1.Introdução
A pesquisa qualitativa com mulheres idosas militantes feministas apresenta uma abordagem importante para compreender a trajetória histórica de construção do movimento feministas brasileiro. O uso de narrativas (auto)biográficas possibilita uma imersão nas histórias de vida dessas mulheres, permitindo conhecer seus cotidianos, suas lutas e suas conquistas. Existem poucas pesquisas produzidas sobre as mulheres idosas feministas no Brasil. Essa escrita se refere a uma pesquisa que teve como objetivo contribuir para a construção da história do movimento feminista brasileiro, incorporando memórias de sete mulheres idosas feministas, com idades entre 60 e 81 anos. Ao ouvir as narrativas dessas mulheres, foi possível compreender as barreiras enfrentadas por elas em suas trajetórias de vida, bem como as formas de resistência e de luta contra a opressão de gênero e contra a desigualdade social. As histórias revelaram a força e a coragem dessas mulheres, que não mediram esforços para lutar por sua liberdade e por uma sociedade mais justa e igualitária. Trazer à tona a população idosa nada mais édo que buscar uma aproximação com processos sociais fundamentais na construção do pensamento atual. Reconhecendo a importância dessa parcela da população, que contribuiu na constituição de diversas gerações contemporâneas, pensou-se ser fundamental nos apropriarmos dessas construções historicamente colocadas, que não apenas fazem parte de um passado, mas que possuem reflexos no presente. Para a pesquisadora Alda Motta,
No geral, a velhice, no decorrer do século XX, foi se tornando mais e mais uma categoria social distinta, embora guardando referência (explicitada ou não) a decadência, perdas e invalidez. Apesar da interferência, razoavelmente bem sucedida, da recategorização como “terceira idade”, fica esta contraposta pela tendência, bem século XXI, da busca incansável pela beleza jovem. (Motta, 2012, p. 102).
Portanto,em um tempo que a tecnologia domina nossas vidas cotidianas e em uma época que o passado e tudo que se alinha a isso éconsiderado ultrapassado e é abandonado (inclusive pela academia), a intenção dessa investigação foi resgatar memórias, dando visibilidade às trajetórias de vida de mulheres que, de alguma forma, marcaram sua época e fizeram história, especialmente no movimento social de cunho feminista.Além disso, é importante afirmar que a pesquisa qualitativa permitiu a compreensão da interseccionalidade de opressões, ou seja, se abordou diversos marcadores sociais como idade, gênero, raça e outros, de forma que se procurou identificar seus entrelaçamentos na configuração das desigualdades sociais enfrentadas por essas mulheres. Para isso utilizamos o conceito de interseccionalidade, que teve origem da obra de Kimberlé Creshaw (2002), conhecida expoente do feminismo negro norte-americano. Pesquisadoras negras (Creshaw, 2002; Collins, 2015) vêm desenvolvendo esse conceito, de forma que tem sidouma importante ferramenta no desvelamento de diversas opressões sofridas pelas mulheres, especialmente pelas mulheres negras. A interseccionalidade é vista como um referencial teórico, mas também é tratado como um método importante de investigação qualitativa (Akotirene, 2018). As narrativas (auto)biográficas também foram uma forma de valorizar a memória e a história dessas mulheres, que muitas vezes são desconsideradas na sociedade.
