1.Introdução: O que é a Ciência afinal?
O título desse tópico que abre nosso trabalho se remete ao livro de Chalmers (1993) com o mesmo nome. Nesse livro, o britânico-australiano, filósofo da Ciência e professor da Universidade de Sydney aborda a questão de que a Ciência pode ser definida de várias formas, mas que faz uso de processos sistemáticos e rigorosos de investigação do mundo. Esses processos fazem uso, no geral, de atividades de experimentação e interpretação de dados.
Ele destaca o fato de que a Ciência é uma construção humana e, por isso, influenciada por diferentes fatores sociais, históricos, culturais, políticos e outras crenças dominantes no contexto e na época em questão. Por tudo isso, ela está em constante evolução, gerando novos conhecimentos e teorias que buscam explicar os fenômenos, naturais ou não, e resolver as questões postas pela sociedade e/ou cientistas.
No entanto, a Ciência não nos fornece a única forma de resolver diferentes questões postas pela sociedade. Laville e Dionne (1999) afirmam que o homem sempre buscou formas de entender o mundo e, para isso, desenvolveu diferentes formas de saber: os saberes espontâneos, originados de observações de fatos do dia a dia; os saberes intuitivos como acreditar que o sol gira ao redor da Terra, seja ela plana ou esférica; os saberes de tradição que são construídos e passados pelas gerações; os saberes impostos pela autoridade, seja ele religiosa, familiar, militar etc.; e o saber racional, construído metodicamente e, por isso, mais confiável.É do saber racional, a partir do pensamento filosófico, que surge o saber científico que triunfa a partir do século XVIII construindo os princípios da ciência experimental que nos guia até hoje.
A ciência foi definida por Aristóteles como um ‘conhecimento demonstrativo’, um saber que pode ser demonstrado por meio de testes e ensaios. Derivada do latim, a palavra scientia significa conhecimento. Mas se trata de um conhecimento que explique as leis naturais da vida na busca de compreender fatos e verdades (MENDONÇA, 2023). O conhecimento científico é resultado de processos que seguem formalidades e utiliza-se de rigor que constituem o chamado de “método científico”. As etapas do “método científico” podem ser enumeradas em seis: Observação, criação de Hipótese, Experimentação, Análise, Conclusão e Comunicação. A comunicação é a etapa na qual o cientista e seus pares irão validar o trabalho. De forma contraria à Ciência, os alquimistas, apesar de práticos e inventivos, não cumpriam a maior parte dessas etapas.
Posto que a alquimia não é reconhecida como ciência é inegável que deixou um legado já que na busca pelo elixir da longa vida muitas técnicas de laboratório foram desenvolvidas e a figura do médico Paracelsius teve destaque pois ele tinha o hábito de se reunir com outros médicos para discutir casos, dando início ao hábito presente até hoje na academia que é o de se reunir em sociedades científicas.
A ideia desse projeto nasceu como forma de se trabalhar com uma graduanda no primeiro ano do Bacharelado em Química o processo de construção do conhecimento científico. Numa conversa inicial ela apresenta o discurso de que a homeopatia é uma farsa porque contradiz o conhecimento químico de soluções. Para mostrá-la que o conhecimento científico não é absoluto e “dono da verdade”, propusemos um estudo qualitativo, no âmbito de uma disciplina denominada “técnica de Pesquisa”, para que perceba a importância de outras formas de conhecimento além do conhecimento científico apresentado nos livros didáticos e nas salas de aula. Como lócus de pesquisa, escolhemos o cenário de formação dessa estudante por ser um espaço de fácil acesso e poder lhe indicar que, mesmo considerando a importância da Ciência, seus colegas e professores também respeitam outras formas de conhecimento.Conflitante com o conceito de ciência, a homeopatia, assim como a alquimia, é uma forma terapêutica reconhecida e praticada há séculos. No entanto, ela é desacreditada por muitas pessoas.
A homeopatia é um sistema terapêutico de caráter sistêmico, fundamentado no princípio vitalista e na lei dos semelhantes, postulada por Hipócrates no século IV a.C. Sua prática terapêutica consiste em curar os doentes valendo-se de remédios preparados em diluições infinitesimais e capazes de produzir no homem aparentemente sadio sintomas semelhantes aos da doença que devem curar num paciente específico. (NECKEL, CARNIGAN e CREPALDI, 2010, pág. 83).
