Desde a entrada de Portugal nas Comunidades Europeias que a posição dos Açores se alterou sensivelmente. A autonomia regional que se estabelecera em 1976, numa lógica atlântica, tomou uma dimensão mais europeia a partir dos anos 90. Quando Portugal negociou o Tratado de Adesão à então Comunidade Económica Europeia (CEE), a Região Autónoma dos Açores (RAA) não pretendeu nenhum estatuto separado como o fizeram as Ilhas Faroé quando a Dinamarca aderiu, ou as Ilhas Canárias durante o processo de entrada de Espanha. Deste modo, com a adesão de Portugal à União Europeia (UE), o destino dos Açores ficou mais ligado ao continente europeu do que nunca. Os Açores, centradamente norte-atlânticos até 1986, depois da entrada de Portugal na CEE, começaram a integrar-se nos órgãos, nas políticas e nas regras europeias, embora mantendo laços especiais com os Estados Unidos da América no âmbito militar e da cooperação tecnocientífica (Ferreira, 2011).
A relação entre os Açores e a UE tem vindo a sofrer uma evolução constante, num sentido claramente positivo. Quer através de ação direta dos Açores, quer por intermédio de outras entidades, como a CRPM ou o Comité das Regiões, aquela Região Autónoma tem vindo a revelar-se fundamental no seio da UE, seja no quadro de português ou das próprias regiões ultraperiféricas (RUP).
No futuro, os Açores tanto poderão ser um teatro de articulação euro-atlântico como um teatro de repartição de missões científicas, tecnológicas e militares. Nas palavras de Medeiros Ferreira (2011), “o atlantismo de ontem já não é o atlantismo de hoje”.
Evolução do Estatuto de Região Ultraperiférica
Política Regional e as suas Origens
Os tratados fundadores não atribuem particular relevância à região, sendo a posição central o Estado soberano. Inicialmente, o processo de construção da Europa foi principalmente uma questão de Estados; não uma questão insular. Foi na década de 1970, por força do alargamento das Comunidades Europeias e, depois, da adoção da Política Regional Europeia que emergiram as questões insulares na agenda europeia (Amaral, 2022). Hoje, constata-se que a região assume um papel ativo e dinâmico.
As regiões consolidaram competências e, consequentemente, poder na evolução da própria UE, tendo decorrido também da descentralização política de alguns dos seus Estados-membros, como é o caso de Portugal. A crise do Estado como único nível de governo capaz de resolver todos os problemas que afetam a sociedade acelerou o fenómeno da regionalização. O mapa da Europa alterou-se, sendo que a Europa dos Estados primava pela simplicidade, ao passo que o da “Europa das Regiões” se releva complexo (Amaral, 2014).
Em 1967, foi criada a Direção Geral do Desenvolvimento Regional - DG-XVI (hoje DG Política Regional), entidade que define a política regional europeia; em 1975, foi criado o Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional, cujo objetivo era fortalecer a coesão económica e social na UE colmatando os desequilíbrios entre as regiões. Porém, foi principalmente em 1986 que se deu um dos maiores passos para a definição da política regional a nível europeu com a adesão de Portugal e Espanha às Comunidades.
O desenvolvimento do projeto europeu e a crescente atenção das instituições comunitárias alargou-se a outras questões, tornando-se os órgãos de poder local e regional imprescindíveis. A política regional foi incluída nos Tratados através do Ato Único Europeu, em 1986. Poucos anos mais tarde, em 1992, o Tratado de Maastricht refletiu a singularidade da região como “entidade dotada de participação no processo de tomada de decisão” (Valente, 2015, p. 48), pelo que foi criado o Comité das Regiões. Com o Tratado de Lisboa, em 2009, o grau de participação das regiões a nível europeu ganhou força, em especial as regiões ultraperiféricas. Neste contexto, importa citar,
As Regiões dispõem de condições para se apresentarem e viverem a sua condição de agentes autónomos: participando nos processos de decisão da União Europeia e dispondo de condições para serem elas a proceder à adequação do quadro normativo geral da União às condições e às necessidades específicas que apresentam. Parece estar a cumprir-se, nos nossos dias, a velha aspiração de uma Europa das Regiões (Amaral, 2012).
