1.Introdução
Violência é definida pela Organização Mundial da Saúde como "o uso intencional de força física ou poder, ameaçados ou reais, contra si mesmo, contra outra pessoa ou contra um grupo ou comunidade, que resultem ou tenham grande probabilidade de resultar em ferimento, morte, dano psicológico, mau desenvolvimento ou privação" (OMS, 2009, online), embora a inclusão de "uso do poder" em sua definição expanda a compreensão convencional da palavra.
A violência doméstica no âmbito conjugal é particularmente a que vitimiza a mulher e, geralmente as vítimas são agredidas pelos seus familiares mais próximos. Não é um problema exclusivo das sociedades modernas, é um fenômeno que implica em práticas e costumes seculares, que permeia ao longo dos tempos, da tradição, da cultura, do silêncio e do silêncio coagido da maior parte das vítimas que assume uma expressão cada vez mais dramática.
Os agressores mais frequentes das mulheres muitas vezes são seus cônjuges, contudo não se limitam apenas a eles, pois qualquer um que conviva com a vítima e que a trate com desprezo, agressões e privações também é considerado um potencial agressor. Considerar “o lar como um ambiente seguro, de descanso e proteção deveria ser um direito básico garantido, mas na prática ainda é um privilégio de classe e de gênero” (Vieira, Garcia & Maciel, 2020, p. 3).
As situações de violência continuada no âmbito conjugal resultam numa diversidade de consequências e danos físicos, psicológicos, relacionais e nos casos mais graves, poderão conduzir à incapacitação, temporária ou permanente, da vítima ou, mesmo, à sua morte.
A mulher vem conseguindo ampliar o seu espaço nas estruturas sociais, assumindo postos de trabalho e cargos importantes nas empresas (Del Priori, 2001), embora ainda esteja em desvantagem em todas as esferas da sociedade em relação ao sexo oposto (Couto & Saiani, 2021).
A cada ano, mais de um milhão de mulheres são vítimas de violência doméstica no Brasil, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Esse tipo de violência, apesar de sistêmica, tem sido combatido com a defesa do direito das mulheres. A Lei do Feminicídio, por exemplo, sancionada em 2015, colocou a morte de mulheres no rol de crimes hediondos e diminuiu a tolerância nesses casos. Mas, a mais conhecida das ações é a lei “Maria da Penha”.
Este tema, portanto, foi escolhido por ser de grande importância, especialmente pela edição da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06) e por ser a violência doméstica um problema grave e recorrente no Brasil.
Assim, pretende-se identificar e compreender os fatores que influenciam a tomada de decisão da vítima em denunciar atos de violência doméstica. Especificamente pretende-se verificar o conhecimento dos recursos disponíveis à vítima de violência doméstica, bem como analisar se tais recursos influenciam na decisão da vítima denunciar o agressor. Apesar da ideia de violência familiar envolver todos os membros, nesse trabalho pretende-se especificamente falar sobre a violência familiar executada contra mulheres na fase adulta.
2.Lei Maria da Penha: da Origem ao Sistema Jurídico Brasileiro
A Lei n° 11.340/06, mais conhecida como Lei Maria da Penha, dispõe a respeito da criação de mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra mulher; trata também da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. Dispõe ainda a respeito da criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra Mulher, promove alteração no Código Penal e na lei de Execução Penal a respeito da punição da violência contra a mulher (Brasil, 2006).
A Lei nº 11.340/06 foi sancionada em 2006, sendo chamada de Lei Maria da Penha, em homenagem à coragem e à persistência desta na luta por seus direitos. Sua aprovação é resultado de décadas de luta dos movimentos feministas. Maria da Penha Maia Fernandes é uma professora universitária de classe média, que foi casada com um também professor universitário que protagonizou um simbólico caso de violência doméstica contra a mesma (Teles & Melo, 2003).
Como muitas outras mulheres, Maria da Penha denunciou, de forma reiterada, as agressões de que foi vítima. Chegou inclusive a ficar com vergonha de falar que tinha sofrido violência doméstica e pensava que não tinha acontecido nada até ali. Ela acreditava que ele tinha razão de tê-la agredido. Porém, mesmo assim, não se calou. Diante da inércia da justiça, Maria da Penha escreveu um livro, unindo-se ao movimento de mulheres e, como ela mesma fala, não perdeu nenhuma chance de manifestar a sua indignação (Dias, 2012).