Ao compartilhar suas histórias, essas mulheres tornam-se sujeitas de suas próprias narrativas, recuperando sua voz e sua dignidade. A pesquisa qualitativa com mulheres idosas militantes feministas é uma contribuição importante para a compreensão da luta feminista e da realidade dessas mulheres. Seus resultados são relevantes não apenas para a academia, mas também para a sociedade como um todo, pois possibilitam a reflexão sobre as desigualdades sociais e a importância da luta pela igualdade de direitos para todas as mulheres.Com esta proposta, a pesquisa se colocou na tentativa de trazer uma contribuição a esse debate, buscando resgatar as construções de gênero da população idosa, a partir, da aproximação da produção acadêmica advinda da teoria feminista com os dos estudos sobre auto(biografias) como representações da concretude das experiências de vida dos/as envolvidas. Partimos da compreensão que as representações sociais são um conhecimento produzido socialmente e compartilhado por um grupo, com o objetivo prático de entender o mundo para poder se mover nele (Jodelet, 1984). Dessa forma, o estudo buscou uma aproximação com as biografias de mulheres ativistas feministas na cidade de Pelotas, no sul do Brasil, compreendendo essas mulheres como precursoras no fortalecimento político e democrático do país em suas ações locais. As mulheres participantes deste estudo são reconhecidas publicamente como mulheres que contribuíram para a criação de espaços institucionalizados de militância política feminista na cidade. Dessa forma, entendemos que os movimentos sociais se constroem como espaços importantes, especialmente no que diz respeito a sua dimensão política. Assim, o objetivo central da investigação foi conhecer o processo de construção do movimento feminista na cidade de Pelotas, ao sul do Brasil, a partir das trajetórias de vida e de militância das mulheres que protagonizaram essa construção, tendo como aspectos fundamentais, conforme Josso,
apresentar o conhecimento da formação de si por meio de recordações relativas a atividades, contextos e situações, encontros, pessoas significativas, acontecimentos pessoais, sociais, culturais ou políticos; recordar-se de si para si mesmo, numa partilha com outros, bem como na diferenciação e na identificação com as recordações dos outros; revisitar o conhecimento deste “si” por meio do que diz dele a narrativa considerada no seu movimento geral e nas suas dinâmicas, nas suas periodizações, nos seus momentos-charneira, a fim de extrair, a partir daí, as características identitárias e as projeções de si, as valorizações que orientaram as opções (Josso, 2004, p.68-69).
2.Referenciais teóricos-metodológicos
Construiu-se a metodologia da investigação a partir de referenciais da pesquisa (auto) biográfica, com destaque para as narrativas como um dos principais instrumentos de coleta de informações, bem como para a memória como elemento fundante de pesquisa desta natureza, de forma que a memória das mulheres aflorassem nas narrativas autobiográficas de cada uma das participantes, reconstruindo-se e capturando-se, assim, a significação das trajetórias de vida das mulheres participantes da investigação.
Sabemos que a pesquisa (auto) biográfica pode utilizar diversas fontes, tais como narrativas, história oral, fotos, vídeos, filmes, diários, documentos em geral, que tem na memória sua principal fonte. Reconhece-se na memória o principal componente da narradora com o qual a pesquisadora trabalha no resgate das trajetórias de vida. Conforme Abrahão, “trabalhar com narrativas não é simplesmente recolher objetos ou condutas diferentes, em contextos narrativos diversos, mas, sim, participar na elaboração de uma memória que quer transmitir-se a partir da demanda de um investigador”(2003, p.85).No que se refere ao processo de reconstrução da memória na pesquisa biográfica Abrahão (2003), refletindo sobre sua própria experiência com este tipo de pesquisas, destaca três aspectos: primeiramente, uma memória é não intencionalmente seletiva. Com ela, isto aconteceu em situações em que as narradoras guardaram na memória fatos, pessoas, relações e/ou situações a que tinham atribuído significado relevante no momento em que os vivenciaram, ou, então, com narradoras com idosas. Estas lembravam-se de fatos de sua juventude, mas tinham enorme dificuldade de narrar fatos e/ou acontecimentos mais adiantados no tempo. Este é um elemento importante para quem faz pesquisa com pessoas idosas, pois relativizar essa memória e reconhecer seu caráter de seletividade (embora não sendo intencional) faz parte do compromisso ético com a metodologia aplicada. Um segundo aspecto destacado por Abrahão (2003), enquanto expressão dessa memória seletiva, ocorre quando a participante narradora intencionalmente seleciona a informação, ou para não lembrar fatos desagradáveis que podem trazer memórias de situações de grande sofrimento, ou para não declarar situações que acham melhor que não venham àpúblico. Nesta pesquisa também ocorreram situações dessa natureza, quando narradoras pedem que não seja divulgado tal narrativa, por exemplo. São elementos presentes em pesquisas desse tipo. A outra expressão de reconstrutividade memorial, segundo Abrahão (2003) fica evidente quando as narradoras parecem ressignificar o acontecimento que narravam no próprio momento do relato. As narrativas apresentam as aprendizagens experienciais que servem de material para compreender os processos, tanto de formação, como de conhecimento e aprendizagem. Na perspectiva da pesquisa-formação, esses três elementos se constituem nas três grandes etapas do trabalho biográfico (Josso, 2004, p.61). Entendemos que por meio de pesquisas que envolvem concepções participantes temos desafios de ordem política, pois trata-se de compreender com grupos pesquisados como as relações sociais se incorporaram nas instituições, legitimando-as; e também de visibilizar tensões geradas na sociedade, procurando compreender como elas deslegitimam as regras e representações que apresentam como “naturais”os grupos sociais constituídos. É nesse momento que a compreensão sobre as trajetórias de trabalho é incorporada no sentido de que as pessoas do grupo ao narrarem sobre seus processos identificam sua trajetória formadora. O processo de escolha das mulheres participantes da investigação teve como critério o fato de possuírem importantes trajetórias de vida, por se tratarem de mulheres atuantes, com caminhadas significativas e marcantes na luta por direitos das mulheres, reconhecidas na comunidade local e regional.
