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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.171 Lisboa jul. 2004

 

Historiografia, biografia e ética

Fernando Martins*

O artigo argumenta ser possível e desejável apostar num discurso historiográfico que combata o relativismo que tem tomado conta da maior parte da academia, especialmentenas ciências sociais e humanas. É sublinhado o facto de o relativismo da academia ter implicações para além dos seus limites, as quais minariam a natureza liberal e democrática da sociedade.

Palavras-chave: relativismo; historiador

 

Historiographie, biographie et ethique

Ce texte avance l’argument qu’il est possible et souhaitable de miser sur un discours historiographique qui, en plus de transmettre un message basé sur des valeurs morales claires — et sans que cela implique quelque moralisme gratuit —, combatte l’amoralisme et le relativisme qui se sont emparés d’une grande partie de l’académie, particulièrement dans le domaine des dites sciences humaines et sociales et de l’historiographie elle-même, surtout lorsque tous ces éléments vivent en forte promiscuité. Le fait est que l’amoralisme et le relativisme de l’académie ont de lourdes implications, au-delà de leurs limites, des implications qui minent la nature libérale et 476 démocratique de toute une société.

 

Historiography, biography and ethics

This article argues that it is possible and desirable to commit to a form of historical discourse which, in addition to conveying a message based on clear moral values, and without that implying any gratuitous moralizing, combats the amoralism and the relativism which have established themselves in most of academe, especially in the realm of the so-called human and social sciences and in history itself, and particularly when the latter is found in promiscuous intimacy with the former. The article emphasises the fact that amoralism and relativism in academe have major negative implications far beyond its confines, implications which undermine the liberal and democratic nature of a whole society.

 

 

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Notas

1 Entendem-se os termos «pós-moderno» ou «pós-modernismo» como sinónimos de relativismo e, consequentemente, de irracionalismo. Sobre a defesa da «racionalidade» e da «crítica racional», Karl Popper, O Mito do Contexto: Em Defesa da Ciência e da Racionalidade, org. de M. A. Notturno, s. e., Lisboa, Edições 70, s. d., passim.         [ Links ]

2 Paul Johnson, Modern Times: A History of the World from the 1920s to the Year 2000, 3.ª ed. rev., s. l., Phoenix Giant, 1999, p. 1. «The modern age began, Mr. Johnson announces in the first sentence of the book, in 1919 when Einstein’s theory of relativity was confirmed. Rarely if ever has an abstruse scientific theory so captured the public imagination. Only a few people were capable of understanding it as a theory of physics, but there were vast numbers ready to see relativity as relativism and to apply it immediately to morals, politics and other spheres of life. If absolutes were suspect in science, then they must be suspect in every area of life. The names of Freud and Marx were added to Einstein’s as new prophets, albeit chiefly in the minds of intellectuals; and, what with Freud’s challenge to religion and revealed ethics and Marx’s to private property and all bourgeois values, the materials of moral revolution were at hand, one which inevitably extended to the whole world of politics.» Robert Nisbet, «The will to power», in The New York Times, Late City Final Edition (Book Review Desk), 26 de Junho de 1983, secção 7, p. 1, col. 1. Albert Einstein, O Significado da Relatividade com a Teoria Relativista do Campo não Simétrico (trad. da 5.ª ed. original em língua inglesa por Mário Silva), s. e., Coimbra, Arménio Amado, Editor, 1958, pp. 168-171.

3 R. W. Hepburn, «Relativism, epistemological», in The Oxford Companion to Philosophy, ed. Ted Hoderich, s. e., Nova Iorque-Oxford, Oxford University Press, 1995, p. 757. «É longa a história do relativismo; remonta pelo menos ao final da Idade do Bronze no Próximo Oriente, um período que o epistemólogo J. Henry Breasted designou por ‘primeiro internacionalismo’». Paul Feyerabend, Adeus à Razão, s. e., s. l., Edições 70, s. d., p. 29.

4 Paul Feyerabend, op. cit., p. 29.

5 É claro que, caso venha algum dia a verificar-se o triunfo absoluto e universal do relativismo moral, estar-se-á perante um quadro de enorme ironia. Tal cenário contraditará o princípio segundo o qual o relativismo afasta liminarmente qualquer princípio universal, se não de autoridade, pelo menos de referência. R. W. Hepburn, «Relativism, ethical», in The Oxford Companion to Philosophy, ed. Ted Hoderich, s. e., Nova Iorque-Oxford, Oxford University Press, 1995, p. 758.

