1.Memória breve
O terceiro alargamento, a Portugal e Espanha, trouxe uma nova dimensão geopolítica ao processo de integração europeia bem como ter permitido, pela primeira vez, que a Europa deixasse apenas de ser de “Estados e para Estados”2. E deveria garantir a elaboração não só de políticas gerais e unitárias para toda a União, mas simultaneamente, de políticas específicas diferenciadas para as regiões ou comunidades do seu território que apresentassem necessidades e graus de desenvolvimento diferenciados, como por exemplo, as regiões de montanha, as regiões industriais degradas, as ilhas. Entre as referidas ilhas3, algumas beneficiariam de um estatuto específico - as regiões ultraperiféricas (Valente, 2015).
Na verdade, existem regiões que correspondem a uma realidade geográfica, política e histórica muito própria no seio da União Europeia - as Regiões Ultraperiféricas (RUPs). Os departamentos franceses ‘d’Outre-Mer’, as ilhas portuguesas dos Açores e da Madeira e as ilhas espanholas das Canárias possuem simultaneamente um conjunto de semelhanças e diferenças que lhes conferem um quadro especial dentro da UE. Apesar de uma série de características específicas, comuns a todas estas regiões, que dificultam o seu crescimento e a recuperação do atraso em relação a outras regiões da União, como seja o grande afastamento do continente europeu, a insularidade, a pequena superfície, o relevo e clima difíceis, a sua economia pouco diversificada e a sua dependência económica em relação a alguns produtos e formas de energia, o regime político-administrativo, podemos concluir que a maioria delas possui um regime particular, detém diferentes regimes económicos e fiscais e regista diferenças de estatuto no quadro da adesão.
Ora, Portugal e Espanha, na sequência dos processos de democratização vividos em meados da década de setenta do século XX, acabariam por adotar uma via mais autonomista face às suas ilhas. Portugal, mantém-se como Estado unitário, no entanto, concede autonomia político-administrativa às regiões insulares dos Açores e da Madeira. Por seu lado, a Espanha tornou-se num Estado multi-regional, com dezassete comunidades autónomas, com estatutos autonómicos equilibrados.
Assim, o Estado português é unitário e respeita, na sua organização, os princípios da autonomia dos poderes locais e a descentralização democrática e administrativa pública. Os arquipélagos dos Açores e da Madeira são Regiões Autónomas dotadas de estatutos políticos e administrativos e de órgãos de Governo que lhes são próprios. Cada arquipélago dispõe de uma Assembleia Regional eleita por quatro anos por sufrágio direto e universal e de um Governo Regional composto por um Presidente e Secretários Regionais. A Assembleia Regional exerce o poder legislativo, vota o orçamento e controla o governo regional que exerce o poder executivo.
Uma das conclusões a que podemos chegar é que a autonomia, por um lado, e a integração europeia, por outro, constituem os dois eixos fundamentais do combate às assimetrias internas constituindo-se também como veículos de unificação política destas regiões. Relativamente a este assunto, Avelino de Freitas Meneses, no seu artigo intitulado “As Ilhas de Portugal na Construção da Europa” escreve o seguinte: “Nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, a autonomia é a principal conquista do 25 de Abril, mas a União Europeia é também uma indispensabilidade. Aliás, a Europa de hoje já não é a Europa das Nações. Em vez disso, é cada vez mais Europa das regiões. Assim, a par da Constituição da República Portuguesa, a União Europeia é um dos principais arrimos da autonomia, enquanto expressão da democracia e instrumento de desenvolvimento” (Meneses, 2011).
Importa igualmente considerar que a apresentação da candidatura de Portugal às Comunidades Europeias (28 de março de 1977) representou um enorme desafio, do ponto de vista executivo e administrativo, para as recentes autonomias açoriana e madeirense. Assim, os Governos Regionais dos Açores e da Madeira mantiveram, durante o período das negociações de adesão, um membro responsável pela integração europeia que acompanhou, em nome das respetivas Regiões, o processo negocial com a Comissão Europeia.