A lei traz uma série de medidas para proteger a mulher agredida, que está em situação de agressão, ou cuja vida corre risco, dentre elas estão: a saída do agressor de casa; a proteção dos filhos e o direito de a mulher reaver seus bens e cancelar procurações feitas em nome do agressor; a violência psicológica passa a ser caracterizada também como violência doméstica e a mulher poderá ficar seis meses afastada do trabalho, sem perder o emprego, se for constatada a necessidade de manutenção de sua integridade física ou psicológica (Ribeiro, 2013).
Portanto, a lei Maria da Penha alterou o destino de milhões de mulheres vítimas de violência doméstica e familiar no Brasil. A tragédia pessoal de uma cidadã brasileira, vítima de agressões que deixaram marcas permanentes na alma e no corpo como força motriz fez com que nascesse no ordenamento jurídico nacional a sua mais relevante resposta, que foi a lei que recebeu seu nome. Ratificaram-se os compromissos firmados por tratados e convenções para a luta contra a violência doméstica contra mulher (Bastos, 2013).
3.Método
O método de um estudo consiste no conjunto de ações devidamente sistematizadas que proporcionam alcançar os objetivos, delineando uma trajetória a ser seguida. Em outros termos, a metodologia trata da base para a execução de um trabalho, tendo em vista que é a partir dela que será traçado o caminho que a pesquisa irá percorrer até que se chegue aos resultados.
A pesquisa qualitativa concebe análises mais profundas em relação ao fenômeno que está sendo estudado. Não busca enumerar ou medir os eventos pesquisados, pois, o ponto de partida são questões, ou focos de interesses amplos, que vão se definindo à medida que o estudo se desenvolve.
A abordagem de investigação foi qualitativa, por estar num caminho que possibilita fazer descobertas, encontrar novos significados a respeito do tema estudado, discutir e avaliar alternativas ou confirmar o que já é conhecido, reconhecendo o conhecimento como algo não acabado, ou seja, como uma construção que se faz e se refaz continuamente.
A pesquisa qualitativa é classificada por Merriam (1998) em cinco tipos, pesquisa básica, etnografia, fenomenologia, estudo de caso e grounded theory. Nesse trabalho foi feita uma pesquisa qualitativa básica, pois pretende-se somente descobrir e entender um fenômeno, um processo e visões do mundo das pessoas envolvidas.
Godoi e Balsini (2010), apontam que na pesquisa qualitativa não se busca regularidades, “mas a compreensão dos agentes, daquilo que os levou singularmente a agirem como agiram. Essa empreitada só é possível se os sujeitos forem ouvidos a partir da sua lógica” (p. 91), assim as participantes da pesquisa foram 12 mulheres selecionadas de maneira aleatória, que se identificaram como vítimas de violência doméstica. A solicitação para participar, bem como o objetivo da pesquisa, foi disponibilizada, durante 30 dias nas redes sociais das autoras. A participação foi voluntária e todas foram informadas sobre o objetivo e a pertinência do estudo, bem como que poderiam retirar o seu consentimento a qualquer momento. Foi garantido o total sigilo e informado que os dados recolhidos seriam utilizados, exclusivamente, para fins acadêmicos. Após essas informações, todas as participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Para preservar o anonimato, as falas das entrevistadas foram assinaladas com a letra “E”, seguida pelo número correspondente à ordem de realização da entrevista (E-1, E-2,....E-12).
A entrevista semiestruturada “visa obter do entrevistado o que ele considera os aspetos mais relevantes de determinado problema: as suas descrições de uma situação em estudo” (Richardson, 1999, p. 208). Importa salientar que esse tipo de entrevista “serve de orientação e de baliza para o pesquisador e não de cerceamento da fala dos entrevistados” (Minayo, 2007, p. 264). O guião foi formado por oito perguntas e, devido a situação pandêmica, as entrevistas foram realizadas via online. A transcrição das entrevistas foi feita ao mesmo tempo em que estas foram realizadas.
A investigação qualitativa, com sua natureza fluida e emergente, não permite distinção nítida entre coleta e análise dos dados (Patton, 2002), ou seja, à medida que os dados vão sendo coletados emergem as categorias de análise. Foi utilizada a técnica de análise categorial, que toma em consideração “a totalidade de um texto, passando-o pelo crivo da classificação e do recenseamento, segundo a frequência da presença (ou ausência) de itens de sentido” (Bardin, 2002, p. 36-37). A análise categorial ou categorização foi feita por meio de análise temática, uma técnica de análise de conteúdo que “consiste em descobrir os núcleos de sentido que compõem uma comunicação, cuja presença ou frequência signifiquem alguma coisa para o objeto analítico visado” (Minayo, 2007, p. 316). Foi estabelecida com categoria a priori a “Lei Maria da Penha” e, duas categorias emergiram dos dados, “dependência económica” e “dependência emocional.