A polêmica e controvérsia teórico metodológica tem se mantido como impedimento ao reconhecimento institucional da homeopatia como saber epistemologicamente válido. Embora já haja avanços no percurso da metodologia homeopática, às vezes podem se observar nas pesquisas “sincretismos” epistemológicos para validar a homeopatia (LUZ, 2014, pag.14).
Apesar das dificuldades encontradas no desenvolvimento de pesquisas na área, seja pelos aspectos metodológicos e/ou pela ausência de apoio institucional e financeiro, o conjunto de estudos experimentais e clínicos citados, que fundamentam os pressupostos homeopáticos e confirmam a eficácia e a segurança da terapêutica, é prova inconteste de que “existem evidências científicas em homeopatia”, contrariando o preconceito arraigado à cultura médica, científica e popular (TEIXEIRA,2019)
O preparo do medicamento homeopático baseia-se na multidivisão da substância ativa pelo sistema de dinamização (diluição e sucussão) com materiais inertes, para assim chegar às doses mínimas altamente diluídas com as propriedades do ativo potencializadas.Na homeopatia, ‘sucussão’ é a forma de dinamizar os medicamentos, batendo o frasco, de forma manual ou mecânica, de forma constante, contra um anteparo por 100 vezes ou mais.Químicos não fazem ‘sucussão’. Já a diluição, por sua vez, é uma prática recorrente na atividade do químico que faz isso o tempo todo. O preparo de soluções baseia-se nisso, mas o rigor técnico e matemático é altamente necessário e se baseia em proporções finitas da relação do volume ou massa do solvente (o que dissolve, geralmente a água) com a massa ou quantidade de matéria do soluto (o que é dissolvido, muitas vezes sais). Essa proporção entre a quantidade de solvente e soluto é chamada de concentração. Para maior precisão nesse processo de produção de soluções é comum que os químicos utilizem uma técnica de verificação dessas proporções denominada de padronização das soluções (ANDRADE, NUNES e AGUIAR, 2013).
2.Metodologia dessa pesquisa
Diante deste longo embate entre ciência e pseudociência e os campos de aceitação da homeopatia como tratamento alternativo ao tratamento alopático para diversos problemas como doenças crônicas e situações nas quais a medicina se encontra limitada, surgiu o tema dessa pesquisa de cunho qualitativo que teve o intuito de investigar como químicos, ou seja, um grupo de cientistas, veem esse campo da medicina chamado de homeopatia, no que diz respeito ao preparo de seus medicamentos que tecnicamente são soluções.
A ideia do tema nasceu exatamente da ‘descrença racional’ da aluna, primeira autora, sobre a Homeopatia. No contexto de debate sobre essa temática e diferentes formas de conhecimento, a aluna foi provocada pelos professores a conhecer mais sobre o tema. Daí veio a pergunta de pesquisa: o que pensa a comunidade do seu curso, na grande maioria químicos por formação ou em formação, sobre a homeopatia?
Para conhecer a visão da comunidade do Instituto de Química, alunos, professores e servidores técnico-administrativos, elaboramos um questionário eletrônico que foi disponibilizado à comunidade do Instituto de Química. Por meio de diferentes formas digitais de diálogo, as pessoas foram convidadas a responder o questionário e colaborar com a pesquisa. O público-alvo foi escolhido de forma que os participantes da pesquisa tenham alguma ligação com Ciência.
A pesquisa teve um caráter quali-quantitativo, pois das diferentes questões várias delas solicitava que os participantes apresentassem aspectos relacionados ao seu perfil, tais como categoria (professor, estudante ou servidor técnico-administrativo) gênero, faixa etária, curso ou área de atuação etc. Desta forma a análise dos dados nos permitirá compreender melhor em que medida diferenças de concepções podem ser associadas a outras características pessoais. Neste trabalho apresentamos um recorte com a análise qualitativa de respostas a quatro questões abertas, apresentada por um grupo de participantes: Os professores.