No âmbito do novo quadro institucional, as negociações de adesão às Comunidades Europeias, por parte dos Açores, foram coordenadas no âmbito da Comissão Regional para a Integração Europeia, presidida pelo membro do Governo responsável por esse processo. Relativamente a este assunto, Pedro Faria e Castro sustenta que
Inicialmente, o Governo Regional dos Açores teve dúvidas quanto ao interesse da Região em aderir, pleno menos de pleno direito, às Comunidades Europeias. E essas dúvidas tinham origem numa preocupação de natureza política que se traduzia na necessidade de garantir que as competências que a Região havia ganho ao ‘Terreiro do Paço’ com a autonomia político-administrativa não fossem transferidas para Bruxelas (…). Por esse motivo, o Governo Regional decidiu encomendar um estudo que avaliasse esse interesse. As conclusões do estudo permitiram ao Governo Regional não levantar objecções à regular negociação de adesão às Comunidades Europeia (Castro, 2015, p. 59).
No caso da Madeira, é criada em 1978, pelo Decreto Regional n.º 13/78/M, de 10.3, a Comissão Regional de Estudos para a Integração Europeia dando lugar à Comissão Regional para a Integração Europeia, em 1981 (Decreto Regional n.6/81/M, de 20.4), que acompanhou todo o processo negocial de adesão desta região. Já em 1986, através da Resolução do Conselho de Governo n.º 273/86, de 13.0, é instituída a Comissão Regional para os Assuntos das Comunidades Europeias. Dito de outra forma, o Governo Regional da Madeira, no âmbito das negociações para integração de Portugal na Europa comunitária e das medidas para acautelar as particularidades específicas da região, acompanhou desde sempre o processo negocial, através de um seu representante na Comissão para a Integração Europeia4.
Tendo em conta o objetivo para que é convocada aqui e agora a reflexão, parece-nos importante sublinhar que o processo de integração das regiões ultraperiféricas portuguesas e espanholas seguiu rumos diferentes, a partir do momento em que estes territórios foram incorporados na Europa comunitária. Assim, a Madeira e os Açores optaram por uma adesão plena5, o que lhes possibilitou, logo no início, beneficiarem de todas as ajudas estruturais europeias. Enquanto as ilhas Canárias decidem por uma fórmula mais eclética, com determinadas condições, nomeadamente em sede de união aduaneira bem como económica e fiscal, fixadas no Protocolo n.º 2 anexo ao Tratado de Adesão, curiosamente relativo às Canárias, a Ceuta e a Melila (Jornal Oficial das Comunidades Europeias, 1985, p. 400).
Neste quadro não deixa de ser importante realçar que no processo de adesão relativo aos Açores e à Madeira, a inscrição, por parte dos Estados signatários do Tratado de Adesão de Portugal da “Declaração comum relativa ao desenvolvimento económico e social das regiões autónomas dos Açores e da Madeira”, anexa ao Tratado (p. 479), revestiu-se de um enorme alcance político. Registe-se também que a referida declaração reconhece as desvantagens económicas e sociais dos dois arquipélagos portugueses decorrentes da sua situação geográfica (afastamento do continente europeu), da sua orografia acentuada e da grande insuficiência de infraestruturas. Deste modo, foram identificados, pela primeira vez, os constrangimentos permanentes das ilhas atlânticas que viriam a ser utilizados na construção e definição do conceito de ultraperiferia. Ora, este conceito representa um estatuto específico para certas regiões da União Europeia que detêm determinadas características comuns, como vimos anteriormente. Na verdade, trata-se de um estatuto jurídico que confere garantias políticas em relação à participação destas regiões no processo de integração europeia.
2.Conceito de ultraperiferia
A consagração do estatuto Ultraperiferia para estas regiões deve-se à ação inequívoca e entusiástica dos Governos Regionais da Madeira e dos Açores em estrita coordenação com o Governo da República6. É indubitável que, através de Alberto João Jardim e de João Bosco Amaral as Regiões Autónomas portuguesas puderam não só marcar a agenda das negociações no quadro das Regiões Ultraperiféricas (RUPs), como também obter uma grande parte do apoio internacional necessário à aprovação do mesmo. Refira-se a propósito, que “o texto final do artigo corresponde em cerca de 98% à última proposta de compromisso portuguesa” (Silva, n.d.).