O Comité das Regiões, ainda que não beneficie de poder legislativo, surgiu como um meio para as regiões se expressarem, sendo atualmente um meio de ligação entre os poderes regionais e europeus no exato sentido em que se constitui como uma plataforma através da qual os responsáveis políticos regionais da União Europeia são capazes de colocar assuntos do seu interesse na agenda europeia (Fonseca, 2018). Torna-se claro que as regiões possuem uma vantagem: maior proximidade aos cidadãos; algo que, segundo se constitui como um “marco individualizador de diversidade” (Valente, 2011, p. 8).
Ultraperiferia: Origem e Evolução
O conceito de ultraperiferia e o seu lugar nos Tratados são relativamente recentes, embora o seu embrião estivesse já no seio da União. Antes, sublinhe-se que a adesão de Portugal e de Espanha à Europa Comunitária atribuiu uma nova dimensão geopolítica ao processo de integração europeia. Por um lado, Portugal adotou uma via autonomista face aos Açores e à Madeira decorrente do processo de democratização na década de 1970; por outro lado, Espanha tornou-se num Estado multirregional, composta por dezassete (17) comunidades autónomas com estatutos autonómicos. Focando essencialmente em Portugal, não obstante constituir-se como um Estado unitário, respeita os princípios autonómicos dos poderes locais e a descentralização democrática e administração pública. Os arquipélagos dos Açores e da Madeira são regiões autónomas dotadas de estatutos políticos e administrativos e de órgãos de governo que lhe são próprios: assembleia regional (poder legislativo) e governo regional (poder executivo).
Ora, as regiões fazem lobby junto da Europa comunitária, numa estratégia concertada iniciada em 1973 com a criação da Conferência das Regiões Periféricas Marítimas (CRPM) composta pelas regiões dos Estados-membros e dos que se encontravam em processo de adesão.
O conceito de ultraperiferia foi consagrado devido à ação dos governos regionais dos Açores e da Madeira, liderados outrora por João Bosco Mota Amaral e Alberto João Jardim, respetivamente, em coordenação com o Governo da República Portuguesa. Patrick Guillaumin (2000, p. 108) atribui a Mota Amaral a utilização, pela primeira vez, o termo “ultraperiféricas”, em outubro de 1987, em sede de Assembleia-geral da CRPM, na ilha da Reunião. Posteriormente, em 1988, Alberto João Jardim convidou todos os seus colegas das RUP para uma sessão de trabalho para discutir questões de interesse comum, surgindo desta feita o grupo de Regiões Ultraperiféricas da UE - hoje Conferência dos Presidentes das Regiões Ultraperiféricas (Fonseca, 2018).
Importa referir que desde logo se assumiu que as RUP enfrentavam problemas, pelo que foi discutido o projeto do programa próprio de ações específicas para fazer face ao afastamento e à insularidade dos departamentos franceses ultramarinos (POSEIDOM) nas instâncias comunitárias, aprovado em 1989. Ainda, com a reforma dos Fundos Estruturais, aquelas regiões foram classificadas com o objetivo 1, no âmbito da Política Regional, que designa todas as zonas com atraso em termos de desenvolvimento. Posteriormente, a pedido de Portugal e de Espanha, a Comissão propôs ao Conselho dois novos programas: o POSEIMA, dedicado aos Açores e à Madeira, e o POSEICAN, respeitante às Canárias. No seu conjunto, parece correto afirmar que as RUP são únicas por beneficiarem de três programas: POSEI, Fundos Estruturais e Políticas Comuns (Espínola & Silveira, 2010). Os POSEI foram, de facto, programas inovadores na medida em que tinham por objetivo corresponder às necessidades das RUP face ao impacto da entrada em vigor das normas do mercado interno.
1992 foi um ano fundamental no reconhecimento dos problemas estruturais das RUP, derivados das condições insulares e do afastamento em relação aos grandes centros. Tais problemas foram consagrados, por proposta pela França, designadamente na Declaração nº 26, no Tratado de Maastricht. Inscrito nos Tratados o reconhecimento da necessidade de adotar medidas específicas em relação aos territórios espanhol, franceses e portugueses, a evolução do estatuto de ultraperiferia foi natural, estando hoje consagrado juridicamente no artigo 349º (e 355º) do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (Jornal Oficial da União Europeia, 2016, p. 195).