Esta pesquisa foi realizada respeitando os princípios da Ética em Pesquisa com Seres Humanos constantes na Declaração de Helsinque e com a Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde.
4.Discussão
Nesta seção são apresentados os resultados mais importantes obtidos nas entrevistas realizadas com mulheres vítimas de violência doméstica. Primeiramente foi questionado sobre o momento da decisão de denunciar as violências sofridas.
Das entrevistadas, quatro mulheres não denunciaram o agressor, uma destas saiu de casa e preferiu não denunciar. As que denunciaram, o fizeram por diferentes motivos.
A traição motivou duas mulheres a fazerem a denúncia, conforme fala de E-3, “após descobrir traição” e E-10, “quando fiquei com os nervos abalados ao descobrir que me traía e que não era aquele relacionamento que merecia”. A traição é um tipo de violência psicológica, expressada na hierarquia do homem sobre a mulher (Santos & More, 2011). A ameaça também pode ser considerada um tipo de violência psicológica, pois o agressor intimida e humilha a vítima (Alarcão, 2002), como mostra a fala de E-4, “Quando as ameaças se tornaram permanentes”.
A violência física também foi motivo para a denúncia, “quando começou a me bater” (E-11). A agressão física na frente dos filhos foi o que deu força para três mulheres, sendo que uma precisou do apoio familiar, “após sofrer muito e ser agredida na frente da minha filha. Após ter coragem e contar para minha família e ter apoio” (E-4), enquanto nas outras falas o motivo é diferente: “Quando vi que estava cada vez mais forte e resolvi sair antes que ele me batesse porque já estava quebrando as coisas na minha frente e da minha filha” (E-5). Abaixo, a fala da E-9 confirma que muitas vezes a vítima não se sente segura em denunciar (Dias, 2012).
Quando começou a afetar meus filhos. Porém, procurava ajuda e não conseguia resolver nada. Foi preciso uma motivação pessoal, individual, sem esperar nada de ninguém. A vontade de se desvencilhar daquilo tudo era grande e vinha há tempos me acompanhando. Mas a decisão e força para realmente pôr um fim, parte da gente mesmo (E-9).
Posteriormente, as entrevistadas foram questionadas sobre as razões da realização da denúncia. Pelo que se constatou, as vítimas não quiseram se estender nas respostas, e foram objetivas, uma destas respondeu só que ‘não’ denunciou, e a (E-1) comentou que “Cheguei ao limite de sofrimento”, já a (E-3) comentou que “A ameaça constante de ficar sem meus filhos”, houve o motivo de ‘vergonha’ (E-4). Uma respondeu sua preocupação com sua filha, “Quando vi que estava cada vez mais forte e resolvi sair antes que ele me batesse porque já estava quebrando as coisas na minha frente e da minha filha” (E-5). No Brasil, assim como em outras partes do mundo, em diferentes culturas e classes sociais, independente de sexo ou etnia, crianças e adolescentes são vítimas cotidianas da violência doméstica, sendo este um fenômeno universal e endêmico (Day et al., 2003). Ou seja, a violência pode se estender aos filhos destes casais.
A fala da E7 foi significativa, pois a mesma afirma que o marido disse “vou te matar e cortar sua barriga com um facão” (E-7).
O fato de existir uma relação de violência contra a mulher e a afetividade entre vítima e agressor, pode estar associado ao sentimento de posse entranhado culturalmente na sociedade como uma herança histórica, haja vista que a mulher era subjugada ao seu esposo inclusive na jurisdição.
Foi necessário também compreender o tempo de violência sofrido e o tempo para a realização da denúncia e/ou separação do agressor, e notou-se que são diversos os motivos. Houve entrevistadas que afirmaram não ter denunciado, como exemplo a E-2: “Não o denunciei por humilhações e opressão, o abandonei e saí no primeiro episódio de violência física”. Porém, algumas falas nos chamam a atenção, como a fala de E-1 “Entre denúncias e separação de fato, foram oito anos. As denúncias tiveram pouco ou nenhum resultado”; a E-3 também sofreu por muito tempo “quatro anos. Sempre era agredida verbalmente e não entendia os motivos das acusações e um dia descobri que me traía com mulheres e financeiramente”; e E-11 conviveu oito longos anos ao lado do agressor.