Analisemos, então este moroso e difícil percurso. Aquando da assinatura do Tratado de Roma (1957), os departamentos ultramarinos franceses (Guadalupe, Guiana, Martinica e Reunião) entram na Comunidade Europeia. As especificidades dos seus territórios são reconhecidas no n.º 2 do artigo 227. As diversas disposições seriam determinadas e reguladas, o mais tardar, dois anos após a entrada em vigor (1 de janeiro de 1958) daquele Tratado.
Neste contexto, Giuseppe Ciavarini Azzi sustenta que “no espírito dos seis Estados fundadores da Comunidade, a situação particular destas regiões justificava já, por conseguinte, uma abordagem específica a seu respeito. No entanto, e contrariamente ao previsto no Tratado, o prazo de dois anos esgotou-se sem que a situação dos territórios ultramarinos franceses fosse regularizada” (Azzi, 2000). Foi preciso esperar pelo Acórdão Hansen, proferido pelo Tribunal de Justiça em 10 de julho de 1978, para que estas regiões saíssem da ambiguidade que mantinham perante a Comunidade Económica Europeia (CEE).
Atento ao movimento e às mudanças do cenário internacional, Portugal, país pequeno e periférico, associa-se à Declaração de Galway adotada por unanimidade a 16 de outubro de 1975 pela primeira Convenção das Autoridades Regionais da Europa Periférica.
Este mesmo espírito está presente na 14.ª sessão da Conference of Local and Regional Authorities of Europe, realizada em Estrasburgo a 14 de outubro de 1979. Foi, então, aprovada a Resolução 110 (1979) relativa aos problemas específicos das regiões insulares atlânticas e europeias (Açores, Madeira, Canárias), em que é defendida a continuação da política de “intensificar a cooperação entre as regiões europeias e a sua participação no desenvolvimento da Europa”, com base na comunicação apresentada por Mota Amaral sobre os problemas das regiões insulares e Atlânticas e na sequência, como anteriormente referimos, da Declaração de Galway.
Com efeito, perante as recomendações e expectativas desta Resolução do Committee on Regional Problems and Regional Planning of the Conference of Local and Regional Authorities of Europe, começou a preparar-se a European Island Conference que teve lugar em 1981 e se realizou em duas sessões. A primeira teve lugar, nas Ilhas Canárias, onde foram analisados os problemas económicos e a segunda no arquipélago dos Açores onde se discutiram e estudaram, essencialmente, as questões políticas e institucionais. Esta Conferência foi acolhida com grande entusiasmo pelo Conselho da Europa, pois estava na linha da renovada política regional europeia e do diálogo Norte-Sul.
Na sequência destas sessões elaboraram-se duas importantes Declarações, a Declaração de Tenerife e a Declaração dos Açores. Nestes documentos, alertava-se para a urgência de medidas que permitissem o desenvolvimento económico e social das ilhas da Europa. Isto vem confirmar que já se tinha uma consciência mais clara de que este desenvolvimento só seria possível com a congregação de esforços nacionais e com o apoio das instituições europeias.
Ao longo da aplicação destes princípios foi-se progressivamente tomando consciência que tais medidas específicas deveriam “corresponder a uma abordagem global e coordenada, e não depender da ocorrência de problemas pontuais”.
Nesta sequência de ideias, a Comissão Europeia,
sob proposta do seu Presidente Jacques Delors, criou em 24 de setembro de 1986 um grupo de Interserviços encarregado dessa abordagem global. A este grupo foi atribuída a missão de coordenar a ação dos serviços da Comissão Europeia relativa aos DU, aos PTU, bem como às regiões de Espanha e Portugal situadas fora do Continente europeu: Canárias, Ceuta e Melilha, Açores e Madeira (Azzi, 2000, p. 50).
Dir-se-ia que foi esta abordagem comunitária que veio a congregar, mais tarde, os quatro Departamentos franceses (Guadalupe, Martinica, Guiana e Reunião) às ilhas Canárias e às Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, com vista à “defesa dum estatuto comum que permitisse a adoção pelas Instituições comunitárias de medidas específicas aos seus territórios”.