Todas as participantes foram indicadas pelo Conselho Municipal dos Direitos da Mulher.
Isso não significa que estejamos valorizando apenas trajetórias de destaque e menosprezando as trajetórias de vida de pessoas comuns, muito pelo contrário, minha experiência como pesquisadora feminista trouxe o aprendizado de valorizar os saberes e trajetórias de todas as pessoas. As ciências humanas e sociais há tempos têm ressignificado sua própria trajetória, que por muito tempo valorizou apenas as vidas dos ‘iluminados’, desenvolvendo metodologias que trazem à tona as vidas cotidianas descortinando, dessa forma, aspectos que estavam invisibilizados pela academia e, portanto, pela produção científica em geral, e também no campo das ciências humanas e sociais. Ferrarotti (2014), conhecido sociólogo italiano, já na década de 80 do século passado destacava esse aspecto, quando fazia a defesa do método biográfico nas ciências sociais. Para ele, o método biográfico não era apenas mais um método de pesquisa qualitativo, mas era mais do que isso, quando defendia que essa proposta metodológica percebia o/a pesquisador/a como ser que não conhece, que não sabe e que só pode vir a conhecer em contato com as pessoas, com seus saberes, com suas experiências... Essa compreensão quebra com os pilares da pesquisa hegemônica, quando assume a presença do/a pesquisador/ no campo investigativo, negando sua neutralidade/ausência. Essa perspectiva não admite um sujeito observador e um objeto observado, mas nos leva a compreender outra via de conhecimento, um outro paradigma, onde o conhecimento é algo compartilhado, construído na coletividade e na relação entre sujeitos. Jovchelovitch e Bauer (2002, p. 110) apresentam algumas características das narrativas em relação com a realidade e a representação dessa realidade: a) a narrativa privilegia a realidade do que é experienciado pelos narradores: a realidade de uma narrativa refere-se ao que éreal para o/a contador/a de história; b) as narrativas não copiam a realidade do mundo fora delas: elas propõem representações/interpretações particulares do mundo; c) as narrativas não estão abertas àcomprovação e não podem ser simplesmente julgadas como verdadeiras ou falsas: elas expressam a verdade de um ponto de vista, de uma situação específica no tempo e no espaço; d) as narrativas estão sempre inseridas no contexto sócio-histórico. Uma voz específica em uma narrativa somente pode ser compreendida em relação a um contexto mais amplo: nenhuma narrativa pode ser formulada sem tal sistema de referentes. Delory-Momberger (2012) constrói uma perspectiva que nos parece ser bem adequada para se pensar o potencial das narrativas e como elas se constituem e se situam. Para ela, através das narrativas as pessoas tornam-se os próprios personagens de suas vidas e dão a elas uma história, o que ela chama de operação de configuração. Dessa forma,
É a narrativa que constitui não somente o meio, mas o lugar dessa operação: a vida tem lugar na narrativa e tem lugar como história. O que dá forma ao vivido e à experiência dos homens são as narrativas que eles fazem desse vivido e dessa experiência. A narrativa não é, então, apenas o sistema simbólico de que os homens dispõem para exprimir o sentimento de sua existência: o narrativo é o lugar onde a existência humana toma forma, onde ela se elabora e se experimenta sob a forma de uma história. (Delory-Momberger, 2012, p. 40).