6 Ernest Gellner, Pós-Modernismo, Razão e Religião, s. e., s. l., Instituto Piaget, s. d., p. 40 (ed. original inglesa, Londres, Routledge, 1992).

7 Neste texto, «biografia» é sinónimo de «biografia histórica».

8 As afirmações entre aspas, favorecendo os argumentos pós-estruturalistas e pós-modernos, foram retiradas de Richard J. Evans, In Defense of History, s. e., Nova Iorque e Londres, W. W. Norton & Company, 1999 (ed. inglesa de 1997), pp. 3-4. Este livro foi elaborado, precisamente, com o objectivo de rebater, de forma sistemática, os argumentos epistemológicos próprios das «escolas» pós-estruturalistas e pós-modernas.

9 Por moralismo, que não se pratica em momento algum neste trabalho, entende-se uma doutrina e uma prática que tendem a fazer da moral algo de absoluto, que se basta a si mesma e à qual tudo se subordina. O moralismo, enquanto tal, tende a confundir-se com um valor absoluto. Não é tal proposição que orienta a argumentação subjacente a este texto.

10 Isaiah Berlin, «A inevitabilidade histórica», in A Busca do Ideal: Uma Antologia de Ensaios, ed. Henry Hardy e Roger Hausheer, prefácio de Noel Annan, introdução de Roger Hausheer, s. e., Lisboa, Editorial Bizâncio, 1998, p. 239. Ou ainda: «No que diz respeito à avaliação (à apreciação, à judiação) na ciência da história, verificámos que era impossível eliminá-la: quer sejam expressos explicitamente ou contidos implicitamente, os juízos de valor emergem dos próprios factos cuja constituição cognitiva exige a selecção dos materiais que o compõem; na selecção dos factos que o autor considera como historicamente importantes no enquadramento do sistema de referência dado; na concepção e esclarecimento dos factos. A nossa principal conclusão, a mais geral, é que a explicação, a compreensão e a avaliação são novas intervenções por meio das quais o factor subjectivo se introduz no conhecimento histórico; factor cujo papel e grau de incidência aumentam à medida que avançamos nas nossas reflexões sobre a subjectividade da verdade histórica, mas que assediamos ao mesmo tempo cada vez mais de perto, descobrindo, à medida que fazemos os nossos desenvolvimentos, as suas múltiplas facetas.» Adam Schaff, História e Verdade, 3.ª ed., Lisboa, Editorial Estampa, 2000, p. 218.

11 Cit. in Richard J. Evans, op. cit, p. 6. Em toda esta obra é possível encontrar-se mais adjectivação bastante viva contra o pós-modernismo, produzida por historiadores como Lawrence Stone, Raphael Samuel ou Arthur Marwick.

12 «[…] alguns temas por vezes qualificados como pós-modernistas, [encontram-se] muito presentes no ar dos tempos: os valores são incertos; a objectividade é uma ilusão, mesmo tratando-se das representações científicas do mundo; a fortiori, não se pode considerar que os valores morais e, mais geralmente, todos os valores são dotados de objectividade. De facto, dizem-nos os «pós-modernistas», há que considerar que as crenças colectivas são traços culturais. Estes traços podem apresentar uma maior ou menor coerência entre si; na versão «estruturalista» do pós-modernismo, o seu significado reduz-se a essa mesma coerência. Na sua versão neomarxista ou neonietzschiana, os valores são considerados ilusões que cobrem fenómenos de «dominação». Raymond Boudon, O Justo e o Verdadeiro: Estudos sobre a Objectividade dos Valores e do Conhecimento, s. e., s. l. Instituto Piaget, s. d., p. 36.

13 Sobre a escassa reflexão teórica que o género biográfico, em geral, merece, v. as considerações de Paula R. Backscheider, Reflections on Biography, s. e., s. l., Oxford University Press, 2001 (1.ª ed., 1999), pp. XIII-XXII e passim.

14 Não se discute aqui, apenas se dá como aceite, o reconhecimento de que história e/ ou historiografia e a biografia são géneros diferentes, independentemente de terem pontos em comum. De qualquer forma, junta-se como argumento a separação que os antigos estipularam e muitos contemporâneos aceitam. «Suetonio relata en las Vidas de los Césares los hechos del mismo período que Tácito narra en sus Anales e Historias, salvo los de la vida de César. Sin embargo, la lectura de la obra de ambos pone de relieve enseguida la capital diferencia que los separa. La narración de Suetonio hay que enfocarla teniendo en cuenta el género biográfico, que entre los antiguos se diferenciaba del histórico, aunque el tema a veces fuera el mismo.» Vicente Picón, «Introducción», in Suetonio, Vidas de los Césares (ed. e trad. de Vicente Picón), 2.ª ed., Madrid, Cátedra, 2000, pp. 66-67.