Se bem que a sua origem ainda esteja sujeita a controvérsia, estamos em crer que o vocábulo ultraperiferia foi utilizado talvez em primeiro lugar em outubro de 1987, quando ocorreu a Assembleia Geral da CPRM na Ilha de Reunião, dirigida pelo então Presidente dos Açores, João Bosco Mota Amaral. Procurando uma matização de referência no quadro conceptual, o Presidente dos Açores utiliza de forma espontânea, a expressão “mais que” e depois “ultra” para caracterizar o conceito de perifericidade da situação das ilhas afastadas do Continente europeu. Deste modo, e no dizer de Patrick Guillaumin (2000), “as ilhas e as Regiões Ultraperiféricas nasceram, criadas pelas próprias Regiões” (p. 108).
É um facto que tentativas houve no sentido de criar um espaço político que inserisse estas regiões permitindo o seu desenvolvimento económico e social, projeto aliás já acalentado nos fins dos anos cinquenta. O que viria a acontecer de forma mais formal no Conselho Europeu de Rodes, em 1988. As RUPs acolhem a CRPM durante dois anos consecutivos: Na Ilha de Reunião, em 1987, e na Madeira, em 1988. Deste modo, a CRPM contribui, certamente, para a transformação de uma “Comunidade de chegada” numa “Comunidade de destino”.
Mais uma vez, não deixa de ser sintomático o papel dos políticos regionais portugueses. Em 1988, o Presidente da Madeira convida os seus colegas das RUPs para uma sessão de trabalho com o objetivo de abordar questões do interesse comum, na hora em que se discutia o projeto POSEIDOM, nas instâncias comunitárias. Nascia, deste modo, o grupo de Regiões Ultraperiféricas da UE.
Efetivamente, as sete Regiões, em resultado das reuniões informais constantes após a iniciativa histórica de Alberto João Jardim, assinam um Protocolo de Cooperação, em 1995, na Gourbeye (Guadalupe), criando a Conferência dos Presidentes das RUPs.
Neste mesmo sentido, a pedido de Portugal e de Espanha, a Comissão propõe ao Conselho dois novos programas decalcados do POSEIDOM: o POSEIMA, dedicado à Madeira e aos Açores, e o POSEICAN, que diz respeito às Canárias. Ceuta e Melila não foram objeto de nenhum programa-quadro POSEI porque não foi apresentado por Espanha nenhum pedido de modificação de estatuto e, além do mais, estas duas cidades não apresentam um afastamento do Continente europeu comparável ao das regiões beneficiadas por aqueles programas-quadro. Neste contexto, os programas POSEI procuram dar conteúdo aos objetivos delimitados no Conselho Europeu de Rodes.
De facto, foi neste cenário que se afirmou o “conceito de Ultraperiferia, que designa as regiões beneficiárias dos três programas. Este conceito baseia-se nas especificidades que são comuns a estas regiões e que as diferenciam das outras regiões da União” (Azzi, 2000, pp. 52-53).
Na perspetiva de um aprofundamento do conceito de Ultraperiferia, por um lado, e da obtenção de um maior número de medidas de discriminação positiva para as RUPs, por outro lado, ocorreram, a partir de 1991, as Jornadas Parlamentares Madeira-Açores-Canárias, que passaram a ter um carácter regular.
O ano de 1992 marca um ponto fundamental e decisivo no reconhecimento dos “handicaps” estruturais conjugados com o grande afastamento, a insularidade ou o relevo e o clima difícil é consagrado na Declaração n.º 26, proposta esta feita pela França e consagrada no Tratado de Maastricht (1992). Embora se trate de um ato, anexo a este Tratado, ele deve ser considerado como um acordo unânime dos Estados-membros de adotarem o direito comunitário a estes territórios. Na verdade, foi possível considerar “medidas específicas a seu favor, na medida em que exista e enquanto existir uma necessidade objectiva de tomar tais medidas, tendo em vista o desenvolvimento económico e social dessas regiões. Essas directrizes deviam referenciar simultaneamente objectivos de realização do mercado interno e de reconhecimento da realidade regional, de modo a permitir que essas Regiões Ultraperiféricas consigam atingir o nível económico e social médio da Comunidade” (Fortuna, 2002, p. 598).