Cresci dentro do contexto de violência doméstica, vó, mãe e tias sofriam com seus maridos agressivos e abusivos, isso piorava com o consumo de álcool, quando comecei a me relacionar a coisa não foi diferente ou naturalizei a violência e não sabia me posicionar e sair disso, meus pais tiveram que interferir na época para acabar com o relacionamento (E-9).
Uma inovação foi à criação da medida protetiva que trata do distanciamento do agressor da vítima em prol de que ela não corra outros riscos, sendo que o agressor punido se não cumprir a ordem, poderá ter sua prisão decretada (Cunha & Pinto, 2014).
A lei determina que o Estado deve conceder suporte à vítima oferecendo centros de atendimento devidamente especializados, delegacias, casas abrigos, serviços de saúde entre outros. O governo ainda deve promover programas e campanhas contra a violência doméstica e criar centros de reabilitação de agressores (Cunha & Pinto, 2014).
E-1 afirma que recebeu atendimento ‘hospitalar e psicológico’, E-3 comentou que na própria delegacia no momento da denúncia junto a delegada houve a “medida protetiva, acompanhamento de medida com patrulha Maria da Penha, grupo terapêutico, botão do pânico”. A vítima E-9 faz uma declaração chocante, em que disse que houve “Zerooo! Tive que ir atrás de uma advogada. E o pior é ficar mais difícil quando você ganha bem e está mais endividada do que uma mulher que não tem salário. Porque nessas horas eles querem que você banque tudo”. Porém, embora a legislação e a política sejam críticas para a resposta a esse fenômeno, a priorização de intervenções de justiça criminal, que incluem medidas punitivas para perpetradores (por exemplo, sentenças criminais) e medidas de proteção para sobreviventes (por exemplo, medidas cautelares), tem estado sob escrutínio crescente (Santos, 2001). Esses tipos de intervenções podem levar as consequências não intencionais, que resultam em danos às mulheres que devem ajudar.
Consta no regulamento que a mulher não pode tirar a queixa depois de realizá-la, com o objetivo de, portanto, punir o agressor e reabilitá-lo.
Conforme Fernandes (2015), a reabilitação do agressor consiste numa relevante medida uma vez que o problema real da violência contra a mulher está incluído em valores culturais de caráter patriarcalista que põem a mulher na condição de indivíduo inferior e objetificado. Existe, dessa maneira, o sentimento de pose por parte do agressor.
Acerca da eficácia da Lei Maria da Penha no que tange à proteção da mulher contra a violência praticada pelo seu marido e/ou companheiro, duas delas responderam somente que ‘sim’ como a E-5 quando afirmou que “Acho que sim, mas me parece uma “lei inacessível”. Pois quando eu precisei não fui atendida, com isso desisti”; três das entrevistadas responderam não, ou seja, que a referida lei não é eficaz, dentre estas:
Não. Deve existir uma equipe que saiba abordar esse tipo de situação. E onde encontrar? Como você vai confiar em alguém desconhecido que te promete ajuda. Difícil acreditar no que se desconhece. Ainda mais quando você tem uma profissão igual a minha que todos acham que tenho a solução para tudo, até mesmo sobre meu relacionamento (E-7).
Não, porque na primeira vez fiz a denúncia e eles não fizeram nada, apenas assinaram alguns papéis e procuraram minhas roupas, mas nenhum benefício que pudesse me ajudar por abuso físico (E-10).
Neste item, três responderam ainda que a ajuda tivesse sido parcial: “Em parte. Me ajudou um tempo, mas a não renovação da medida protetiva foi uma falha ao meu ver” (E-2). E ao final notou-se na fala da E-8 a importância em se ter a rede de apoio, pois “Sim, mas ela precisa da rede de apoio de acompanhamentos posteriores, para curar dependência emocional” (E-8). E a entrevistada E-6 afirmou que “sinceramente não porque a maioria continua as agressões, certos da impunidade”. As medidas judiciais protetivas, por exemplos são concedidas em caráter de urgência para alcançar a efetividade da Lei Maria da Penha em favor das mulheres agredidas em seu dia-a-dia (Santos, 2001). Na hora do registro de ocorrência à autoridade policial, conforme prevê a Lei nº 11.340/2006, em seu art 19. “[...] as medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas pelo juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida” (Brasil, 2006).
