1. Introdução
A utilização da metodologia da investigação qualitativa é fundamental para o ensino e a prática de campo em saúde, pois tem a relevante contribuição de ofecer dados sociais que possibilitam conhecer melhor a realidade estudada, o papel ativo dos sujeitos na vida em sociedade, além das dinâmicas sociais, econômicas e políticas presentes nas relações cotidianas. O uso dos seus elementos, mediante coleta de dados, é capaz de produzir evidências em diferentes formatos: palavras, registros de fala, imagens, por meio de técnicas de diversas naturezas, como observações, discussões em grupos e entrevistas.
A metodologia da investigação qualitativa contribui para a coleta de informações que visam descrever, caracterizar, refletir e compreender os fenômenos. Ela é utilizada para criar e co-produzir informações que têm a finalidade de obter informações, resultados e processos de natureza social e humana. Na área da saúde, a nossa própria tradição cultural pouco nos habilita a lidar com a dimensão qualitativa dos fenômenos, sobretudo quando pensamos na formação pregressa dos pesquisadores e, posteriormente, quando já inserida no contexto acadêmico há a falta de núcleos e disciplinas voltadas à discussão sobre método e investigação qualitativa (Bosi, 2012).
Neste sentido, utilizar a metodologia da investigação qualitativa e os seus diversos elementos para o ensino e a prática de campo em saúde, além de sua articulação com a pesquisa e a extensão, pode produzir experiências que evidenciam a interdisciplinaridade, os contextos antes pouco estudados e as realidades sociais, políticas e econômicas que requerem um olhar investigativo mais detalhado e implicado. Pois, este tipo de metodologia traz consigo um conjunto de pressupostos sobre a realidade, assim como um instrumental composto por uma série de conceitos e teorias capazes de se ter uma concepção de totalidade (Víctora, Knauth, Hassen, 2000).
O que é o caso das ocupações urbanas, que ocorrem quando um grupo de pessoas, sem acesso à moradia, passa a ocupar terrenos e construções dos quais não têm a posse formal. Essas ações são impulsionadas pela necessidade de uma moradia adequada para a reprodução social daquele grupo, quando não satisfeita pela lógica do Estado. Por exemplo, a ocupação Vista Alegre do Juá que se encontra situada na zona Oeste no Município de Santarém - Pará, Brasil, Região da Amazônia Brasileira. Uma ocupação que se entende por um território resultante de segregação involuntária iniciado no ano de 2009 e presente até os dias atuais. Diante de inquietações sociais e o interesse pela produção de conhecimento através do ensino, da pesquisa e da extensão, este artigo tem por objetivo apresentar o uso de elementos da metodologia da investigação qualitativa para a construção de uma experiência de campo da área da saúde, na ocupação Vista Alegre do Juá, Santarém-Pará, Brasil, Região da Amazônia Brasileira.
2. Metodologia
O método de pesquisa construído para a realização deste relato de experiência consiste no uso da metodologia da investigação qualitativa e os seus elementos.
Esta experiência foi construída por discentes através da proposta de articulação entre ensino, pesquisa e extensão, dentro de uma disciplina curricular com nome Interação na Base Real III com a duração de um semestre letivo (seis meses), dos cursos da área da saúde (Bacharelado Interdisciplinar em Saúde, Saúde Coletiva e Farmácia) da Universidade Federal do Oeste do Pará, Brasil, Região da Amazônia Brasileira.
Esta experiência utilizou na sua construção elementos da pesquisa qualitativa, como a técnica de bola de neve para aproximação das lideranças da ocupação, o relato oral de informantes-chave e a observação para conhecimento do local. Foram realizadas visitas in loco com as lideranças locais e também o contato remoto via whatsapp. Foram realizadas pesquisas em órgãos municipais de Santarém-PA para o levantamento de informações sobre a ocupação, como a Secretaria Municipal de Urbanismo e Serviços Públicos (SEMURB), Secretaria Municipal de Infra Estrutura (SEMINFRA), Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), Secretaria Municipal de Saúde (SEMSA), Núcleo Técnico de Vigilância em Saúde (NTVS) e a Vigilância Epidemiológica (Figura 1).
O percurso metodológico construído destaca a importância da metodologia da investigação qualitativa e o uso dos seus elementos em áreas do conhecimento, como a saúde. É inegável o crescimento e a aceitação dessa metodologia em áreas da saúde, como enfermagem, serviço social, psicologia, e também em áreas tradicionalmente “mais desafiadoras”, como a medicina, farmácia, nutrição e áreas da saúde coletiva, como a epidemiologia. Estudos baseados no uso da metodologia da investigação qualitativa ou na combinação de metodologias (quantitativas e qualitativas) tem sido destaque em publicações nacionais e internacionais da área (Bosi e Gastaldo, 2012; Bogdan e Biklen, 1994).