Finalmente, o Tratado de Funcionamento da UE (TFUE), consolida juridicamente o estatuto de ultraperiferia e reafirma o modelo de plena integração das Regiões Ultraperiférica através dos articulados artigo 349.º e 355.º
Em suma, a ultraperiferia representa assim um estatuto específico para certas regiões da União Europeia que detêm determinadas características comuns, como vimos anteriormente. Na verdade, trata-se de um estatuto jurídico que confere garantias políticas em relação à participação destas regiões no processo de integração europeia.
Para esclarecer este ponto deve-se ter em conta que o Tratado de Lisboa, em virtude do qual se modifica o Tratado da União Europeia, e o Tratado constitutivo da Comunidade Europeia, que agora passa a designar-se por Tratado de Funcionamento da UE (TFUE), consolida juridicamente o estatuto de ultraperiferia e reafirma o modelo de plena integração das Regiões Ultraperiférica através dos articulados artigo 349.º e 355.º.
Existem atualmente nove regiões ultraperiféricas:
Cinco departamentos ultramarinos franceses - Martinica (no Mar da Caraíbas), Maiote, Guadalupe, Reunião, (no Oceano Índico) e a Guiana Francesa (enclave na floresta amazónica);
Uma coletividade ultramarina francesa - São Martinho, (no Mar da Caraíbas);
Duas regiões autónomas portuguesas - Madeira e Açores (no Oceano Atlântico);
Uma comunidade autónoma espanhola - Ilhas Canárias, (no Oceano Atlântico).
Convém referir que até ao fim de 2011, a coletividade ultramarina francesa de São Bartolomeu era também uma região ultraperiférica da União Europeia. Contudo, em virtude do seu afastamento da França metropolitana, do estatuto jurídico específico, das relações económicas estreitas com parceiros das Américas e de uma concentração no turismo, a França solicitou a alteração do estatuto de São Bartolomeu, tornando-o num dos países e territórios ultramarinos (PTU) da UE. Esta alteração entrou em vigor em 1 de janeiro de 2012.
Os PTU são constituídos por 26 países e territórios (incluindo, até ao fim de 2013, Maiote) -na sua maioria, pequenas ilhas -, fora do continente europeu, com laços constitucionais comum dos seguintes Estados-Membros: Dinamarca, França, Países Baixos e Reino Unido.
O artigo 355.º do Tratado de Lisboa prevê que o Conselho Europeu altere o estatuto dos PTU de França, da Dinamarca ou dos Países Baixos para o estatuto de regiões ultraperiféricas, sem que seja necessário alterar o Tratado.
3.Novo Paradigma: das RUP-problema às RUP-oportunidade
Não se pense, porém, que a importância das RUPs se reduz ao seu peso demográfico, ao número de turistas que as visitam, ou à sua agricultura. Elas também valem e são ricas pelo seu extraordinário legado cultural, pela diversidade da sua envolvência geográfica e também pelo papel estratégico que desempenham na proteção das rotas marítimas da Europa e na defesa das suas fronteiras exteriores.
Deste modo, as RUPs devem ser caracterizadas, não só pelo seu afastamento em relação à Europa, mas também pela sua proximidade com países terceiros.
Registe-se que em 2008, a Comissão Europeia publicou a terceira Comunicação sobre as RUPs, a [COM (2008)642] intitulado sugestivamente “As Regiões Ultraperiféricas: um trunfo para a Europa” que vem alterar o paradigma das RUPs, através da prossecução de uma estratégia renovada, isto é, as RUPs passam a ser encaradas como “regiões-oportunidade”, portadoras de potenciais de desenvolvimento, tendo em conta as suas características específicas.
Neste horizonte, a Comunicação da Comissão Europeia reafirma, de forma inequívoca as limitações e a valorização dos pontos fortes das RUPs. A saber:
- Reafirmação do carácter permanente das desvantagens que afetam as RUPs e pedido de consolidação dos instrumentos existentes que se destinam a compensar estas desvantagens.
- Vontade de valorizar plenamente os pontos fortes e vantagens comparativas de que beneficiam estas regiões em relação à União Europeia e aos países terceiros vizinhos (situação geoestratégica única, potencial específico em matéria de energias renováveis, de observação e de acompanhamento dos efeitos das alterações climáticas e da biodiversidade). Estas características fazem das RUPs laboratórios privilegiados para testar projetos-piloto com elevado valor acrescentado para a União Europeia.