15 Ian Kershaw, Hitler, 1889-1936: Hubris, s. e., Nova Iorque e Londres, W. W. Norton, 1999.

16 Id., ibid., p. XXI, itálicos nossos.

17 Carta assinada por Nina Andreyeva, publicada a 13 de Março de 1988 no Sovietskaya Rossiya (Rússia Soviética). Suspeitou-se de que o seu verdadeiro autor fosse um membro destacado do Partido Comunista da URSS, opositor de Gorbatchev (Yegor Ligachev, membro do Politburo). Cit. in Adam B. Ulam, Stalin. The Man and His Era, s. e., Boston, Beacon Press, 1989 (1.ª ed., 1973), p. XVII. «A year later [1988] Gorbachev progressed to an outright condemnation of Stalin, during a special Party meeting provoked by the ‘Nina André Eva’ affair in April 1988. (Gorbachev’s conservative rivals within the Communist Party leadership engineered the publication in a government newspaper of an article under the name ‘Nina André Eva’ calling for a return to Stalinist values.) To Gorbachev’s fury and dismay, the article was widely applauded within the Party. Chernyaev records him as saying: ‘There are no two ways about it. Stalin was a criminal, devoid of any morality.’» Robert Cottrell, «Founding Father», in The New York Review of Books, vol., XLVIII, n.º 7, 26 de Abril de 2001, pp. 21-22.

18 «Os termos de referência da teoria fundamental e clássica do conhecimento incluíam a assunção do postulado de que existia uma via correcta e outra exacta no percurso conducente à aquisição do conhecimento. O problema era descobrir a diferença e, uma vez esta localizada, justificá-la.» Ernest Gellner, op. cit., p. 60.

19 Há até quem considere que o juízo moral é intrínseco à produção historiográfica ou à biografia. «The instrument of the novelist and of the historian is the same. It is our common, everyday language. History, unlike the sciences, has no language, indeed no vocabulary of its own […] History consists of words, because we think, speak, teach, and write with words. Thus Flaubert’s celebrated mot juste must be a standard not only for the novelist but also for the historian who ought to know (juste) that the choice of every word is not only a stylistic but a moral choice.» John Lukacs, A Thread of Years, s. e., New Haven e Londres, Yale University Press, 1998, pp. 4-5. «Above all, biographers are decision-makers whose decisions matter. From a variety of perspectives, they judge and evaluate, and the act of interpretation is ever present, inseparable from every other action.» Paula R. Backscheider, Reflections on Biography, s. e., s. l., Oxford University Press, 2001 (1.ª ed., 1999), p. XXI.

20 «’Moral principles are universal and timeless’, Kissinger writes. Foreign policy is bounded by circumstance; it is, as Bismarck noted, ‘the art of the possible,’ ‘the science of relative’. When moral principles are applied without regard to historical conditions, the result is usually an increase in suffering rather than it’s amelioration.» Thomas L. Friedman, «How to run the world in seven chapters», in The New York Times on the Web, 17 de Junho de 2001.

21 Jonathan Glover, Humanity: A Moral History of the Twentieth Century, s. e., Londres e New Haven, Yale University Press, 2000, p. 406.

22 Aurelio Pérez Jiménez, «Introducción general», in Plutarco, Vidas Paralelas, I, Teseo — Rómulo. Licurgo — Numa (introdução geral, trad. e notas de Aurelio Pérez Jiménez), 1.ª ed., Madrid, Editorial Gredos, 2000 (1.ª ed., 1985), p. 32.

23 Vicente Picón, op. cit., pp. 76-77. Em «consonância» com esta ideia, há quem considere que a «oposição entre virtudes e vícios é a chave que subjaz à estrutura da obra suetoniana e que a análise dos seus rasgos positivos, negativos e neutros nos permite realizar a valorização definitiva de cada um dos Césares» (id., ibid., p. 77). Há um outro aspecto muito relevante em toda esta problemática do lugar do juízo ético no trabalho do biógrafo. Diz respeito à questão da definição do carácter do biografado e à sua relevância na estrutura e na economia de qualquer biografia. Uma definição breve mas incisiva do problema foi feita nos seguintes termos: «[…] John F. Kennedy claimed consistently to be a moral leader, but was he, in fact, an exemplar of high personal character? And if not, was it not possible to be an effective president of the United States without necessarily being personally virtuous? The question of character seemed to be the pivotal issue in arriving at a clear understanding of the life and legacy of our 35th president.» Thomas C. Reeves, A Question of Character. A Life of John F. Kennedy, s. e., s. l., Forum, 1997 (1.ª ed., 1991), p. 11.

