1. Introdução
A violência motivada pelo preconceito ou ódio homofóbico/transfóbico afeta, atualmente, uma parte significativa da população da União Europeia, tendo repercussões, não só sobre as suas vítimas diretas e respetivas comunidades, mas também sobre a sociedade (APAV, 2018). Esta realidade se agrava quando tratamos de grupos vulnerabilizados, a exemplo da população de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Intersexo - LGBTI que tem sido alvo de diversas violências, a exemplo dos dados do questionário europeu levado a cabo pela Agência Europeia de Direitos Fundamentais que em 2012 inquiriu mais de 93.000 LGBTI em toda a União Europeia e revelou que quase metade dos respondentes se sentiram discriminados ou ameaçados pela sua OIEC (Jamel, 2018). Para além desta situação existe ainda um alto índice de subnotificações, como a carência de mapeamentos e divulgações destes dados pelas autoridades governamentais e instituições de segurança pública e justiça (Borrillo, 2010; Menezes, 2017, 2018, 2019, 2021; APAV, 2018, ILGA, 2020). A Comissão Europeia reafirma esta realidade quando destaca que:
Discrimination against LGBTIQ people persists throughout the EU. For several LGBTIQ people in the EU, it is still unsafe to show affection publicly, to be open about their sexual orientation, gender identity, gender expression and sex characteristics (be it at home or at work), to simply be themselves without feeling to be threatened. An important number of LGBTIQ people are also at risk of poverty and social exclusion. Not all feel safe to report verbal abuses and physical violence to the police. (European Commission, 2020, p. 5)
É importante sinalizar que existe uma significativa invisibilidade e dados oficiais de casos de violência e crimes de ódio com teor homofóbicos e transfóbicos em vários países do mundo (Brasil, 2015). Em Portugal esta realidade agrava-se quando percebemos que os dados referentes aos crimes de ódio homofóbicos e/ou transfóbicos são escassos, demostrando uma significativa postura negligente das autoridades competentes (governo e instituições do Sistema de Justiça e pelas Forças de Segurança Pública) em relação a este processo de notificação, monitorização e divulgação destes dados (ECRI, 2018, p.18). A Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância (ECRI) reafirma esta situação ao destacar que:
A justiça só produz estatísticas sobre o discurso de ódio se forem registados mais de três casos por ano, um limiar que nunca foi excedido nos últimos cinco anos. As estatísticas da Direção-Geral da Política de Justiça contêm 19 casos de discriminação em razão de raça ou religião para 2015 (2014: 19, 2013: 12; 2012: 6; 2011: 0). As estatísticas publicadas pelo Relatório de Crimes de Ódio em Portugal (ODIHR) só contêm dados para 2014, ano em que a polícia registou 21 casos, incluindo casos de discurso de ódio e discriminação. Para os delitos que não a discriminação racial (artigo 240.º do Código Penal), a polícia não regista uma eventual motivação racista, homofóbica ou transfóbica (artigo 240.º do Código Penal). O Alto Comissariado para as Migrações - ACM e a Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial - CICDR não publicam estatísticas específicas sobre o discurso de ódio. (ECRI, 2018, p. 18)
O problema com os dados de violência e crimes de ódio com motivações homofóbicas e/ou transfóbicas em Portugal, agrava-se quando analisamos as estatísticas do sistema de justiça português, que não permite saber o número de inquéritos abertos por crimes de ódio ou de arguidos condenados pelos mesmos.
Isto porque nos ilícitos que tenham como motivação a discriminação racial, religiosa ou de outro tipo, essa motivação, em princípio, apresenta-se como agravante e não como Natureza do Crime e/ou Tipificação da Violência. Nos últimos quatro anos por exemplo, uma pequena parte dos casos registados no sistema de justiça português integram o ilícito de Discriminação e incitamento ao ódio e à violência, ao qual foram abertos 161 inquéritos em quatro anos, destes, apenas três deram origem a acusação. Deste modo, os números do Ministério da Justiça mostram que, além de haver poucas acusações, as condenações são raras (Oliveira, 2020) e esta realidade está diretamente ligada ao processo de notificação, investigação e sentenças judiciais destes casos, o que apontam para o ciclo de violência alimentada pelos fenómenos da Subnotificação, Revitimização e da Impunidade destes casos. Os referidos fenómenos contribuem para a perpetração da violência contra a diversidade sexual e de género em diversos momentos, desde a resistência e o medo das vítimas de denunciar, a ausência de mecanismos legislativos e/ou instrumentos oficiais que possibilitem a especificação da motivação destes crimes enquanto homofóbicos e/ou transfóbicos nos registos oficiais. Uma vez que, a ausência de campos específicos nos Autos de Denúncias e Autos de Notícias que especifique a motivação/tipificação destes crimes dificulta o mapeamento, identificação e estratificação destes casos pelas autoridades competentes.