Assim, a ultraperiferia deixa de ser perspetivada apenas como sinónimo de região-problema para a dominar a argumentação política e reivindicativa quer das entidades regionais quer dos governos dos três estados-membros a que pertencem estes territórios.
É facto que a abordagem da ultraperiferia exige doravante a valorização do papel que as RUPs poderão desempenhar no futuro da União Europeia.
Ora, no quadro da mundialização, a União Europeia é o único espaço continental que pode afirmar a sua presença no coração do Oceano Índico, das Caraíbas e da América do Sul, exatamente por intermédio das RUPs.
De facto, estas regiões formam autênticas pontes entre a UE e a África, o MERCOSUL7 e os EUA. Dito de outro modo, as RUPs ocupam posições geoestratégicas importantes relativamente à dimensão marítima da União, à sua política de vizinhança e de cooperação revelando-se, deste modo, como “fronteiras ativas da União Europeia no Mundo”.
As RUPs compartilham com os países ACP (Estados da África, do Caribe e do Pacífico signatários da Convenção de Lomé) e os PTU (Países e Territórios Ultramarinos) um ambiente de cooperação que se encontra plasmado no Acordo de Cotonou, no seu artigo 28.
Por outro lado, estas regiões são reconhecidas pela própria Comissão Europeia como parceiros estratégicos para a implementação de políticas de cooperação, para a promoção da estabilidade bem como para a edificação de espaços de prosperidade em diferentes áreas do mundo.
Para tal, é necessário, sem dúvida, promover a integração regional das RUPs no interior das respetivas zonas geográficas, a fim de alargar a esfera de influência da UE em termos socioeconómicos e culturais, bem como a promoção de uma atividade comercial mais intensa e de uma maior partilha de conhecimentos. As RUPs são postos avançados da UE nas zonas onde se encontram e a UE beneficia das suas estreitas relações com os países e territórios ultramarinos, com os países terceiros, como as nações emergentes (o Brasil ou a África do Sul, por exemplo), com os países em desenvolvimento e com os países desenvolvidos que partilham com as RUPs laços históricos e culturais.
Neste sentido, as RUPs são também plataformas de expressão e de transferência de valores europeus, como por exemplo: a paz, a democracia, o respeito pelos direitos fundamentais e pelos direitos do Homem.
Registe-se ainda que as RUPs constituem-se, também, como autênticas pontas de lança para as políticas humanitárias e de prevenção de riscos.
Assim, devido à sua situação geoestratégica, as RUPs são intervenientes europeus privilegiados não só no que diz respeito à intervenção humanitária de emergência fora das fronteiras da UE, como também à prevenção de riscos8. Algumas RUPs, alguns países terceiros e territórios vizinhos estão sujeitos a ameaças marítimas. Refira-se, entre outras, as seguintes: pirataria, tráfico de estupefacientes, imigração ilegal...
Assim, os importantes meios utilizados para a vigilância do mar podem ser utilizados para fins de segurança civil, tanto no espaço das RUPs como nos países e territórios vizinhos (Barnier, 2006). As ligações marítimas regulares com dezanove portos da África Ocidental fazem dos portos das ilhas Canárias um centro logístico excecional para servir o continente africano e estabelecer pontes com a América Latina. Além disso, a abertura da terceira eclusa do canal do Panamá veio permitir às RUPs das Antilhas não apenas inscreverem-se nos fluxos logísticos mundiais, como também desempenhar um papel mais importante nas atividades humanitárias e de prevenção, tal como foi o caso quando do sismo no Haiti.
Um exemplo que poderemos citar relativamente a esta matéria prende-se com a criação de algumas plataformas de intervenção e cooperação regional entre a Europa e estas regiões por intermédio das RUPs. Referimo-nos concretamente à:
Plataforma de Intervenção Regional do Oceano Índico (PIROI)
Plataforma Intervenção Regional para a América e as Caraíbas (PIRAC)
Plataforma de acesso neutro para a África Ocidental e para as ilhas Canárias
Cluster das Caraíbas para os Riscos Naturais e do Mar
É de notar que, Carlos Português Carrilo e Júlian Zafra Diaz, num artigo intitulado “La actualización del marco normativo europeo específico para la ultraperiferia”, referem o seguinte:
Se puede afirmar sin temor a equivocarse que las RUPs son verdadeiras puntas de lanza europeas en sus entornos para propiciar la coopéración en otros ámbitos regionales possibilitando la presencia real y cercana de Europa en áreas geográficas alejadas del continente europeo (Carrilo, 2014, p. 17).