Portanto, nessa perspectiva metodológica, o processo de investigação não trata simplesmente de descrever os elementos que compõem o objeto da pesquisa, mas de apreendê-los historicamente em seus processos, numa totalidade que não se reduz a uma descrição de sua composição, mas se refere a um todo significativo que apreende o objeto como expressão de sujeitos humanos em determinadas condições históricas. Por isso, talvez seja adequado termos cautela na utilização do termo ‘objeto’, compreendendo que ele estácarregado de significação que o coloca em situação de inércia e neutralidade. A seguir apresentamos alguns resultados da pesquisa, em suas respectivas categorias de análise. Embora se considerasse que a experiência com o campo de estudos do projeto pudessem já adiantar algumas categorias, elas não foram elaboradas a priori, mas foram sendo construídas ao longo da pesquisa, a partir das memórias que foram aflorando nas narrativas, fato comum com pesquisas qualitativas que fazem uso de metodologias biográficas. Importante afirmar também que se considerou as categorias sempre de forma interseccional. Isso fez com que as mesmas não se construíram de forma isoladas e separadas entre si. Muito pelo contrário, as categorias se interconectam e entrelaçam a todo momento. Portanto, a separação que foi feita aqui ocorreu apenas para fins de organização didática do material, mas na leitura é possível perceber conexões entre as categorias. As categorias de análise da pesquisa foram: a) infância, b) família, c) maternidade e conjugalidade; d) formação e escolaridade; e) trabalho; f) envelhecimento; e ainda; g) militância social. Pelo limite de espaço não será possível desenvolver aqui as analises feitas de cada categoria, mas optou-se por apresentar algumas de forma mais destacada, como trabalho e militância social.
3.Trabalho: feminização das profissões
Importante destacar que todas as mulheres participantes da pesquisa desenvolveram uma profissão e atuaram durante a vida no mercado de trabalho formal, atualmente estando aposentadas. Ao todo a pesquisa contou com a participação de sete mulheres, com formações variadas e que atuaram em diversas profissões e, portanto, abrangendo diversas áreas de conhecimento. O que possuem em comum éa importante atuação social em prol das lutas pelos direitos das mulheres. Cabe destacar aqui que, como se tratam de mulheres idosas, estas começaram suas atuações coletivas em um período em que as mulheres não eram incentivadas a participarem de movimentos sociais, nem sequer a desenvolverem uma carreira no mercado de trabalho formal, pois cabia a elas a atuação limitada aos espaços domésticos, em função do domínio do patriarcado, que separava os ambientes público e privado, alimentando a l gica do marido provedor e da esposa “do lar”. As pesquisadoras feministas Helena Hirata e Daniéle Kergoat aprofundam esse tema no conceito de divisão sexual do trabalho. Para Kergoat (2005) a divisão sexual do trabalho é:
[...] a forma de divisão do trabalho social decorrente das relações sociais de sexo; essa forma é adaptada historicamente e a cada sociedade. Ela tem por características a destinação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a apreensão pelos homens das funções de forte valor social agregado (políticas, religiosas, militares etc). (kergoat, 2003, p.55-56).