Considerando toda essa realidade, este estudo, através de uma metodologia específica, utilizada internacionalmente1, realiza de forma qualitativa e quantitativa pela primeira vez o mapeamento e identificação destes casos nos sistemas das forças de segurança pública e justiça em Portugal, comprovando que o problema destes dados não estão apenas na subnotificação destes casos, como também no processo de notificação e arquivamento destas denúncias pelo Estado português que dificulta o mapeamento, estratificação e posterior publicação destes dados.
2. Procedimentos Metodológicos
Trata-se de estudo descritivo de métodos misto conforme Crewell (2007) qualitativo e quantitativo, utilizando -se de análise documental como principal instrumento de levantamento de dados.
De acordo com Cellard (2008) Gil (2010) e Lakatos & Marconi (2003), a análise documental se caracteriza como um procedimento sistemático para a revisão ou avaliação de documentos, exigindo-se que os dados sejam examinados e interpretados, a fim de se obter significado, ganhar entendimento e desenvolver conhecimento empírico.
Esta investigação percorreu um exaustivo processo de produção de dados documentais, a partir da base do Sistema de Informação Criminal - SIC2 da Polícia Judiciaria PJ. O primeiro desafio centrou-se na ausência de campos específicos dos documentos oficiais de denúncias que possibilitassem a identificação da motivação/natureza dos fatos relacionados a situações de homofobia e transfobia, além da falta de dados que especificassem características das vítimas que pudessem contribuir para a identificação dos casos - a exemplo da OIEC. O procedimento inicial objetivou mapear todas as denúncias que continham motivações de caráter homofóbico ou transfóbico nos relatos dos fatos (histórico) dos autos de notícias e denúncias como demais documentos de registos de queixas-crimes mediante a utilização de palavras-chave com termos comumente usados para produzir discriminação e incitamento ao ódio e à violência em decorrência da OIEC3. É importante ressaltar que todo procedimento de levantamento de dados no SIC foi realizado pela própria PJ, uma vez que o acesso ao SIC é restrito aos profissionais das forças de segurança pública e justiça e considerando ainda a necessidade de garantir o sigilo e confidencialidade de dados pessoais previstos no Regulamento Geral de Proteção de Dados - RGPD4.
O processo de mapeamentos e identificação dos casos foi realizado da seguinte forma: 1- A PJ introduzia a palavra chave no SIC, o Sistema identificava todos os documentos de denúncias com a referida palavra no corpo da discrição dos factos/históricos e/ou narrativa das denúncias; 2- Eram realizadas leituras dos documentos para averiguar se a referida queixa-crime possui como motivação a homofobia e/ou transfobia, descartando todos os documentos que não possuía esta especificidade; 3- Ao identificar os casos a PJ encaminhava os NUIPC com a informação da cidade e comarca onde o processo criminal pertencia para solicitação de posterior autorização de consulta processual aos magistrados responsáveis pela última sentença deferida. Todo este procedimento identificou 33 Inquéritos pertencentes a 13 cidades e 20 Comarcas do MP em Portugal.
O procedimento de autorizações e levantamento de dados ocorreu entre janeiro de 2020 e dezembro de 2022. A maior parte dos Inquéritos Criminais identificados pertencem as comarcas da região norte do país, 14 (42%) casos, entre estes 05 do DIAP de Braga, 04 do Porto e regiões distritais, (DIAP do Porto 02, Gondomar, 01, Paredes 01); Viana do Castelo 02, Vila Real 02, e 01 do DIAP de Chaves.
A Região Centro aparece em segundo lugar com 10 (30%) casos, (DIAP de Aveiro 03, Águeda 01, Estarreja 01), 02 em Leiria (DIAP de Caldas da Rainha), 01 em Coimbra, 01 em Guarda 01 (DIAP de Celorico da Beira) e 01 em Santarém. Em terceiro lugar temos a área metropolitana de Lisboa com 05 casos (15%), (DIAP de Setúbal 02, Loures 01, Montijo 01, Cascais 01) e por fim as Regiões Autónomas das Ilhas com 04 casos, (12%), 03 na Madeira (DIAP de Funchal), 01 nos Açores (DIAP de Angra do Heroísmo). Finalizado o processo de solicitação de autorizações para a consulta dos 33 Inquéritos Criminais, foi autorizada a consulta de 295, que consiste no universo de análise deste artigo.