A inclusão da atenção às RUP nos Tratados evidencia o reconhecimento da União Europeia em adotar medidas específicas para os territórios em questão, numa lógica de coesão com os restantes. A decisão em criar um estatuto específico para as RUP baseou-se «nos princípios da igualdade e da proporcionalidade, que permitem um tratamento diferenciado tendo em conta a situação distinta dessas regiões». Assim, a UE passou a poder “adaptar regras Comunitárias de modo que aqueles que vivem nas RUP possam desfrutar das mesmas oportunidades daqueles que vivem no resto da UE” (Lὅrincz, 2011, p. 6).
A importância da consagração de um estatuto para as RUP foi igualmente defendida por Michel Barnier, antigo Comissário Europeu para a Política Regional, tendo declarado que a política de coesão não era só uma questão de equilíbrio económico, mas também um assunto político e, acima de tudo, “(…) de solidariedade e cooperação entre Estados e regiões” (Fonseca, 2018, p. 14). Também Henri Malosse, antigo Presidente do Conselho Económico e Social Europeu, em 2017, em Ponta Delgada, declarou que os Açores e as restantes RUP já não devem ser encarados enquanto territórios ultraperiféricos, dado a sua localização lhes dar uma importância renovada no século XXI (Fonseca, 2018). Importa registar que o conceito de ultraperiferia deve ser entendido como um processo evolutivo.
Finalmente, destaque para o facto de se assistir ao crescimento de organismos de cooperação regional, envolvendo particularmente regiões dotadas de autonomia política, as designadas Regiões Legislativas, tanto a nível legislativo como executivo. Algo intimamente ligado ao princípio de subsidiariedade. Em bom rigor, aquele princípio veio trazer uma nova dinâmica à organização política territorial dos Estados a partir de meados do século XX, e a sua aplicação está diretamente relacionada com a construção do projeto europeu,
A integração europeia não é mais do que a aplicação do princípio da subsidiariedade ao nível internacional, dado constituir um objetivo de organização relacional dos seus Estados baseada na decisão e execução de políticas que implicam a ação de todos os níveis do poder político (Castro, 2022, p. 41).
Inscrito o princípio de subsidiariedade no artigo 5º, n.º 3, do Tratado da União Europeia (e nº 2 do Protocolo), este é considerado fundamental para a tomada de decisão a nível europeu, determinando a competência da União para legislar, garantindo igualmente que as decisões são tomadas tão perto quanto possível dos cidadãos. O princípio da subsidiariedade determina que, nos domínios que não sejam de competência exclusiva, a UE intervenha “apenas se e na medida em que os objetivos dessa ação não possam ser suficientemente alcançados pelos Estados-Membros, tanto ao nível central como ao nível regional e local.”
Reveste-se de particular interesse para as RUP a aplicação do princípio da subsidiariedade na delimitação das competências entre a União e os Estados-membros e o reforço do papel e da representação das regiões na União, por força da relação entre aquele princípio e a dinâmica da política de coesão económica e social.
Regiões Ultraperiféricas: atores estratégicos da União Europeia
Do Problema à Oportunidade
Hoje, são nove as regiões ultraperiféricas de três Estados-membros: Espanha, França e Portugal. Uma comunidade autónoma espanhola, as ilhas Canárias (oceano Atlântico); cinco departamentos ultramarinos franceses, Guiana Francesa (enclave na floresta amazónica), Martinica (mar das Caraíbas), Guadalupe, Mayotte e Reunião (oceano Índico); uma coletividade ultramarina francesa, Saint-Martin (mar das Caraíbas); e duas regiões autónomas portuguesas, Açores e Madeira (oceano Atlântico).
A cooperação entre as RUP tem-se revelado um processo evolutivo. O primeiro encontro dos presidentes das RUP foi em 1988, na Madeira. No ano de 1995, na ilha de Guadalupe, aqueles presidentes assinaram um protocolo que formalizou as relações política e técnica entre os seus territórios. Na prática, fora criada a Conferência de Presidentes das Regiões Ultraperiféricas, principal fórum de diálogo entre aquelas regiões, cuja declaração conjunta decorrente de cada reunião é enviada à Comissão Europeia, ao Parlamento Europeu, ao Comité das Regiões, aos Chefes de Estado e de Governo aos quais as RUP estão ligadas, e aos deputados ao Parlamento Europeu e membros do Comité das Regiões originários daquelas regiões.