Em texto recente, Hirata e Kergoat retomam este conceito e reafirmam seu significado dizendo que a divisão sexual do trabalho “tem por característica a atribuição prioritária das mulheres à esfera reprodutiva enquanto os homens são designados à esfera produtiva. Paralelamente, os homens captam as funções de forte valor social agregado -políticas, religiosas, militares etc.”(2020, p.23). Assim, as autoras reafirmam a importância da categoria trabalho nas análises sobre a sociedade contemporânea, mas problematizam a sua compreensão, quando denotam a necessidade de reconceituação dessa categoria, pois enquanto reconhecem a centralidade do trabalho, afirmam a importância de trabalho incorporar o trabalho reprodutivo e o trabalho doméstico. A economista espanhola Cristina Carrasco também problematiza o trabalho, defendendo a incorporação do trabalho reprodutivo nos estudos sobre o trabalho e nas estatísticas e análises econômicas. Critica o modelo do capitalismo econômico, que historicamente invisibiliza o trabalho doméstico, realizado majoritariamente por mulheres. Carrasco (2003) denuncia essa realidade e responde epistemologicamente com o paradigma da “sustentabilidade da vida humana”, onde propõe a construção de uma nova lógica no mundo do trabalho, que ressignifique os papéis tradicionalmente assumidos por homens e mulheres, sustentados historicamente pela lógica patriarcal -incorporando o trabalho reprodutivo na economia e na vida social. Algo que apareceu durante a pesquisa e que não tinha sido elaborado como critério e não se imaginava que iria acontecer, foi o fato de que surpreendeu a grande maioria de professoras entre as mulheres idosas participantes, totalizando cinco mulheres do total de sete participantes. Trata-se de professoras de diferentes áreas de conhecimento e que atuaram em diferentes níveis de ensino, desde os anos iniciais do ensino fundamental até a pós-graduação, o que trouxe uma grande hegemonia da profissão docente na investigação. Impossível se pensar na docência sem se perceber a feminização desta profissão, historicamente constituída enquanto espaço profissional de mulheres, especialmente nas séries iniciais. Estudos nos mostram que a docência foi uma possibilidade de emancipação para as mulheres, permitindo sua inserção no mercado de trabalho. Se, de um lado poderíamos fazer uma crítica sobre sua inserção nesta profissão estar vinculada a infância e aos cuidados com as crianças, reforçando os papéis tradicionais de gênero, por outro lado podemos dizer que foi o espaço concedido e aceito socialmente para as mulheres, e isso pode ter ajudado a sua presença no mercado de trabalho formal. Conforme Hypólito,
O processo de feminização do magistério é um processo que coincide com o processo de transformação do trabalho docente em trabalho assalariado, controlado pelo Estado, submetido a formas de controle externas ao próprio processo de trabalho, retirando das professoras e dos professores formas autônomas de controle sobre o que e como ensinar. O processo de racionalização e parcelamento do trabalho docente é simultâneo à transformação desse trabalho em trabalho feminino (2020, p.88).
Portanto, as relações entre o masculino e o feminino na docência devem ser entendidas enquanto relações mais amplas da sociedade capitalista, assentadas no patriarcado. Importante dizer que as outras profissões das participantes também se constituíram em profissões muito marcadas pelo feminino, sendo profissões ligadas ao cuidado, como a de assistente social e a de empregada doméstica, constituídas até hoje como profissões majoritariamente ocupadas por mulheres. No entanto, no que se refere às mulheres participantes dessa investigação, os depoimentos mostraram importantes trajetória sem outros espaços sociais, para além das atuações profissionais. Elas atuaram em diversos espaços de organização coletiva, como sindicatos, comunidades religiosas, partidos políticos e movimento estudantil. Trata-se de mulheres que se aproximaram das pautas feministas a partir de suas atuações nestes espaços, reconhecendo neles a origem de suas trajetórias no movimento feminista. Rosa (61 anos) foi outra participante da pesquisa. Mulher negra e pobre, atualmente aposentada, trabalhou como empregada doméstica e foi liderança sindical, sendo fundadora do Sindicato das Empregadas Domésticas da cidade. De origem quilombola , nasceu e vivei sua infância em uma comunidade quilombola, localizada em área rural do município. Sua narrativa mostrou sua trajetória formativa, na luta pelos direitos humanos, na temática feminista e incorporando a negritude. Com baixo nível de escolaridade, teve sua formação social vinculada ao envolvimento com comunidade eclesiais de base da Igreja Católica, tendo forte envolvimento na Pastoral Operária, onde contribuiu para a fundação de uma Pastoral que agregasse a comunidade negra. Também tem forte envolvimento com a atuação em militância partidária, sendo filiada ao Partido dos Trabalhadores (PT) desde a década de 80. Com forte atuação sindical e política, chegou a ser candidata pelo partido diversas vezes e em diversos cargos, desde candidatura àdeputada estadual, federal e também candidata a vereadora em diversas ocasiões, não tendo sido eleita nenhuma vez, mas sempre recebendo boa votação. O conceito de interseccionalidade nos ajuda a perceber as especificidades da trajetória de Rosa, em comparação com as demais. Única participante negra, foi a que teve uma trajetória de maior dificuldade, vivendo uma vida de muitas privações, que lhe impediram de continuar nos estudos. A falta de formação aliada à dificuldade financeira acabou lhe levando a única profissão possível na época, a de ser empregada doméstica. Isso não a impediu do desenvolvimento de uma consciência crítica aguçada e do exercício de uma vida de muita militância.