Seguida das autorizações para consulta dos 29 Inquéritos Criminais nos DIAPs, foi realizado o processo de levantamento dos documentos em lócus, posterior processo de tabulação de dados qualitativos (com recorte nas discrições dos fatos/narrativas das denúncias) e quantitativos (utilizando o Microsoft Excel 2019, para tabulação de dados). Todo o procedimento de análise, exploração do material (criação de categorias) e tratamento dos seus resultados, foi realizado com o método de análise de conteúdo de Bardin (2016), que define-se como o conjunto de técnicas de análises de comunicações, visando obter, através de procedimentos sistemáticos e objetivos de descrições dos conteúdos das mensagens, indicadores e significados (quantitativos ou não), manifestos e latentes, presentes no material recolhido, que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/receção das variáveis depreendidas nestas mensagens. A construção das categorias utilizou-se a modalidade categoria temática de Bardin (2016), a mesma “consiste em descobrir os 'núcleos de sentido' que compõem a comunicação e cuja presença ou frequência de aparição pode significar alguma coisa para o objetivo analítico escolhido” (p. 135). As análises qualitativas sustentaram a construção de categorias utilizando as informações presentes nas discrições dos factos nos referidos documentos. É importante destacar que o processo de tratamento dos resultados da investigação, especificou seu quantitativo por ano, natureza/tipificação criminal e/ou motivação dos fatos denunciados a luz do enquadramento jurídico português.
2.1. Crimes de ódio e “Invisibilidade”
Entre os 29 casos analisados 06 (21%) foram denunciados em 2015, 09 (31%) em 2016, 04 (14%) em 2017, 03 (10%) no ano de 2018, 04 (14%) em 2019 e 03 (10%) em 2020. Entre os 29 casos, 21 (73%) foram notificados através de Autos de Denúncias e 03 (10%) Autos de Notícias, 02 (7%) registadas através de informação de serviços de Piquete da PJ, 03 (10%) via e-mail, (MP, PJ).
Deste modo, a maioria dos casos (73%) os sujeitos denunciantes (vítima e não vítimas), oficializaram pessoalmente as suas queixas, em (7%) dos casos a autoridade policial oficializa as denúncias através do contato com os factos, ou pelas informações recebidas por telefone e/ou pessoalmente, nos serviços de piquete da PJ (10%), o mesmo percentual para casos enviados para o MP, e PJ via e-mail. Relativamente aos órgãos de Denúncias, a sua maioria 14 (48,3%), foram oficializadas na PJ, 08 (27,6%) na PSP, 05 (17,2%) na GNR, 02 MP (6,9%).
Entre os 29 casos foi possível identificarmos a Tipificação/Natureza das queixas-crimes registadas nos autos de denúncias/notícias em 24 documentos, os demais 05 casos não foram registados nas autoridades competentes através de autos, o que impossibilita a contabilização desta variável, pela ausência destas informações nos respetivos documentos de denúncias. No que se refere aos 24 casos com identificação da tipificação criminal registados pelas autoridades competentes no ato da denúncia, 13 (54%) dos casos apresentam 01 tipificação criminal, 10 (42%) destacam 02 e 01 (4%) enfatiza 03.
Os casos com 01 Motivação/Natureza, encontramos a Difamação 03 (13%) como tipificação mais presente, seguidos da Ameaça 02 (8%), Crime Contra a Reserva da Vida Privada 02 (8%) e Falsidade Informática 02 (8%), logo após temos 01 (4%) Abuso Sexual de Crianças, 01 (4%) Acesso Ilícito Através de Meio Informático, 01 (4%) Discriminação Racial ou Religiosa e 01 (4%) Devassa da Vida Privada.
Nos casos que disponibilizaram 02 tipologias criminais, temos 01 caso em cada documento equivalentes a (4%), com situações de: Ameaça e Coação, Difamação e Importunação Sexual, Crime Contra a Liberdade e Autodeterminação Sexual/Importunação Sexual, Crime Contra a Reserva da Vida Privada/Crime Contra a Honra, Crime Contra a Liberdade e a Autodeterminação Sexual, Crime Contra a Reserva da Vida Privada/Crime Contra a Liberdade Pessoal, Devassa por Meio Informático/Burla Informática e nas Comunicações, Difamação e 02 casos (8%) de Falsidade Informática. O único caso que apresentou 03 motivações apresenta a presença do Crime Contra o Património em Geral/ Acesso Ilegítimo e Difamação, equivalente a (4%) do seu total.