Curiosamente, da mesma forma que Jacques Delors contribuíra para o reconhecimento das especificidades das RUP, outro francês, Emmanuel Macron, impulsionou o reconhecimento das RUP como atores estratégicos da UE no mundo na Conferência de Presidentes das RUP em outubro de 2017, na Guiana Francesa. Tal reunião contou também com a presença do antigo Presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, o que refletiu o empenho das instituições da União em garantir que as RUP sejam auscultadas, mas também com a pretensão de a própria UE tirar o melhor partido do potencial daquelas regiões (Fonseca, 2018). Daí resultou um importante documento da Comissão Europeia, a 24 de outubro de 2017: “Uma parceria estratégica reforçada e renovada com as regiões ultraperiféricas da UE” (Comissão Europeia, 2017).
Desde 2004 que a Comissão Europeia define orientações estratégicas para as RUP (2004, 2008, 2012, 2017 e 2022). A comunicação de 2017 classifica aquelas regiões como um “ativo extraordinário para a União Europeia”, enriquecendo-a económica, cultural e geograficamente. Não obstante, reconhece os desafios para o seu desenvolvimento e integração no mercado interno, fruto de características como o afastamento, reduzida dimensão, vulnerabilidade às alterações climáticas e a insularidade (à exceção da Guiana Francesa). Recentemente, em maio de 2022, a Comissão Europeia divulgou uma nova Estratégia da UE para as RUP: “Dar prioridade às pessoas, garantir o crescimento sustentável e inclusivo, realizar o potencial das regiões ultraperiféricas da UE”, na qual demonstra a sua “obrigação institucional”; um “imperativo político”; uma “necessidade económica”; e um “investimento geoestratégico” para com os territórios insulares. Ressalve-se, não obstante, que tal esforço exige um forte empenho da UE, mas também que cada região desenvolva a sua visão de recuperação e crescimento. É igualmente curioso verificar que a Comissão destaca as potencialidades e os desafios de cada RUP no anexo da Estratégia de 2022.
Entre 2014 e 2020, os Fundos Europeus Estruturais e de Investimento e um regime específico sobre medidas agrícolas (Regulamento Programa de Opções Específicas para fazer face ao Afastamento e à Insularidade-POSEI) contemplaram quase €13,3 mil milhões para as regiões ultraperiféricas, incluindo duas dotações específicas nos domínios do desenvolvimento regional e das pescas: dotação específica adicional no âmbito do FEDER e de um regime de compensação no âmbito do Fundo Europeu Marítimo e das Pescas-FEAMP. Ainda, aplicam-se regras específicas às RUP em políticas como os auxílios estatais (auxílios ao funcionamento e ao investimento), bem como quanto a questões fiscais e aduaneiras, tendo em vista ajudar a aumentar a sua competitividade. Ainda que o progresso seja evidente, as RUP continuam a deparar-se com sérios desafios, amplificados pela globalização e pelas alterações climáticas (Comissão Europeia, 2017).
Neste sentido, a Comissão Europeia (2022) adotou uma nova abordagem através da Estratégia de 2022, “Dar prioridade às pessoas, garantir o crescimento sustentável e inclusivo, realizar o potencial das regiões ultraperiféricas da UE”, que apresenta as ações prioritárias da UE nestas regiões e para estas regiões. Embora a UE desempenhe um papel fundamental ao contribuir para despoletar o potencial de crescimento das regiões ultraperiféricas, o seu bem-estar e desenvolvimento dependem fundamentalmente de escolhas e ações das próprias regiões e dos seus Estados-Membros.
Assim, cabe às regiões definir e aplicar estratégias de desenvolvimento adaptadas a cada uma delas, definindo as prioridades adequadas e utilizando plenamente as possibilidades de financiamento proporcionadas pelos instrumentos europeus - as denominadas Estratégias de Investigação e Inovação para a Especialização Inteligente (RIS3), sendo que “Essas estratégias devem antecipar e responder às necessidades dos cidadãos, eliminar os obstáculos ao crescimento, explorar os ativos, diversificar a economia, aumentar a autossuficiência, expandir as ligações comerciais, desenvolver competências e gerar emprego.” (Comissão Europeia, 2022).