24 Karl R. Popper, «O mito do contexto», op. cit., pp. 67-71 e 86.

25 O pensamento crítico característico da «nossa civilização ocidental advém do choque, ou confronto, de diferentes culturas e, por conseguinte, do choque, ou confronto, de diferentes contextos» (id., ibid., pp. 60-61).

26 Para uma análise da «pseudo»-historiografia negacionista do holocausto, Michael Shermer e Alex Grobman, op. cit..

27 Geoffrey Wheatcroft, «Bearing false witness», in The New York Times Book Review, 13 de Maio de 2001.

28 Sobre o carácter singular dos trabalhos de David Irving, naquilo que ao revisionismo da relação do nacional-socialismo alemão com a questão judaica diz respeito, Michael Shermer e Alex Grobman, Denying History. Who Says the Holocaust never Happened and Why do They Say It?, s. e., Berkeley, Los Angeles, Londres, University of California Press, 2000, pp. 188- -202, e Richard J. Evans, Lying about Hitler: History, Holocaust and David Irving Trial, s. e., Nova Iorque, Basic Books, 2001.

29 Marc Bloch, Apologie pour l’histoire ou Métier d’historien (trad. portuguesa: Introdução à História, 4.ª ed., Publ. Europa-América, s. d.).

30 Uma crítica com alguma semelhança àquela por mim suscitada a este excerto do livro de Marc Bloch encontra-se em Tzvetan Todorov, As Morais da História, s. e., s. l., Publicações Europa-América, s. d., pp. 9-10.

31 O melhor relato da vida de Winston Churchill ainda hoje disponível foi redigido por Sebastian Haffner. Não lhe escapou, porque, caso contrário, tratar-se-ia de uma biografia truncada, o juízo moral sobre a personagem, nomeadamente por contraposição a Hitler. Sebastian Haffner, Winston Churchill. Una Biografía, trad. de Rosa Sala Rose, s. e., Barcelona, Ediciones Destino, 2003 (1.ª ed. alemã, 1967), pp. 143 e 173-175, onde são sublinhadas as suas motivações na luta que protagonizou contra Hitler e o nazismo.

32 Um bom exemplo deste cinismo é o último romance de Gore Vidal, The Golden Age, s. e., s. l., Little, Brown & Company, 2000.

33 Como notou Paul Johnson, Trotsky, enquanto político e intelectual, pode ser um bom exemplo de como o juízo moral tem cabimento na análise histórica e do peso muitas vezes marginal que deve ser atribuído ao determinismo imposto pelas circunstâncias. «Trotsky remained a moral relativist of the most dangerous kind right to the end. ‘Problems of revolutionary morality’, he wrote in his last, posthumous book, ‘are fused with problems of revolutionary strategy and tactics.’ There were no such things as moral criteria; only criteria of political efficacy. He said it was right to murder the Tsar’s children, as he had done, because it was politically useful and those who carried it out represented the proletariat; but Stalin did not represent the proletariat — he had become a ‘bureaucratic excess’ — and therefore it was wrong for him to murder Trotsky’s children. Trotsky’s followers are, of course, notorious for their attachment to this subjectively defined code of ethics and contempt for objective morality.» Paul Johnson, op. cit., p. 263.

34 A argumentação utilizada não pressupõe qualquer definição de «bem» ou de «bom». Aliás, a definição de «bem» não se consegue apenas por oposição àquilo que é «mau», mas também por oposição ou contraposição a outras formas de «bem». Nicholas Dent, «Good», in The Oxford Companion to Philosophy, ed. Ted Hoderich, s. e., Nova Iorque-Oxford, Oxford University Press, 1995, p. 322.

35 Opinião diferente foi sustentada em Arno J. Mayer, The Furies. Violence and Terror in the French and Russian Revolutions, s. e., Princeton, New Jersey, Princeton University Press, 2000, passim.

36 R. W. Hepburn, «Relativism, ethical», in The Oxford Companion to Philosophy, p. 758.

37 Richard Schacht, «Nietzsche, Friedrich Wilhelm», in The Oxford Companion to Philosophy, p. 621.

38 Norman Stone, «Grim eminence», in London Review of Books (20 de Janeiro de 1982), pp. 9-12, cit. in Richard J. Evans, op. cit., p. 9.

 

* Departamento de História da Universidade de Évora (1 de Julho de 2002); fmsmartins@mail.telepac.pt ou martinez@uevora.pt.

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