Os dados relativos às especificações das Tipificações das queixas-crimes, oficializados através dos documentos de denúncias, disponibilizam informações relativas ao enquadramento jurídico dos crimes, conforme o CP. Relativamente à legislação utilizada como fundamento jurídico, descrito nos Autos de Denúncia/Notícias, 20 documentos apresentaram entre 02 e 04 artigos do CP e 04 não consta esta informação. Entre os casos que apresentam artigos do CP, a sua maioria, 10 (50%) apresentam dois artigos cada, 09 (45%) identificam três e 01(5%) contém quatro artigos.
Os artigos do CP identificados nos autos são: 48º, 68º, 75º, 76º, 77º, 145º, 246º, 247º, dentre estes, o artigo 246º e 75º aparecem em 13 casos cada, 68º em 09 casos, 247º em 6 casos, 76º e 77º em 04 casos cada e o 48º e 145º em 01 caso cada.
Para melhor analisarmos a questão das legislações sobre os crimes de ódio em Portugal faz-se necessário compreendermos o enquadramento jurídico destes crimes no país. A legislação portuguesa considera determinados comportamentos discriminatórios como sendo crimes e outros como sendo contraordenações, consoante a sua gravidade.
A discriminação, enquanto crime, ocorre quando se verifica a constituição de organizações ou a divulgação ao público de materiais que incitem à discriminação (artigo 240.º do Código Penal) ou quando estamos perante crimes de ódio. A discriminação, enquanto contraordenação, ocorre quando uma pessoa ou grupo de pessoas LGBTI+ são impedidas de exercer os seus direitos relacionados com o acesso a bens e serviços, ao emprego e formação profissional, ao ensino, ao sistema de saúde públicos e privados, à habitação, à justiça, à segurança e proteção, entre outros (APAV, 2021).
Em Portugal, o ordenamento jurídico não possui, atualmente, uma definição clara para os designados “crimes de ódio”, encontrando-se o seu âmbito e pressupostos repartidos por várias disposições existentes no Código Penal, o que, para além de dificultar o seu enquadramento legal, concorre para o surgimento de lacunas. Ou seja, não existe legislação específica. Quando se comprova a sua motivação em quaisquer tipos de crime, é atribuído a pena um agravamento da mesma, considerando a situação da discriminação contra a orientação sexual (desde 2007) e a identidade de género (desde 2013). Isto se aplica a atos de violência direta e a atos que incitem à violência ou ao ódio (Perry e Franey, 2019). Os crimes que possuem como agravantes penais as motivações preconceituosas e discriminatórias no CP são: o Homicídio qualificado - Art.º 131 e 132.º, n. º2, al. f); § Ofensa à integridade física qualificada Artº 143º, 144º, 145.º, n.º 1, al. a) ou c) e n.º 2, al. f); § Ameaça agravada - Art.º 153.º, 155.º, n.º 1, al. e) e 132.º, n.º 2, al. f); e § Coação agravada - Art.º 154.º, 155.º, n.º 1, al. e) e 132.º, n.º 2, al. f).
Além dos agravamentos penais, o crime de discriminação e incitamento ao ódio e à violência é direcionado para o Art.º 240º, com efeito, este artigo tem um âmbito muito específico, uma vez que a sua aplicação depende do preenchimento de requisitos. Assim sendo, uma parte das ocorrências que se reportam aos designados “crimes de ódio” acabam por ser enquadrados em diferentes tipologias criminais, descritas anteriormente, porém, de forma explícita, a discriminação é apenas condenada especificamente em três preceitos do Código Penal: no artigo 240º, por qualificação, na alínea f) do n.º 2 do artigo 132º e no n.º 2 do artigo 145º, o que tem se apresentado como insuficiente na abordagem destas questões.