Assumido o compromisso em 2022, a Comissão Europeia elaborou um anexo que identifica, entre outros, estatísticas selecionadas sobre as RUP em comparação com as médias nacionais e da UE; disposições específicas para as RUP em matéria de legislação recente; e fichas de informação por região, que contempla os ativos, os desafios e os domínios de incidência.
Uma parceria sólida e uma cooperação estreita entre a União Europeia, as regiões ultraperiféricas e os respetivos Estados-membros continuam a ser fundamental para desenvolver o potencial destas regiões remotas e apoiar a sua transição para uma economia verde. Ajudar as RUP contribui para a construção de uma União Europeia inclusiva; por sua vez, as RUP, graças aos seus ativos únicos, podem contribuir significativamente para uma UE mais sólida e sustentável.
Regiões Ultraperiféricas: os “Pontas de Lança” da União Europeia no Mundo
As RUP permitem à União Europeia atuar para além das suas fronteiras, propiciando a cooperação noutros âmbitos regionais através da presença real naquelas áreas geográficas. Deste modo, são verdadeiros “pontas de lança” da UE (Carrillo & Diaz, 2014).
Por intermédio das RUP, a UE é o único espaço continental que pode afirmar a sua presença no coração do oceano Índico, das Caraíbas e da América do Sul. As oportunidades não são só do ponto de vista político ou geoestratégico, mas também do económico, do comercial e do científico.
Acresce uma área fundamental para a UE que tem vindo a ganhar relevo: a Defesa. O assunto é relevante por dois motivos: o crescimento acelerado do número de ameaças à escala global, principalmente no que se refere a desastres naturais causados por alterações climáticas; o outro diz respeito ao estabelecimento da Cooperação Estruturada Permanente (PESCO) que pretende aumentar e melhorar a cooperação ao nível da Defesa entre os Estados-membros da UE (cooperação ao nível da partilha de informação sobre pesquisa e desenvolvimento no âmbito da tecnologia militar). Contudo, as potencialidades das RUP para a Defesa não têm sido contempladas nas estratégias para a Política Externa europeia (Fonseca, 2018).
Diretamente relacionado com o mencionado anteriormente está a vertente da ação externa europeia. Sendo evidente a multipolaridade do sistema internacional, a UE não pode assumir um papel secundário. Foi também por isso que a União já reconheceu a necessidade de ter “autonomia estratégica”, ou seja, atuar de forma independente dos Estados Unidos da América em determinadas matérias. Aliás, recentemente, em setembro de 2020, Charles Michel fez questão de clarificar que “autonomia não significa protecionismo. Pelo contrário!” (Tamma, 2020). A autonomia estratégica deve respeitar três objetivos: estabilidade, disseminação dos padrões europeus e promoção dos valores europeus. Por outras palavras, reduzir a dependência e aumentar a influência.
As RUP reconhecem que podem ter um papel importante nas regiões em que estão inseridas e veem o fortalecimento de relações com os países vizinhos como uma prioridade para o seu desenvolvimento. Uma das grandes metas daquelas regiões é aumentar e otimizar a cooperação económica, comercial, social e cultural com os países que lhe são mais próximos, como por exemplo a Macaronésia e os seus países vizinhos. Mas também é onde a UE pode usufruir da sua localização para, de forma eficaz, monitorizar e até mesmo conduzir as suas missões da UE no estrangeiro, no âmbito da Política Europeia de Segurança e Defesa. Por outro lado, do ponto de vista geoestratégico, as ilhas do Atlântico são uma importante forma de projeção de poder. Neste caso, destaque para os Açores. Por razões várias, a capacidade de manter a segurança e estabilidade no oceano Atlântico representa uma “preocupação estratégica real e uma meta ideológica” (Fonseca, 2018, p. 51).
A oportunidade de ter uma presença física em áreas do mundo que de outra forma seria impossível poderá significar tornar as RUP em “regiões-modelo” da UE no mundo. De referir, por exemplo, a iniciativa de um deputado da Assembleia Nacional de França, Jean Jacques Vlody (natural da ilha da Reunião), em promover a integração regional das RUP situadas no oceano Índico, através da introdução do conceito de «diplomacia territorial». Na prática, sugeria que as próprias RUP fossem transformadas em atores regionais com poder para negociar com os seus vizinhos (Fonseca, 2018).