O percurso do método exploratório por meio do uso do método de coleta de dados bola de neve teve a intensão de produzir um trabalho de campo capaz de mapear os sujeitos envolvidos com a temática da investigação.
A utilização do método descritivo por meio da observação in loco e das entrevistas com os informantes-chave teve a intenção de produzir um trabalho de campo com um padrão qualitativo capaz de expressar os dados co-produzidos e que estivessem integrados de forma preliminar e adaptável ao objeto da investigação, de acordo com o que se deseja compreender sobre a realidade e peculiaridades do lugar em estudo, para proporcionar maior familiaridade com as demandas locais. Além disso, buscou-se de maneira sucinta averbar o relato dos entrevistados, possibilitar o registrar do que o entrevistador observou e sentiu na visita local. Para o alcance destes dados, buscou-se um planejamento com a elaboração de roteiros.
Para o momento anático-interpretativo que buscou o uso de elementos da metodologia da investigação qualitativa para compreensão dos dados, foi fundamental olhar para os dados co-produzidos na ocupação em tela e pensar em um caminho que pudesse compor a realidade de vida das pessoas, a sua desassistência a saúde, como principal foco; e também todos os aspectos que entremeiam essa dinâmica, como por exemplo, a renda familiar, a participação em programas sociais, a segurança pública, a ausência de escolas para educação básica, os serviços públicos de saúde, saneamento básico e também informações como gênero, idade, escolaridade, tempo de moradia, quantidade de pessoas por família.
Neste sentido, primeiramente foram desenvolvidas pesquisas presenciais e remotas nas secretarias municipais de Santarém-PA (Figura 1), pesquisas bibliográficas e também na base de dados da agência municipal do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Essas informações foram de extrema importância para a realização da visita de campo na ocupação Vista Alegre do Juá, com as lideranças locais da associação de moradores.
A partir disso, para o sucesso da produção dos dados, houve a necessidade de elaborar atividades sucessivas e que se tornaram um ponto auge para este trabalho, para conhecer as peculiaridades da comunidade e para qualificação do material que estava sendo construído no cenário da pesquisa (Tabela 2).
2.1 Informações co-produzidas a partir do uso de elementos da metodologia da investigação qualitativa - Um relato de Experiência na ocupação urbana Vista Alegre do Juá, Santarém-PA, Brasil, Região da Amazônia Brasileira
Foi observado que a ocupação Vista Alegre do Juá sofreu poucas mudanças, no sentido da produção significativa de melhorias de vida da sua população. A ocupação ainda permanece em processo de regularização para se tornar um bairro de fato. Dessa forma, o local ainda tem muitas necessidades de serviços públicos, mesmo que os seus representantes busquem as melhorias necessárias visando mais apoio governamental para a comunidade.
O processo inicial da posse da ocupação Vista Alegre do Juá no município de Santarém-PA foi caracterizado pelo adensamento da massa de indivíduos que anteriormente não possuíam moradia própria, juntamente com pessoas que migraram de territórios rurais com a finalidade da criação de um novo bairro em terras que antes não possuía funções sociais.
Atualmente, os moradores da ocupação (Figura 2) lutam pela legalização do bairro para que possam desfrutar das políticas públicas para a melhoria na qualidade de vida no local. Devido a este obstáculo da não legalização, são poucas as informações advindas dos órgãos oficiais, como por exemplo, das secretarias municipais.
Ademais, a partir das informações gerais obtidas com a presidente de associação dos moradores, observou-se que a habitação conta com 7 mil famílias e aproximadamente 25 mil habitantes.
A Ocupação Vista Alegre do Juá está localizada na área urbana de Santarém, no Estado do Pará. Possui uma extensão de aproximadamente 2,69 km, das margens da rodovia Engenheiro Fernando Guilhon até a margem do rio Tapajós. Em 2019, foi feito um acordo como município de Santarém, aonde o Ministério Público Federal e Estadual decidiu que houvesse reintegração de posse por parte da empresa Buriti e seria doado ao município uma parte do terreno correspondente a 200 metros de frente por 2500 metros de fundo, abrigando as famílias de baixa renda que já estavam na ocupação. Mas, tal ação ainda segue em processo judicial. Assim, a ocupação continua não sendo reconhecida e tal processo acaba sendo um fator dificultador para devida atenção dos órgãos públicos, principalmente os órgãos municipais, dos quais a população precisa tanto.