3.Resultados e discussões
Quando o formulário foi interrompido para as respostas 61 pessoas haviam respondido. Deste total foram analisadas as respostas de 16 participantes, que representam 26 % do total de colaboradores dessa pesquisa. Esse subgrupo é formado por docentes do Instituto - IQ da Universidade de Brasília - UnB e estão na faixa etária acima de 30 anos. Desses, 16 respondentes foram mulheres e dez homens, mas não iremos diferenciá-los na análise das respostas.
A primeira pergunta que analisamos foi se o participante acreditava na homeopatia. Nesse grupo, sete participantes responderam que não acreditam, seis disseram que acreditam e três marcaram a opção “mais ou menos”.
Do grupo que marcou que NÃO acredita, a maior parte deles afirmou que tem essa posição com base em ‘estudos científicos que já leu’. No entanto, desse grupo um professor afirmou que algumas vezes se tratou de um problema de saúde fazendo uso de medicamentos da homeopatia, simultaneamente ao uso de medicamentos alopáticos.
Outro professor desse grupo disse que sempre faz isso e outro professor afirmou que considera interessante o uso de medicamentos homeopáticos: ‘No tratamento de sintomas leves de doenças mais específicas’.
Quando solicitados a ‘comentar algo a mais ou fazer alguma observação sobre nosso estudo’ um professor desse grupo afirmou: “Homeopatia é fraude!”. Dos sete docentes que não acreditam na homeopatia e até a consideram fraude, como a fala do docente citado, encontram respaldo em muitos cientistas de renome. Young (2014) assina uma carta intitulada “a farsa da homeopatia”, publicada em uma revista médica do Chile. Em determinado trecho apresenta seu argumento citando o número de Avogadro e as massas molares, conceitos presentes no cotidiano dos professores participantes da pesquisa. “Um simples cálculo, empregando as massas moleculares e o número de Avogadro, mostra que a maioria dos preparados homeopáticos são simplesmente água.”
Três professores responderam que acreditam ‘mais ou menos’, na homeopatia, sendo que dois deles afirmaram que ‘às vezes’, fazem uso de medicamentos homeopáticos. Dois deles utilizam a homeopatia no tratamento do que acreditam ser doenças comuns.
Desse grupo, apenas pouco mais de um terço, ou seja, seis professores responderam que sim. Destes docentes, três marcaram que se baseiam em “informações de profissionais do ramo ou da mídia” para afirmar sua crença. Esta resposta era uma alternativa de múltipla escolha na qual o participante não poderia escolher mais de uma resposta. Uma professora desse grupo afirmou que foi “curada por meio de medicação homeopática”.
Quando solicitados a ‘comentar algo a mais ou fazer alguma observação sobre nosso estudo’ dois professores desse grupo que dizem acreditar na homeopatia afirmaram: “Como em outras situações, é necessário um profissional bem qualificado para que dê certo”; e “Homeopatia deve receber mais atenção”.Sigolo (2012), em seu trabalho sobre representações sociais e homeopatia, apresenta um pouco sobre a trajetória da homeopatia no Brasil e seu processo de legitimação.
[ ]... Esse movimento ocorre por meio da aliança com o positivismo e da luta pela inserção da medicina homeopática nas universidades. Durante o processo, foi importante a construção de representações sobre essa medicina junto ao público leigo, o que ocorreu principalmente por intermédio do debate entre homeopatas e médicos convencionais apresentado em jornais de grande circulação no país na primeira década do século XX (SIGOLO, 2012).
Para a pergunta “você faz ou já fez uso de medicamento homeopático”, dois docentes responderam que já fizeram ou fazem uso, apesar de terem respondido que não acreditam na homeopatia. Os dois docentes têm em comum o fato de recorrerem a homeopatia e a alopatia para tratar a mesma causa. Entretanto divergem quando perguntados “em que situação o medicamento alopático é melhor”. Um disse que sempre é melhor e o outro disse que nunca é melhor.
Dos cinco docentes que disseram acreditar na homeopatia três disseram que o tratamento alopático é melhor para tratar sintomas graves de doenças comuns.
Seria interessante ter opinião por parte dos participantes o que consideram sintomas graves ou ainda que tipo de problemas de saúde a homeopatia resolve bem.