Dito de outra forma, no quadro da mundialização, a União Europeia é o único espaço continental que pode afirmar a sua presença no coração do Oceano Índico, das Caraíbas e da América do Sul, exatamente por intermédio das RUPs, como referimos anteriormente. Estas constituem-se como plataformas privilegiadas da UE para desenvolver as suas políticas para além das suas próprias fronteiras, nos seus respetivos âmbitos geográficos.
Estes pressupostos intelectuais têm inspirando desde em 2004, a designada “Política Europeia de Vizinhança (PEV)” cujo objetivo central era precisamente o de impedir o surgimento de novas linhas de fratura entre a UE alargada e os seus vizinhos e de reforçar a prosperidade, a estabilidade e a segurança de todos. Esta política, que se baseia nos valores da democracia, no Estado de direito e no respeito dos direitos humanos.
Neste contento as RUPs do “Atlântico são chamadas a desempenhar um papel estratégico na parceria especial que a UE (Comissão das Comunidades Europeias, 2007) assinou com Cabo Verde. Serão desenvolvidas cooperações nomeadamente nos temas prioritários identificados no plano de ação desta parceria, tais como a luta contra os tráfegos ilegais (droga e imigração clandestina) e a cooperação policial.” (Commission of the European Communities, 2008).
Assim, a especificidade destes territórios deve traduzir-se numa perspetiva de valorização das potencialidades para a integração no espaço comunitário. Mais, as suas características próprias têm de ser entendidas como mais-valias da União Europeia em múltiplos domínios e como tal, reconhecidas e assumidas pelos Estados-membros. Trata-se, no fundo, de reconhecer a riqueza da diversidade e identificar o contributo insubstituível que estas regiões prestam devido a características paradoxalmente associadas a dificuldades.
Neste contexto, torna-se necessário reforçar a estratégia comunitária para o desenvolvimento destas regiões, num esforço de criação de sinergias e de coerência entre diversas políticas comunitárias com incidência nas RUPs. Uma estratégia que potencialize, sobretudo, a sua originalidade e aproveite a sua situação única.
Registe-se, ainda, que o teor e a amplitude interpretativa positiva do Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), proferido a 15 de dezembro de 2015, no âmbito do processo Mayotte, constituem um impulso potenciador decisivo para a adoção pelo legislador da União de medidas legislativas específicas para minimizar os efeitos dos constrangimentos permanentes inerentes à Ultraperiferia. Este Acórdão determina um dever de agir. Nestes termos as Regiões Ultraperiféricas solicitam a tomada atempada e adequada de iniciativas em conformidade com o previsto no Acórdão de Mayotte, que determina que o artigo 349º do TFUE constitui a base jurídica suficiente para modular as políticas estratégicas da União Europeia face à realidade Ultraperiférica, ação determinante à consolidação do desenvolvimento destas Regiões.
Na mesma linha de atuação, a Assembleia da República Portuguesa aprovou por unanimidade uma Resolução que recomenda ao Governo que defenda uma estratégia conjunta para as regiões ultraperiféricas.
A Assembleia da República resolve, nos termos do n.º 5 do artigo 166.º da Constituição, recomendar ao Governo que:
1 - Dê especial atenção à intitulada «Declaração das Canárias» formulada no âmbito das VIII Jornadas Parlamentares Atlânticas.
2 - No âmbito do processo negocial com a União Europeia faça progredir o dossier da ultraperiferia e defenda uma nova política eficiente e adaptada aos objetivos de coesão económica, social e territorial das regiões ultraperiféricas, conferindo cabal conteúdo material ao artigo 349.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia.
3 - Mobilize todos os seus esforços, em conjunto com os governos regionais, para a aprovação no outono de 2017, em colégio de comissários, de uma nova comunicação da Comissão Europeia relativamente à estratégia conjunta para as regiões ultraperiféricas (RUPs), que reflita os interesses das RUPs portuguesas.
