendimento interdisciplinares com uma PIC junto com outra abordagem, isso também tem aumentado. Então me faz ver que tem uma adesão que tem gerado ganhos e melhoras na saúde mental dos usuários.” (P25 - CAPS)
Além disso, as PICS proporcionam uma desmedicalização no sentido literal da palavra. Os usuários reduzem o consumo de medicamentos e passam a ter uma vida menos artificial.
“A gente tem grandes resultados, a gente diminuiu muito a internação.” (P26 - CAPS)
“Melhorou assim 100% a busca deles [usuários] aqui na Unidade [de Saúde] para consulta médica.” (P6 - APS)
Esses entendimentos dos participantes sugerem as PICS como agentes potenciais para evitar a medicalização e a iatrogenia na APS e nos CAPS. Esses resultados estão alinhados com os de outras pesquisas (Tesser; Dallegrave, 2020; Pereira & Tesser, 2021; Oliveira et al., 2022; Ribeiro, 2022; Silva et al., 2022) e podem ser cruciais para a redução de encaminhamentos para outros níveis de atenção da rede de atenção à saúde (Brasil, 2006). Essas alterações no consumo de medicamentos e consultas com especialistas podem ser importantes para a redução dos custos no manejo da saúde mental e física pelos serviços de saúde que implementam as PICS.
4. Considerações Finais
As PICS e a investigação qualitativa, historicamente e cientificamente, têm evoluído concomitantemente. As peculiaridades e subjetividades das racionalidades médicas e práticas terapêuticas tradicionais e milenares são mais bem captadas pelas análises qualitativas. Alguns significados e símbolos inerentes à escavação sociológica das PICS compreendidos neste estudo foram possibilitados pela análise do conteúdo das entrevistas, imprescindíveis para a promoção da saúde na APS e nos CAPS. Essa união entre PICS e pesquisa qualitativa também potencializa discussões, debates e reflexões para além das ciências da doença. Enfatiza o resgate da arte de curar requerida no trabalho em saúde no SUS.
Nesse seguimento, os resultados desta investigação qualitativa nos possibilitaram compreender as contribuições das PICS para redirecionar e reorientar as relações dos profissionais com outros modos de produção de cuidado. Nesse contexto, foram apreendidas percepções importantes nesse processo saúde-doença-cuidado atribuídas à oferta das PICS, quais sejam: abordagem ampliada e holística, com centramento no usuário em sua totalidade, considerando sua realidade e visões de mundo; e o estímulo ao autoconhecimento e resolução dos problemas enfrentados pela clientela assistida pelo CAPS e APS, culminando na melhora dos aspectos físicos e mentais.
Não obstante, os vínculos são intensificados com a aplicação de racionalidades diferentes da biomédica mediante a valorização do conhecimento e sabedoria não-biomédicos. O compartilhamento de experiências durante a realização das PICS surge como valiosas ferramentas de cuidado dentro da rotina do trabalho nos CAPS e APS. Ainda segundo os nossos achados, a integração de diferentes práticas terapêuticas pode estimular o autoconhecimento e autocuidado pelos usuários. Podemos perceber a ampliação da clínica, incentivo à desmedicalização com inserção de estratégias colaborativas com o processo de reconstrução dos modos de viver a vida para pessoas que buscam esses serviços de saúde.
Algumas limitações e fontes de vieses podem ter interferido nos resultados deste estudo. Devido ao tipo de estudo, não foi possível dimensionar as causalidades, mas permitiu apontar as potencialidades de implementação das PICS nesses níveis da rede de saúde. Mesmo com essa limitação, os resultados podem servir de base para a abrangência das PICS no SUS local e regional. O desenho também não permite o acompanhamento da execução ao longo do tempo. No entanto, a longitudinalidade parece não impactar o objetivo da pesquisa, pois existe um maior controle dos pesquisadores sobre o processo de averiguação do estudo. Outra limitação que merece ser destacada é a possibilidade de as respostas dos participantes estarem enviesadas por conta da notoriedade das PICS na última década. Os aspectos positivos das PICS podem ter sido superestimados.
Diante disso, sugerimos a realização de pesquisas futuras para a compreensão dos processos de implantação e implementação das PICS tanto na APS quanto no CAPS, com vistas para as limitações aqui elencadas. A execução de pesquisa como esta poderia aumentar a visão da situação das PICS no Brasil, orientando as políticas dessas práticas em outras regiões metropolitanas brasileiras.
Por fim, o nosso estudo mostrou a existência de convergências entre as percepções dos profissionais de saúde ofertantes de PICS em dois importantes níveis de atenção da rede de atenção à saúde pública do Brasil. Isso pode implicar que os entes envolvidos nessa outra forma de se fazer cuidado se fortaleçam e se articulem em prol da superação do reducionismo biológico eloquente na APS e nos CAPS. Esses resultados mostram a necessidade de se disseminar a pluralidade terapêutica através de abordagens interpretativas, com a finalidade de se propor respostas adequadas aos adoecimentos dos usuários aos serviços de saúde locais e regionais.