4.Militância no movimento social
Em nível nacional, podemos dizer que o movimento feminista brasileiro teve suas origens mais presentes a partir da década de 60, especialmente assumindo a pauta de luta pela democracia e combate à ditadura militar. As pautas mais amplas do feminismo a nível internacional de certa forma também chegavam até aqui, mas não de forma muito contundente e que sustentassem um movimento social mais amplo. Na juventude das mulheres participantes, o Brasil enfrentava tempos difíceis de ditadura mililitar, autoritarismo político e ampliação da violência, especialmente contra as mulheres. Em tempos que não havia proteção legal -como a Lei Maria da Penha -e que as leis em vigor na época ainda legitimavam casos de violência doméstica -como os crimes em “defensa da honra”, reforçando as relações de poder advindas do patriarcado, as pautas feministas no país estavam mais vinculadas a retomada da democracia e ao combate a violência2. Pelotas é um município situado ao sul do estado do Rio Grande do Sul / Brasil, sendo a quarta cidade mais populosa do estado, contando com 343.132 habitantes em 2020. O município apresenta elevado índice de violência contra a mulher3, se comparado a outras cidades do mesmo estado. Sobre Pelotas, também precisamos ponderar sobre outra faceta queatinge principalmente as mulheres: em pesquisa realizada pelo pesquisador Francisco Vargas (2017), foi constatada uma grande situação de vulnerabilidade no trabalho, em que totalizaram mais de 62 mil pessoas no trabalho precário ou informal. Neste contexto, as dificuldades de uma cidade socialmente desigual levam a criação de espaços de enfrentamento, e é neste espaço, enquanto movimento social, que as mulheres deste estudo se inserem. Pelotas presenciou um feminicídio (assassinato, utilizando-se a nomenclatura da época) que marcou a trajetória da abordagem do tema da violência doméstica na cidade e alavancou fortemente a construção do movimento feminista, criando um rede forte de atuação das mulheres do município. No ano de 1988 a servidora municipal e estudante da UFPel Luciety Mascarenhas Saraiva foi assassinada pelo ex-namorado. Foi comprovado que o feminicídio foi premeditado. Esse acontecimento teve grande repercussão na época e gerou grande revolta popular na cidade, especialmente nas mulheres. Pensamos que este fato tenha sido um grande impulsionador da construção de um movimento coletivo de mulheres que, em um primeiro momento, lutou para que fosse feita justiça neste caso, mas que manteve um fôlego que repercutiu na ampliação das pautas das mulheres e que fundou o movimento feminista na cidade. Para isso teve papel fundamental a mãe de Luciety, uma mulher chamada Jurema Mascarenhas Saraiva, que se organizou coletivamente com outras mulheres para lutar pela condenação do assassino da filha.
Esse episódio foi fundamental para a organização coletiva do grupo que mais tarde fundaria o Grupo Autônomo de Mulheres de Pelotas -GAMP, grupo feminista mais antigo e duradouro da cidade. Jurema se inseriu e atuou na construção do movimento feminista na cidade. Lutou até o fim da vida para que nenhuma mãe chorasse como ela a morte de uma filha por falta de um espaço adequado onde pudesse se abrigar e se proteger de homens violentos e assassinos.