A discussão sobre o caráter científico da homeopatia é fonte de muitos textos e percebe-se que mesmo entre docentes de um Instituto de Química de uma conceituada universidade a questão não é claramente resolvida. Segundo Sanchez-Mendiola (2017), não se pode mais concentrar publicações apenas nos espaços científicos, na literatura, na academia. É muito importante que seja feito um esforço sistematizado para que o conhecimento, obtido por meio de metodologias rigorosas, transcendam para a sociedade, a fim de que, verdadeiramente, se fale sobre uma “sociedade científica”.
Em um trabalho recente Machado, Silva e Fontella (2021), foi pedido aos participantes que indicaram conhecer sobre pseudociência que citassem exemplos, e 77% deles o fizeram. Dentre as mais citadas aparecem Astrologia (39%), Terraplanismo (30%) e Homeopatia (24%).
4.Considerações Finais
Recentemente o mundo enfrentou uma pandemia. O COVID-19 assombrou a população mundial e contabilizou inúmeras perdas sem contar com as sequelas físicas e emocionais para os viventes do que pode ser chamada de pós-pandemia. No Brasil foram mais de 237 milhões de infectados e quase 700 mil mortos, representando uma taxa de mortalidade de quase dois mortos por cada cem pessoas contaminadas, uma das maiores taxas do mundo (gov.br).A discussão sobre o papel da Ciência e as consequências vividas por populações, como o caso da Brasileira que enfrentou a pandemia sendo massacrada por atitudes dos governantes que ridicularizavam a Ciência e tomavam decisões baseadas em fatos contraditoriamente científicos, indicando outros interesses políticos e econômicos. Certamente se o conhecimento científico presente nas vozes dos competentes cientistas brasileiros tivesse guiado os passos dos governantes o COVID-19 teria causado menor impacto e número de vítimas. Que sirva de lição para outros enfrentamentos.
Entretanto é importante e urgente que se discuta o papel da ciência e que, à medida que novas técnicas e terapias surjam, a população seja orientada por pessoas capacitadas cientificamente para se sentirem mais seguras e informadas tecnicamente. Como é o caso da proposta do Ministério da Saúde que em sua página oficial detalha o que são “As Práticas Integrativas e Complementares - PICS”, nas quais a homeopatia se encaixa. Além dela, são apresentadas outras formas de tratamentos que utilizam recursos terapêuticos baseados em conhecimentos tradicionais, voltados para prevenir diversas doenças como a depressão e a hipertensão. Em alguns casos, também podem ser usadas como tratamentos paliativos em algumas doenças crônicas” (gov.br). Não existe orientação por parte do Ministério da Saúde para que as práticas da alopatia e técnicas convencionais de tratamento sejam abandonadas.
Esse trabalho, mais que um estudo aprofundado sobre questões epistemológicas da Ciência e suas relações com a saúde, que são se suma importância, teve como objetivo a iniciação em pesquisa qualitativa de uma futura química.
Nesse sentido, não teve pretensões de propor novas teorias, técnicas ou métodos, mas sim compreender estratégias de pesquisa qualitativa e que diferentes formas de conhecimento podem, e devem, coexistir apesar de suas divergências. Cabe destacar que, apesar de orientadores experientes, o processo de condução da pesquisa foi iniciativa a aluna, principal protagonista deste trabalho.
Como orientadores acadêmicos, consideramos que a formação de jovens cientistas que respeitam outras formas de conhecimento é de suma importância. Por isso, essa formação científico/acadêmica mais crítica e consciente deve ser trabalhada desde o início dos cursos superiores e, se possível, de forma prática e por meio de vivências, ao invés de discursos de professores formadores.
Nesse sentido, nossa pesquisa sinalizou que mesmos entre os cientistas por formação, neste caso Químicos, há um reconhecimento de que outras formas de conhecimento, também tem seu valor quando se fala de saúde pessoal. Que fique claro que estas pessoas não negam os conhecimentos científicos aplicados na área da saúde, mas sim que entendem que outras formas de conhecimento podem contribuir para a saúde em bem-estar físico e psicológico das pessoas. Depois de muito tempo no qual a Ciência foi considerada como a ‘dona da verdade’ o questionamento de filósofos que perguntam “O que é a Ciência afinal?” ainda não tem uma única resposta e indicam que apesar de sua confiabilidade ela não é a única forma de conhecimento que guia as pessoas em diferentes aspectos de nossa sociedade científica e tecnológica, como no caso da saúde.