As regiões ultraperiféricas, representando uma presença territorial europeia em zonas estratégicas do mundo, possuem características geográficas e geológicas excecionais que as tornam laboratórios privilegiados para a investigação e a inovação em setores de futuro, como a biodiversidade e os ecossistemas terrestres e marinhos, as ciências do espaço e as fontes de energia renováveis. As especificidades destes territórios devem ser encaradas como uma mais-valia para os seus Estados-membros e para a União no seu todo, numa relação recíproca e profícua (Valente, 2015).
Na prática, não será certamente descomedido constatar que as ilhas europeias, e as regiões ultraperiféricas em particular, reforçam a posição geopolítica e geoestratégica da União Europeia no mundo.
Açores e a União Europeia: evolução e contributo
A 28 de março de 1977, a apresentação da candidatura de Portugal às Comunidades Europeias representou um desafio importante para a autonomia açoriana. Durante o período das negociações de adesão, o Governo Regional dos Açores manteve um membro responsável pela integração europeia que acompanhou o processo negocial com a Comissão Europeia. Inicialmente, o Governo Regional dos Açores teve dúvidas quanto ao interesse da Região em aderir, pelo menos de pleno direito, às Comunidades Europeias, dado os Açores terem garantido competências ao nível das relações externas com a autonomia político-administrativa. Contudo, o Governo Regional concluiu não haver objeções à negociação de adesão às Comunidades Europeias (Castro, 2015).
Foi relevante no processo de adesão em relação aos Açores e à Madeira a inscrição do compromisso dos Estados signatários do Tratado de Adesão de Portugal, através da “Declaração comum relativa ao desenvolvimento económico e social das regiões autónomas dos Açores e da Madeira”, anexa ao tratado, revelando-se um enorme alcance político. Segundo Faria e Castro, o transcrito na “Declaração comum” lançou a base para o estabelecimento do conceito de ultraperiferia. E acrescenta
A participação dos Açores no processo de decisão comunitário, suportada por uma ténue disposição constitucional e por um Estatuto Político-administrativo forjado num período de alguma desconfiança nacional sobre o processo autonómico, iniciou-se, mesmo assim, a dois níveis e, em ambos, com resultados claros para a afirmação daquele que viria a ser um dos pilares da construção europeia no plano institucional: o princípio da subsidiariedade. (Castro, 2015, p. 67).
O primeiro nível foi nacional, relativo ao diálogo a ser estabelecido entre o Governo da República e o Governo Regional sobre a preparação das posições do Estado português no Conselho. No âmbito do Ministério dos Negócios Estrangeiros, o Governo português criou a Comissão Interministerial para os Assuntos Comunitários, composta por representantes dos ministérios com competência nas matérias abrangidas pela ação das Comunidades e por representantes das duas regiões autónomas. Tal Comissão foi um palco da autonomia regional, dado as reuniões daquela Comissão demonstrarem a maturidade do relacionamento dos órgãos de soberania com os órgãos regionais no quadro da Constituição (Castro, 2015).
A tripla ligação entre os Açores, Portugal e a União Europeia é notória. Desde a adesão que aquela Região Autónoma mantém um conselheiro regional por ela indicado na Representação Permanente de Portugal junto da União Europeia (REPER). No fundo, ainda que seja um cargo de natureza técnica, é essencialmente política, ou seja, é um delegado do Governo Regional em Bruxelas. Mais importante tem sido a prática institucionalizada desde a adesão da participação de um membro do Governo Regional dos Açores nos conselhos que contemplem na respetiva agenda matérias de interesse específico para os Açores.
Ora, na revisão constitucional de 1997, ficou em definitivo consagrado o poder da Região participar no processo de construção europeia mediante representação nas respetivas instituições regionais e nas delegações envolvidas em processos de decisão comunitária quando estejam em causa matérias do seu interesse específico. Com efeito, consagra o direito de a Região Autónoma dos Açores participar em reuniões do Conselho; na prática, acrescentou poder às Regiões Autónomas.