Os enquadramentos jurídicos disponíveis, na maioria dos documentos analisados, não correspondem aos artigos do CP direcionados aos crimes com agravantes penais por discriminação, violência e/ou incitação ao ódio, apenas 01 documento cita o artigo 145º do CP que corresponde ao reconhecimento sobre a agravante penal de caráter homofóbico e/ou transfóbico correspondente ao crime de Coação é referenciado nos autos. Todos os demais artigos, referenciados nas denúncias, não contemplam o enquadramento jurídico de crimes de ódio em Portugal: Substituição da multa por trabalho (Art.º 48º); Efeito da proibição e da suspensão do exercício de funções (68º); Pressupostos (75º); Efeitos (76º); Regras da punição do Concurso (77º); Incapacidades (246º); Bigamia (247º). Toda esta conjuntura, além de apontar a necessidade de aprofundamentos sobre a referida temática, faz-nos questionar o poder de alcance e de utilização do atual enquadramento jurídico direcionados para os crimes de incitação e de ódio pelas autoridades competentes em Portugal. É indispensável analisarmos a fragilidade legislativa que os crimes de ódio e incitação ao ódio possui em Portugal, uma vez que, para além da sua restrição legislativa específica, em que apenas o 240º do CP faz menção direta a este tipo de crime, o mesmo artigo não é referenciado em nenhuma denúncia analisada nesta investigação.
As fragilidades legislativas dos crimes de ódio em Portugal já foram citadas no relatório da Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância (ECRI), do Conselho da Europa sobre Portugal, publicado a 2 de outubro de 2018 e no parecer da APAV, datado de fevereiro de 2020, onde esta associação sinaliza, precisamente, a referida lacuna, procurando demonstrar as insuficiências das atuais previsões penais para o combate aos crimes de ódio (APAV, 2018, 2020). Reconhecendo estas lacunas legislativas que dificultam o mapeamento e identificação destes crimes, o novo Plano Nacional de Combate ao Racismo e à Discriminação (2021-2025), do governo português, anunciou a revisão do artigo 240º em linha com os instrumentos vinculativos internacionais de que Portugal é parte. A revisão objetiva alargar a lista de áreas protegidas ao abrigo da disposição, pelo que todo este processo vem sendo preparado junto ao Ministério da Justiça.
Deste modo, é possível percebermos que a “invisibilidade” dos dados relativamente aos crimes de ódio com motivações homofóbicas e/ou transfóbicas em Portugal para além dos fenómenos da subnotificação, revitimização e impunidade destes casos, advém de outros fatores que dificultam o aparecimento destes dados para a sociedade, a exemplo das lacunas legislativas, das fragilidades dos instrumentos de registro destes crimes nas Forças de Segurança Pública e no MP e da carência de formação\capacitação deste sujeitos no trato destas especificidades. O referido cenário é identificado nas discrições dos fatos dos crimes analisados nesta investigação, uma vez que, após a leitura e análise dos relatos dos factos, a natureza\motivação das situações de violência apresenta-se enquanto homofóbica aparecem em 27 (93,1%) casos, transfóbica em 01 (3,4%) e homofóbica e transfóbica em 01 (3,4%), realidade apurada em alguns exemplos dos fragmentos a seguir:
[…] Devido à minha orientação sexual, tenho sido vítima de ameaças através de perfis falsos de Instagram, desde junho. Sou bissexual não assumido, e desde junho que alguém me anda a mandar mensagens para os meus pais e para a minha família, e ontem ameaçaram mandar mensagem para o clube onde jogo, caso não desse 3000 Euros à pessoa que me anda a ameaçar. Fiquei com medo de que o clube soubesse e isso pudesse pôr em causa o meu futuro profissional, e num ato de estupidez, dei os 3000 euros. (Caso nº 29/2020)
[…] Importa referir que (o ofendido) é um aluno de ensino especial, recentemente esteve a cumprir o estágio no bar dos alunos na escola, o qual foi obrigado abandonar, porque os suspeitos quando ali entravam proferiam em voz alta que não queriam ser atendidos pelo “paneleiro”, expressões estas que o perturbavam e envergonhavam na presença da população escolar, informou ainda que por várias vezes foi ameaçado de agressão. (Caso nº 24/2019)
[…] As ameaças proferidas são provenientes de grupo auto titulado como? (nome do grupo), o qual diz defender as ideias NAZIS. Este grupo, tem vindo a ameaçar, escrevendo, passo a citar? VAMOS ACABAR COM TODOS OS TRAVÉSTIS DE (nome da cidade), OS GAYS E LÉSBICAS? As ameaças podem ser vistas por todo o visitante aquele sítio, constrangendo todos aqueles que são visados, inclusive o e instalando um clima de medo. (Caso nº 10/2016)
Como podemos analisar nos exemplos dos fragmentos da discrição dos fatos oficializados, a homofobia e/ou a transfobia consistem na motivação central destas violências perpetradas contra suas vítimas, sendo indiscutível não reconhecer essa especificidade nos referidos casos, porém, da forma que estão referenciados no enquadramento jurídico e na tipificação destes casos nos documentos de denúncias, estes dados estão “invisíveis” para estatísticas destes crimes no país, não pela sua ausência mas pela própria negligencia do Estado no processo de notificação, identificação e estratificação destes casos, ou seja, este cenário impossibilita o levantamento estatístico destes casos e consequentemente a justificativa quantitativa necessária destes fatos para fundamentação de novas políticas públicas voltadas a prevenção e ao combate a homofobia e a transfobia na sociedade portuguesa. Deste modo, de acordo com Borrilo (2014), a forma que o Estado produz as estatísticas sobre os crimes de ódio com motivações homofóbicas e transfóbicas já se configura como um tipo de discriminação, apontando uma certa banalização do tema e omissão enquanto entidade responsável em monitorar e combater este tipo de violência na sociedade.