Por fim, as entrevistadas foram levadas a falar sobre se após a primeira situação de violência chegaram a se reconciliar com o parceiro e/ou marido e por que aceitaram a reconciliação, e os motivos foram os mais diversos dentro de uma relação de casal, como por exemplo: filhos, patrimônio, por mudança de comportamento, pressão social e medo; na fala da E-1 “Sim. Várias vezes por acreditar em mudança de comportamentos”; sobre o patrimônio tem-se a fala de E-2 “Me reconciliei na tentativa de reaver meu patrimônio, mas como vi que não tinha mais nada com ele, resolvi dar um basta”; a E-4 disse “Meu relacionamento atual é abusivo, já denunciei, já fiz BO. Creio que pelo medo de recomeçar a essa altura da vida. Acho tarde para mim” (E-4).
Sim, aceitei a reconciliação com meu marido, achei que ia mudar por amor, pelo meu filho. Até hoje estou com ele, mas ainda sofro violência, acho que tenho medo de denunciar novamente (E-6).
Me reconciliei algumas vezes. Por amor. Por tabu religioso (acreditava que tinha que seguir junto até que a morte os separe), por vergonha de estar numa situação pessoal tão trágica (E-7).
Cheguei a encontrar por algumas vezes, porém somente para ele me pagar, em passar as chaves da casa. Ou seja, resolver questões pontuais. Mesmo ele falando que “iria melhorar” eu nunca acreditei, pois, os problemas foram maiores que a felicidade que ele “prometeu”. (E-10).
A maior parte dos agressores de crimes passionais não tem registos criminais, possuindo características de um cidadão trabalhador ou atencioso para com sua prole. Dessa maneira, são vistos pelas instituições legais como sendo improváveis culpados, meramente por inexistir antecedentes criminais ou por estarem incluídos numa posição de prestígio da sociedade.
Os legisladores, ao construir o texto da Lei 11.340, ressaltaram a importância do trabalho realizado com os homens autores de violência e que sua efetivação dependeria de ações conjuntas e articuladas entre o Estado e a Sociedade Civil, conforme dispõe o inciso I do artigo 8º, art.29, inciso V, do art. 35 e art. 45, todos da Lei 11.340/06:
Art. 8º. A política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não-governamentais, tendo por diretrizes: I - a integração operacional do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública com as áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação;
Art. 29. Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher que vierem a ser criados poderão contar com uma equipe de atendimento multidisciplinar, a ser integrada por profissionais especializados nas áreas psicossocial, jurídica e de saúde.
Essa conceção deturpada e romantizada do crime que é disseminada pelas próprias instituições responsabilizadas pela defesa dos direitos das mulheres, acaba constituindo um fator que constrange e provoca a insegurança da vítima para ter vontade de denunciar o crime (Côrtes, 2008).
É relevante frisar que esse ciclo de violência é somente um padrão geral que, em cada caso específico, vai se expressar de maneira diferenciada, onde os próximos incidentes poderão ser mais violentos ainda e se repetir com frequência e intensidade maior, podendo terminar em muitos casos em assassinato (Mizuno, Fraid & Cassab, 2010).
Conforme Jong, Sadala e Tanaka (2008) ao realizar entrevistas junto a mulheres, verificaram que a mulher ao passar pela etapa três (etapa de lua de mel), acha que seu companheiro irá mudar e acaba não fazendo a denúncia. Nessa etapa também é possível perceber que a vitimização do agressor faz a vítima entrar em uma situação de manipulação.
A mulher nessa etapa pode acabar vendo a violência como resultado de suas próprias condutas. Nesse momento, a violência praticada contra ela é, então, invisibilizada. Outra razão para a mulher numa relação afetiva não denunciar seu companheiro/esposo, está associada à dependência financeira.
Para Mizuno, Fraid e Cassab (2010, p, 18) “[...] quanto mais frágil, mais desprotegida e sem recursos é a mulher, mais dependente se apresenta do marido”. Como é o caso da fala da E-4 “Creio que pelo medo de recomeçar a essa altura da vida. Acho tarde para mim”. Isso porque as vítimas em muitas situações não denunciam a agressão do companheiro por não ter recursos financeiros e por estar incluída numa relação de dependência afetiva.