O segundo nível reporta-se à eleição de deputados ao Parlamento Europeu residentes nos Açores. A lei eleitoral para o Parlamento Europeu continua a contemplar um círculo eleitoral único, pelo que a legitimidade dos deputados originários dos Açores assenta exclusivamente na sua inclusão em listas nacionais, decididas pelas direções nacionais dos partidos (Castro, 2015).
A revisão do Estatuto Político-administrativo aprovada em 2009 representou uma evolução significativa no enquadramento legal pelo qual a RAA participa no processo de integração europeia. Tais disposições constam, hoje, do Título VI, intitulado “Das relações internacionais da Região”. Nele, há o reconhecimento da República da capacidade da Região Autónoma em se assumir como um ator das relações internacionais. O artigo 122º determina a participação dos Açores no processo de construção europeia, sendo que “a Região tem o direito de participar nos processos de formação da vontade do Estado Português no âmbito da construção europeia quando estejam em causa matérias que lhe digam respeito” (Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, 2009).
Não menos importante é o facto de os Açores terem o direito de promover, de forma autónoma, o relacionamento direto com entidades estrangeiras. Baseado no artigo 123º, intitulado “Cooperação externa da Região”, o n.º 1 esclarece que a RAA “exerce a sua acção no âmbito da política externa e dos negócios estrangeiros, em defesa e promoção dos interesses que lhe incumbe constitucional e estatutariamente prosseguir” (Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, 2009, p. 72). Apesar de tudo, tal não confere à Região, naturalmente, independências nestas matérias, encontrando-se necessariamente vinculada às grandes orientações da política externa da República Portuguesa. Para melhor entendimento,
Estas são as balizas da actuação da Região no quadro da prossecução dos objectivos que o regime autonómico sanciona, num momento de importante afirmação do princípio da subsidiariedade como a base para o estabelecimento de uma política de governação territorial eficiente (Castro, 2015, p. 76).
No âmbito da cooperação inter-regional, os Açores têm mantido uma intensa atividade iniciada em 1978 com a apresentação pelo Presidente do Governo Regional, na então designada Conferência dos Poderes Locais e Regionais do Conselho da Europa, de uma proposta que elaborasse um estudo sobre os problemas específicos das regiões insulares. Desse estudo resultou, com o apoio do Conselho da Europa e da CRPM a realização de uma primeira Conferência das Regiões Insulares Europeias, em 1981, em Tenerife. Na preparação daquela conferência, os Açores aproximaram-se da CRPM, formalizando a sua adesão na assembleia-geral da organização, em 1979. Naquela altura, o Presidente do Governo Regional dos Açores propôs a criação de uma Comissão das Ilhas, cuja primeira reunião teve lugar no ano seguinte em Nuoro, na Sardenha. A partir daquele momento, o processo de afirmação das regiões insulares europeias desenvolver-se-ia com grande intensidade no seio da CRPM e da sua Comissão das Ilhas.
Fora exclusivamente do âmbito político, a descolagem económica das regiões ultraperiféricas foi efetuada a dois níveis: o recurso à ação dos fundos estruturais e a modelação na aplicação de certas políticas comuns, a fim de torná-las mais consentâneas com a realidade. A título exemplificativo, os Açores beneficiaram, entre 1989 e 2020, de apoios europeus em cerca de 5 mil milhões de euros, num sentido claramente positivo nos programas-quadro respetivos. Em bom rigor, os programas executados tiveram um impacto bastante positivo no crescimento da economia açoriana (Fortuna & Couto, 2022). Não obstante, ainda se mantêm problemas estruturais em Portugal e, em específico, nos Açores, relacionados com os índices de competitividade, de educação e de qualificação da população, assim como uma limitada capacidade de criação de valor acrescentado.
Contudo, naturalmente que as relações entre a União Europeia e os Açores não se limitam ao financiamento público para o desenvolvimento ou de coesão territorial. Para tal, basta referir as Comunicações da Comissão Europeia, que desde 2007 reconhecem as vantagens das RUP.