Aprovada em 19 de julho de 2017. O Presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues (Assembleia da República, 2017).
É oportuno ainda, para um melhor esclarecimento, referir o envio de um documento contendo as propostas para a elaboração da nova Estratégia da Comissão Europeia para as Regiões Ultraperiféricas, por parte do Governo de Portugal, onde é sustentado que na fase crucial9 do “debate sobre o futuro da UE é essencial reforçar as oportunidades de desenvolvimento que a nova estratégia para as Regiões Ultraperiféricas poderá enquadrar.”10 Recorde-se que foi neste contexto que as Regiões Ultraperiféricas redigiram e remeteram à Comissão Europeia o Memorando Conjunto sugestivamente intitulado - Para uma nova dinâmica na aplicação do artigo 349.º do TFUE.
É nesta linha de pensamento e ação na procura das melhores e mais justas soluções, por parte dos Governos dos Estados-membros e das RUPs, para o acompanhamento e maior articulação das RUPs às políticas da União Europeia.
Neste contexto, a Comissão Europeia lançou, em maio e 2022, uma nova estratégia para as RUPs cujo título é bem ilustrativo desta nova visão para a ultraperiferia - Dar prioridade às pessoas, garantir o crescimento sustentável e inclusive, realizar o potencial das regiões ultraperiféricas da UE (Comissão Europeia, 2022).
Esta estratégia faz corresponder as necessidades mais prementes destas regiões com as políticas da União Europeia, associando as grandes questões de enquadramento internacional da contemporaneidade. O cumprimento das Metas do Desenvolvimento Sustentável, a transição digital e a descarbonização são imperativos civilizacionais que a União Europeia está a adotar na sua ação de forma transversal. Este excerto da Comunicação é extremamente elucidativo do que acabamos de referir: “A presente comunicação apresenta as ações prioritárias da UE nestas regiões e para estas regiões. No rescaldo da crise da COVID-19, o objetivo é colocar os cidadãos destas regiões em primeiro lugar na via da recuperação e do crescimento sustentáveis. Estes têm de estar ancorados na transição ecológica e digital enquanto vetores de uma transformação social coesa, resiliente e inclusiva, da diversificação económica e da criação de emprego, para dar resposta às necessidades das pessoas” (Comissão Europeia, 2022, p. 2).
4.Notas finais
A integração europeia veio alterar significativamente o rumo de desenvolvimento destas regiões. No caso português (Açores e Madeira), toda a evolução política decorrente da Revolução de abril de 1974 fica marcada por dois aspetos, um anterior à adesão às Comunidades Europeias com a formalização constitucional da autonomia e reforço do princípio da subsidiariedade, e o período posterior à adesão. Esta circunstância decorre do facto de, com a adesão de Portugal em 1986, se terem alterado vários pressupostos que condicionam a governação, principalmente pelo facto de ter trazido às regiões ultraperiféricas portuguesas o maior fluxo de recursos financeiros da sua história.
Pelo exposto podemos inferir que novos desafios estão a surgir para as RUPs em gral, e em particular, para as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira.
Estamos em crer que esses desafios resultam dos problemas da Contemporaneidade, mas também das idiossincrasias próprias de cada RUP, como do próprio sucesso da aplicação do artigo 349.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia. A coesão das nove RUPs no âmbito do estatuto da ultraperiferia coloca enormes desafios pois apesar das características comuns descritas no referido artigo que justificam a discriminação positiva, a verdade é que nem tudo as une. Desde logo, os dois diferentes graus de autonomia existentes nas RUPs, que condicionam a capacidade reivindicativa negocial que justifica, por si só, a Conferência dos Presidentes das RUPs.
Como referirmos na primeira parte, os Açores, a Madeira e as Canárias possuem um elevado, robusto e já amadurecido grau de autonomia nos seus Estados, o que lhes permite apresentar as próprias políticas. Já o sistema político francês determina uma prática diferente. Os eleitos regionais têm de e adaptar ao cumprimento de agendas muito específicas por parte do governo nacional. Outro desafio diz respeito ao perigo bem evidente diluição do conceito de ultraperiferia que numa generalização geográfica conduziria inevitavelmente à sua inutilidade.