Mediante as informações coletadas através das observações, entervistas com os informantes-chave e as informações coletadas também por meio de pesquisas bibliográficas. O grupo pode ver que a ocupação é desprovida de serviços públicos, como escola, Unidade Básica de Saúde (UBS) e saneamento básico, sendo que a falta desses serviços se dá pelo fato da área ainda não ser legalizada. Dessa forma, perante a difícil situação vivenciada pelos residentes da ocupação, na primeira reunião e atividade feita em sala de aula, o grupo listou as características do local e escolheu qual seria o foco de um possível plano de ação na ocupação Vista Alegre do Juá, a fim de amenizar a falta de acesso aos serviços básicos. Essa atividade seguiu uma linha do tempo (Figura 3) e os discentes produziram o seguinte caminho: chegaram ao local através de transporte público, foram guiados pela presidente do bairro, com o objetivo de conversar com alguns moradores e observar o local. Os dados produzidos foram apresentados em sala de aula e repassado para o grupo responsável pela elaboração do relatório, para que fosse registrado em formato sistematizado de texto, o que foi aplicado na prática.
Assim, por meio da leitura de artigos científicos, capítulos de livro e outros materiais bibliográficos vinculados à disciplina de IBR III e de discussões mediadas em sala de aula, o grupo escolheu, a princípio, a falta de água encanada (saneamento básico) e a dificuldade de acesso aos serviços públicos de saúde, como base para a construção do plano de intervenção na ocupação Vista Alegre do Juá. Partindo disso, as propostas de ação foram a 1) aferição de pressão arterial, 2) teste de glicemia, 3) tipagem sanguínea, 4) palestras sobre higiene bucal e 5) distribuição de kits de higiene bucal.
Por conseguinte, foram realizadas a segunda, terceira e quarta atividade (Tabela 2). Nestas atividades, o grupo pensou em quais profissionais poderiam ser convidados para ajudar na efetivação do plano de intervenção. Para a realização da aferição da pressão arterial, do teste de glicemia e de tipagem sanguínea a equipe pensou em convidar enfermeiros e técnicos de enfermagem, tendo em vista que no grupo responsável pela ação existem técnicos de enfermagem. O objetivo das ações, no âmbito da saúde, é de promover o contato da população com alguns dos serviços ofertados nas unidades básicas de saúde (ausente na ocupação), tendo como público-alvo os(as) chefes de família.
Outrossim, no que se refere a promoção da palestra de higiene bucal, o grupo optou em chamar um acadêmico de odontologia e/ou um odontólogo já formado para a realização da atividade. As distribuições dos kits de higiene bucal, por sua vez, seriam feitas por membros da equipe responsável pelo plano de ação e a finalidade da realização da palestra foi incentivar a autonomia da população, no que tange a sua saúde bucal; e a distribuição dos kits buscava ofertar os meios para a concretude de tal autonomia, tendo toda a população como público-alvo, especialmente as crianças da ocupação.
Adiante, na terceira atividade (Tabela 2) a equipe listou os problemas encontrados na ocupação, como o caso do difícil acesso aos serviços de saúde, falta de água tratada e encanada, ausência de escolas, de coleta de lixo regular, o processo de legalização do local, a falta de infraestrutura e de transporte por toda a ocupação Vista Alegre do Juá. Em seguida, na quarta atividade, o grupo definiu qual seria o problema priorizado dado a sua magnitude, transcendência, vulnerabilidade, urgência e factibilidade.
Nesse contexto, a problemática priorizada foi o déficit de acesso aos cuidados em saúde, em decorrência de ser uma questão que afeta toda a população, ser algo imprescindível para o bem-estar da comunidade, que tendo os recursos necessários poderia ser ao menos amenizado. Porém, é algo urgente que necessita ser resolvido. Na quinta atividade, foi feita uma análise e listagem dos possíveis locais, do público alvo, dos agentes-chaves, das necessidades da população e das atividades pensadas para a ação na comunidade.
Na sexta atividade (Tabela 2), foi feito um aproveitamento da definição do problema que seria priorizado no plano de intervenção, que consta na quarta atividade, juntando com as análises do quinto exercício para a elaboração do diagrama de Ishikawa (Figura 4). Nesse cenário, é válido salientar que, em discussão, a equipe achou melhor retirar a promoção de testes de tipagem sanguínea devido a complexidade e custo do serviço, optando por realizar apenas a aferição de pressão arterial, teste de glicemia, a palestra sobre saúde bucal e a entrega dos kits. Dessa forma, o diagrama de Ishikawa foi dividido em pessoas, método, medida, máquina, ambiente e materiais envolvidos.
As pessoas envolvidas na construção do próximo passo das atividades do plano de intervenção serão os próprios discentes, os enfermeiros, técnicos de enfermagem e um acadêmico de odontologia e/ou dentista já formado. Os métodos usados serão o planejamento/tabela da ação, adequação do local, parcerias para a obtenção de recursos financeiros. As medidas visam a satisfação dos moradores, impactos positivos na saúde dos indivíduos, o sucesso da ação e a avaliação da docente responsável pela disciplina.