O esforço açoriano tem sido real, através de diversos exemplos: o Gabinete de Representação dos Açores em Bruxelas, criado em 2017, a Escola do Mar dos Açores, na cidade da Horta, inaugurada em 2020; a Agência Espacial Portuguesa, constituída em 2019 e cuja sede será na ilha Santa Maria; e o Centro do Atlântico, cuja sede operacional será na Base das Lajes, na ilha Terceira. Sobre este último, nas palavras de Augusto Santos Silva e João Gomes Cravinho (2020, n.d.), o «que está a nascer nos Açores, vai ser um instrumento de afirmação de Portugal, promovendo a segurança cooperativa no conjunto do Atlântico, desde a África do Sul ao Canadá, desde a Argentina à Noruega». Acrescentam:
O Atlantic Centre é uma iniciativa portuguesa, mas a ambição é maior: pretende vir a ser uma organização de excelência internacional, de segurança cooperativa e de reforço da capacidade de defesa no Atlântico. Trata-se de uma iniciativa que é não só oportuna como urgente (Silva & Cravinho, 2020).
Acerca do Centro do Atlântico, os Açores encetaram todos os esforços para que tal se materializasse, não só por ser uma região atlântica, mas também para se projetar nacional, europeia e internacionalmente, contribuindo para o objetivo de manter o Atlântico como um espaço de paz, diálogo e cooperação. Em maio de 2021, Portugal formalizou a iniciativa através da participação de 16 países, representando, segundo João Gomes Cravinho (Público, 2021) uma “nova frente de apoio à paz e à estabilidade no oceano Atlântico”.
A 4 de junho de 2021, no âmbito da Presidência Portuguesa do Conselho da UE, foi lançada a “Declaração dos Açores”, definida em quatro tópicos: mar, espaço, clima e sustentabilidade alimentar, reforçando a “ligação, cooperação e ação» entre os países ligados ao Oceano Atlântico” (Governo dos Açores, 2021).
No que respeita à relação Açores-União Europeia, dúvidas não há que aquela RUP tem caminhado claramente num sentido positivo, dados os desenvolvimentos de carácter político, mas também a nível técnico. Da mesma forma que António José Telo por várias vezes se referiu à disfunção nacional, parece correto constatar que os Açores têm apresentando um poder inovador, ou melhor, uma especificidade açoriana.
Conclusão
Desde a sua descoberta e povoamento até meados do século XX, o arquipélago açoriano definia-se essencialmente como um ativo atlântico; por outro lado, com a adesão de Portugal às Comunidades Europeias, os Açores abraçaram e têm vindo a fortalecer a sua posição junto da União Europeia no quadro da ultraperiferia. Ainda, o processo de democratização de Portugal beneficiou duplamente o arquipélago dos Açores: conferiu-lhe o estatuto de região autónoma e reforçou a sua importância junto da Europa comunitária.
Importa, em jeito de conclusão, apresentar os Açores como um ativo de excelência para Portugal (no seu todo) e, também, para a União Europeia.
A unidade política do arquipélago plasmada na Constituição da República Portuguesa e promovida pelas instituições autonómicas insulares é um bem precioso que importa preservar. Pelo seu lado, a República deve demonstrar ser o melhor negociador internacional de que os Açores dispõem (Ferreira, 2011).
Concretamente sobre os Açores, aquele território apresenta-se como região insular arquipelágica, atlântica, oceânica, autónoma e ultraperiférica. É esta «insularidade oceânica» que singulariza os Açores no contexto europeu e que deve ser tida em conta. É importante realçar, no entanto, que a relação entre aquela RUP e a UE é recíproca e clara: se a Europa perdesse essa dimensão insular, arquipelágica, oceânica e atlântica, regressaria à repudiada realidade de uma «Europa Fortaleza» mesmo que alargada a Leste (Amaral, 2014). As ilhas são a garantia da manutenção de uma União aberta, marítima e inserida no diálogo internacional. No sentido inverso, convém acentuar que as regiões insulares autónomas encontram atualmente na UE o seu melhor enquadramento, quer quanto à teoria política da descentralização derivada do princípio da subsidiariedade, quer quanto aos fluxos financeiros e ao próprio desenvolvimento económico, graças às políticas, aos programas e às ações comunitárias e aos efeitos induzidos pelo princípio da coesão económica e social que a própria Constituição Portuguesa acolheu no nº 6 do seu artigo 7º como um dos objetivos da participação nacional na União Europeia.