Desta maneira, o autor defende a importância de formar policiais e um sistema policial qualificado para lidar com as ocorrências de violência contra a diversidade sexual e de género, sendo necessária também a construção de uma política estatística relevante que possibilite uma maior visibilidade a estes tipos de violências enquanto estratégia de prevenção e enfrentamento.
3. Considerações Finais
A invisibilidade dos crimes de ódio com motivações homofóbicas e transfóbicas aponta a necessidade de uma revisão legislativa sobre esta matéria em Portugal, como de uma restruturação em todo processo de notificação, registo e levantamento de dados destes crimes no país. Faz-se necessário uma alteração legislativa no que se refere aos crimes de ódio contemplando uma maior abrangência no CP, e consequentemente uma alteração nos documentos de denúncias, especificando sua motivação: homofobia, e/ou transfobia, como da sua tipificação legislativa. É importante destacar ainda a necessidade de formações continuas as todos os profissionais das Forças de Segurança Pública e Justiça sobre esta matéria como forma de prevenir e combater a violência homofóbica e transfóbica e fortalecer a capacidade de identificar, registar e reconhecer estas motivações nos documentos oficiais de denúncias.
É preciso salientar que este estudo possui limitações no que se refere ao procedimento de levantamento de dados para a referida investigação como relativamente ao ordenamento jurídico relativamente aos crimes de ódio em Portugal que não dispõe atualmente de uma definição clara, não permitindo a criação e utilização de instrumentos que possibilitem seu reconhecimento e identificação dentro do sistema de segurança pública e de justiça português.
É mister ressaltar que os casos aqui analisados não representam o número exato de crimes de ódio denunciados em Portugal entre 2015-2020.
Este contexto é justificado pelas diversas variáveis que limitam o levantamento estatístico dos mesmos, além dos fatores que fogem do objetivo geral deste estudo, nomeadamente: (I) as fontes de busca e filtragem dos casos são limitadas, devido a ausência de monitoramento, investigação e levantamentos estatísticos dos referidos casos, o que dificulta sua visibilidade na sociedade, para além da ausência de campos específicos nos documentos que facilitem o processo de busca e filtragem destes crimes; (II) os fenômenos de subnotificação, revitimização e impunidade dos referidos casos constituem uma realidade presente nas situações de violências com este tipo de motivações, de maneira que tal contexto dificulta o aumento de denúncias e a possibilidade de realizar mais análises sobre o citado fenômeno na sociedade; (III) Existem outras fontes de denuncias para além das Forças de Segurança Públicas e Justiça como as denuncias das Organizações Não Governamentais- ONG; (IV) Todo processo de mapeamento e identificação dos casos foram realizados pela PJ, restringindo-se a sua interpretação dos fatos sobre os referidos fenómenos da homofobia e transfobia, como do recorte realizado pela PJ neste procedimento (casos investigados pela PJ a pedido do MP); V) a fonte de busca utilizada para o levantamento dos dados, “palavras-chave” foi fundamental para este mapeamento, porém, limitada, uma vez que o número de casos pode ser alterado com a inserção ou exclusão de palavras como fonte de pesquisa nos históricos dos documentos;
Considerando-se as referidas variáveis, os dados aqui expostos representam apenas a ponta de um iceberg em relação ao índice de crimes de ódio homofóbicos e transfóbicos noticiados em Portugal, razão pela qual se carece de um número maior de investimentos em investigações e políticas públicas de prevenção e enfrentamento dos referidos tipos de violências na sociedade.