Nas narrativas das participantes, foi possível perceber que a grande pauta mobilizadora na época era a luta contra a ditadura militar. Nos mais diversos espaços de atuação política delas (movimento estudantil, sindicatos, igrejas, partidos políticos) era essa a pauta principal. Até porque os movimentos sociais em que elas estavam atuando eram de inspiração marxista e de caráter mais ortodoxo, no qual o contexto a luta de classes e o conflito contra a burguesia e a ditadura que a sustentava era a prioridade.
Uma das participantes, que aqui denominamos Nara, começou sua militância política e social quando cursava a Universidade, no curso de Direito. Afirmou que foi na sua formação de estudante, especialmente na Universidade, que aflorou para a militância partidária, primeiro no movimento estudantil e, logo em seguida, em um partido político. Sobre esse contexto, Nara disse:
Ingressei na universidade em 79, na década de 70... A nossa preocupação era o combate à ditadura instaurada no Brasil. A pauta do partido, do grupo com o qual eu militava, era uma pauta generalista, no sentido de... bom... nós temos que garantir a democracia... nós tínhamos aquele processo... e questionamentos. Eu me afeiçoei àtese de que era importante, naquele momento, lutar pela restauração da democracia. A luta feminista, ela veio num segundo momento, quando era possível... Era paralela, por assim dizer. Mas, a preocupação não era com o corpo, não era discutir a sexualidade, não era a questão do aborto, no grupo pelo qual eu lutava. [...] Eu era do PCB4, era clandestino. Trabalhei de forma clandestina, assim. Lutei de forma clandestina. Tinha láo meu codinome, me reunia com companheiras [Nara, 2018].
Beatriz, outra participante da pesquisa, professora de história aposentada da rede pública de ensino e militante do Partido dos Trabalhadores (PT) e do Grupo Autônomo de Mulheres de Pelotas (GAMP), sobre sua ingresso na militância feminista, disse o seguinte: “Eu não comecei militando no movimento de mulheres diretamente. Eu comecei mais nas Comunidades Eclesiais de Base da Igreja, especificamente na Juventude Operária Católica”[Beatriz, 2019]. Dessa forma, é possível afirmar que, no que se refere a este grupo de mulheres e, acreditamos que possamos expandir essa reflexão para as mulheres feministas de sua geração, a aproximação com as pautas feministas aconteceram a partir de suas vinculações em outros espaços sociais e políticos, que não tinham necessariamente a temática de gênero como pauta principal. As participantes também se posicionaram sobre o feminismo contemporâneo, em comparação as suas juventudes. Uma das professoras participantes, chamada Ana, disse que
esse processo de agora é completamente diferente, de mais liberdade, é muito bom, e eu vejo que as redes sociais predominam mas tem muita superficialidade nesse processo, isso é uma questão minha assim, eu acho que tem coisas que é modismo... mas tem outras coisas que são muito interessantes, eu acho que o movimento feminista tem mais ganhos hoje, até em função desse lado positivo das redes sociais, mas acho ao mesmo tempo tem um lado negativo, pois não há mais tanto engajamento político [Ana, 2017].
De forma geral, as participantes demonstraram certas preocupações com o contexto do movimento feminista atual, mas reconhecendo também diversos aspectos positivos, especialmente sobre o uso e o alcance das redes sociais.
5.Considerações Finais
Em conclusão, a pesquisa qualitativa com mulheres idosas militantes feministas é uma forma de reconhecer e valorizar a contribuição dessas mulheres para a luta pela igualdade de gênero e para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Suas narrativas (auto)biográficas são uma fonte valiosa de conhecimento e inspiração para a continuidade da luta feminista. A pesquisa também evidenciou a importância da luta feminista para essas mulheres, que percebem nela uma forma de garantir seus direitos e de construir um mundo melhor para as gerações futuras. Elas têm uma visão clara da necessidade de continuar lutando pelo fim da opressão e da desigualdade, e suas narrativas inspiram e motivam outras mulheres a seguir essa luta. Em resumo, a pesquisa qualitativa com mulheres idosas militantes feministas, utilizando narrativas (auto)biográficas, foi uma oportunidade valiosa para conhecer a vivência e a luta dessas mulheres e para entender a importância da luta feminista para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Suas histórias são um testemunho da força e da coragem dessas mulheres e servem como inspiração para a continuidade da luta pelos direitos das mulheres.