A máquina, por sua vez, estabelece os materiais necessários como o caso das fitas para o teste de glicemia, esfigmomanômetro, medidor de glicose, luvas, algodão, álcool, notebook, datashow e o transporte, o ambiente escolhido foi pensado para se evitar possíveis erros na execução do plano, causados por chuvas, calor extremo e trafegabilidade das ruas. Por último, os materiais envolvidos serão sacos de lixo para o descarte dos recursos usados, um banner sobre higiene bucal, os certificados para os contribuintes da ação e os kits de higiene bucal com escova e creme dental.
Na sexta atividade foi feito apenas um relato geral de como foi realizado a preparação do plano de intervenção, como se deu a organização e montagem do plano a partir dos exercícios feitos em sala de aula, como foi feita a definição e priorização do problema, como a problemática foi explicada, como foi explicado o problema e as considerações finais tendo como base os conhecimentos adquiridos em IBR III e nas demais disciplinas do semestre. Por fim, após a conclusão de seis atividades, a turma realizou uma visita na comunidade para conversar com a vice-presidente da associação da ocupação, a fim de que cada um dos dois grupos apresentasse a sua proposta de intervenção para o território e chegasse a uma conclusão se o plano elaborado seria realmente importante para a comunidade da ocupação. As propostas foram consideradas pela vice-presidente, como importantes, benéficas e aplicáveis na ocupação.
Por fim, a equipe de discentes montou um quadro de atividades relatando quais seriam os principais responsáveis, a equipe de apoio, os equipamentos necessários, os agentes envolvidos, a articulação para se conseguir o recurso financeiro necessário para a realização da ação, os resultados esperados e os produtos de cada ação, bem como foi especificado as pessoas envolvidas na confecção do relatório final do trabalho e na apresentação do mesmo. Foi realizada a segunda e última visita à comunidade, com o intuito de apresentar a versão final do plano de ação, bem como visitar o local onde seria realizada a ação.
3. Considerações Finais
A ocupação Vista Alegre do Juá possui uma grande quantidade de moradores de todas as faixas etárias que procuram alguns atendimentos de saúde e escolas públicas em outros bairros, porque ainda não há o oferecimento desses serviços no local.
Por outro lado, o território possui energia elétrica e internet e cada vez mais tem conseguido apoio para outras conquistas. Todavia, a falta de unidade básica de saúde, escola, fornecimento de água, coleta de lixo em todo o território, saneamento básico ou até mesmo transporte é algo que torna a vida dessa comunidade mais difícil. Sendo necessário um grande deslocamento em busca desses serviços e o transporte público ainda não está presente em todo o bairro.
Essas situações dificultam a vida de quem mora na ocupação Vista Alegre do Juá, pois os moradores precisam se deslocar para bairros vizinhos para ter atendimento médico e de enfermagem, quando os profissionais de saúde não estão fazendo atendimento no local no barracão da associação da comunidade uma vez por mês. Para irem trabalhar e, principalmente, para o deslocamento escolar, onde muitas famílias precisam levar seus filhos para outros bairros para estudar, essa questão do transporte público também é uma questão importante.
E apesar de inúmeras dificuldades, os moradores não se deixam levar, e buscam de alguma forma ter o melhor para si, sua família e para o bairro. Neste sentido, o plano de intervenção organizado pela equipe de discentes buscou levar para essa comunidade o que é de mais importante para vida de uma população, a saúde. E com isso, a ação para uma população que precisa de tanto, buscou por meio de palestras e alguns atendimentos básicos, levar pelo menos um pouco de serviços essenciais.
O uso de elementos da metodologia da investigação qualitativa foi fundamental para articular o encontro de diálogo entre o saber popular e o saber acadêmico, sustentando uma visão mais popular e emancipatória através de concepções e práticas indissociáveis da arte e da cultura com a coparticipação dos sujeitos. Buscando a relação constante e direta entre universidade e sociedade para transformação da realidade social do território extramuros do ambiente acadêmico (Pires, 2020).
Neste sentido, a complementariedade com a proposta da extensão universitária, como uma área que pode tornar-se articuladora das políticas territoriais, dado que a extensão é a universidade no território. Um projeto de extensão que articula ensino e método nesta perspectiva, supõe um conjunto de atividades relacionadas entre si que se realizam em determinado território para resolver problemáticas através de estratégias explícitas (Gadotti, 2017). É imprescindível, portanto, partir da análise crítica das práticas de extensão no território e mapear todas as articulações que a universidade tem com a sociedade. E, o uso de elementos da metodologia da investigação qualitativa possibilita entender o território como um campo de estudo e de intervenção e, ao mesmo tempo, como um espaço de diálogo entre universidade e sociedade.