A dificuldade da vítima em se sustentar e sustentar a sua prole faz com que ela continue na relação sem manifestar o que sofre, como foi o caso das entrevistas E-2 e E-3. É também relevante perceber que existe a dificuldade da mulher que sofre agressão conseguir uma vaga no mercado de trabalho, uma vez que em muitos casos a mulher jamais exerceu uma atividade econômica e consequentemente depende economicamente do marido para sua sobrevivência.
Com o advento da Lei Maria da Penha fica impedida, como já dito anteriormente, a retirada do BO realizado, sendo que várias mulheres acabam decidindo pela não denúncia de seus agressores, com medo de um arrependimento futuro e inclusive o medo da reação do agressor. Isso justifica a fala de algumas entrevistadas que afirmaram não ter denunciado como por exemplo a E-2 “Não o denunciei por humilhações e opressão, o abandonei e sai no primeiro episódio de violência física”. A lei impõe que existem medidas protetivas e ainda centros especializados no atendimento às mulheres, mas, mesmo assim, diversas mulheres não sentem confiança com a instituição como uma saída para as violências sofridas (Jong, Sadala & Tanaka, 2008).
As analisar as razões das mulheres não denunciarem foi percebido que as mulheres não denunciam por existir uma dependência econômica e afetiva de seu parceiro, por sentir medo das novas eventuais agressões, por ausência de confiança nas instituições públicas responsáveis, haja vista que estas carregam vestígios da ideologia patriarcalista.
É percebido ainda que múltiplas vítimas não tendem a receber suporte familiar para denunciar o agressor. Isso se dá por causa da invisibilização da violência e sustentação da integridade da família onde a denúncia é considerada como fator que fere a integridade familiar, deixando de lado o fato de que o crime praticado já constitui uma violação. Enfim, neste contexto apresentado a mulher influenciada pelo seu meio, acaba dificultando a garantia dos seus direitos frente ao fenômeno da violência.
5.Considerações Finais
Na evolução histórica dos direitos humanos, o sexo feminino esteve sempre subalterno em relação aos interesses dos direitos do sexo masculino, desta forma os movimentos feministas travaram enfrentamento na busca da equidade de gênero. Esta equidade também é ignorada no âmbito judicial, pois não é raro julgamentos de lides, em que as partes são de sexos opostos, com certo declínio às crenças e valores do sistema patriarcal.
A justiça está conservando e alimentando toda uma cultura milenar, o que não deve mais prosperar, pois as mulheres estão de igual para igual com os homens em todos os setores da sociedade, contudo ainda são tratadas como objetos pelo gênero masculino.
Diante da Lei Maria Penha, uma legislação que tipifica penalmente os maus-tratos domésticos do sexo masculino em face do sexo feminino, ainda se busca mudanças no íntimo dos administradores da justiça, pois eles ao exercerem suas funções jurisdicionais colocam suas experiências culturais paternalistas no campo do julgado, sendo ferido assim o princípio da imparcialidade.
A eficácia da Lei Maria Penha está intimamente ligada à efetividade dos direitos humanos das mulheres, que não aceitam ser o segundo sexo, ou seja, sua condição de inferioridade, dependência e subordinação. Talvez seja por este motivo que uma lei específica como a Lei Maria da Penha, não consegue ser eficaz frente a este fenômeno cultural, que é a violência contra as mulheres, tendo em vista que os magistrados não sinalizam em suas sentenças para este tipo de violência de género, não as coibindo.
Pode-se concluir que a maioria das mulheres entrevistadas realizou as denúncias, porém, diante da dependência financeira e emocional retiraram a queixa contra seus respetivos parceiros. Os fatores que implicam em não denunciar estão relacionados, principalmente, pela dependência financeira e emocional, e por acreditarem que a lei não é eficaz devido à falta de qualificação dos profissionais envolvidos no atendimento das mesmas.
Portanto, globalmente, a desigualdade entre homens e mulheres se manifesta de várias maneiras. Em particular, a desigualdade de gênero aumenta o risco de perpetração masculina de violência contra a mulher, especialmente violência por parceiro íntimo, entre outros fatores de risco. A violência e o medo da violência afetam significativamente a saúde e o bem-estar das mulheres. As amplas consequências para a saúde incluem: lesão física, dor crônica, distúrbios ginecológicos, gravidez indesejada, depressão, abuso de álcool e substâncias, transtorno de estresse pós-traumático, suicídio e morte por feminicídio.