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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.171 Lisboa jul. 2004

 

Bent Flyvbjerg, Making Social Science Matter: Why Social Inquiry Fails and How It Can Succeed Again, Cambridge, Cambridge University Press, 2001.

 

A obra de Bent Flyvbjerg coloca-nos três questões centrais que, tendo como ponto de partida o domínio epistemológico clássico, nos orientam para duas temáticas transversais: acção e valor. A primeira é central ao domínio epistemológico num sentido estrito — o que é o conhecimento? — e assume-se como um ponto de partida estruturante: é aqui que reside a separação entre as «ciências naturais» e as «ciências sociais». A segunda procura introduzir uma nova dinâmica na percepção do que é o conhecimento e de como ele é apropriado pelos indivíduos em processos de aprendizagem e acção — como se adquire o conhecimento e as capacidades? Por fim, a terceira questão assume um carácter valorativo ao introduzir a questão dos fins que regulam as duas questões anteriores — para que serve o conhecimento?

Se as questões apresentadas não são propriamente inovadoras, entendemos que há um certo grau de inovação na forma como o autor procurou encontrar respostas e como estas se foram constituindo, quer em novas questões, quer em possibilidades de intervenção no real. Tenhamos em conta que Bent Flyvbjerg é um académico do planeamento, com uma experiência adquirida na relação entre o Regional Planning Authority do Ribe County Council da Dinamarca e a Universidade de Aalborg 1, instituição onde lecciona e investiga. Não tendo tido o privilégio de conhecer pessoalmente o autor, penso que este dado biográfico pode ser relevante para o entendimento do carácter da sua obra.

Esta pode ser entendida em duas partes fundamentais. Uma primeira, que tem como ponto de partida a primeira questão enunciada — o que é o conhecimento? —, situa as ciências sociais num domínio epistemológico próprio. Ao fazê-lo, começa por procurar respostas para uma segunda questão, mais específica, mas determinante na forma como o trabalho científico pode ser entendido neste domínio: é possível a teoria em ciências sociais? Se a sua reflexão parte de uma visão de «teoria ideal» definida através de seis propriedades fundamentais 2, o autor sugere que façamos um percurso crítico em torno de quatro argumentos acerca da possibilidade e/ou impossibilidade de produzir teoria em ciências sociais: o argumento pré-paradigmático de Richard Rorty; o argumento hermenêutico- fenomenológico de Anthony Giddens e Harold Garfinkel; o argumento da contingência histórica de Michel Foucault; o argumento das competências tácitas de Pierre Bourdieu e Hubert Dreyfus. Da avaliação deste percurso conclui que os princípios a verificar na avaliação de uma teoria científica não são concretizáveis em ciências sociais e que, como tal, não é possível fazer teoria neste domínio científico. É necessário, portanto, rever os princípios epistemológicos que servem de fundamento à constituição e desenvolvimento do trabalho científico, assim como as formas de aprendizagem e desenvolvimento de capacidades. E é precisamente através da análise dos processos de aprendizagem proposta por Dreyfus que Flyvbjerg começa a delinear a sua proposta de reformulação epistemológica.

A tipologia dos processos de aprendizagem desenvolvida por Hubert Dreyfus 3, não anulando a importância da lógica ou das regras, diz-nos que qualquer desempenho humano só pode alcançar a perícia se for intuitivo, sincrónico, holístico, isto é, compreendido, na medida em que uma dada situação liberta uma imagem que tudo engloba: problema, objectivos, planos, decisão e acção. Dreyfus sugere-nos o termo a-racional como forma de superar a separatividade introduzida pela razão: o termo racional foi tomado por pensamento analítico, isto é, com separação consciente do todo em partes, e esta divisão originária levou a uma divisão final na compreensão do mundo e na compreensão do homem como um ser total. O termo a-racional, por contraste, estando conotado com o comportamento situacional sem a divisão analítica do todo em partes e sem a avaliação efectuada com base em regras independentes do contexto, pressupõe uma integração do conhecimento na acção. E a sua implicação central é a de que a acção levada a cabo com altos níveis de competência só pode ser realizada com base numa apropriação intuitiva 4 do contexto liberta da formalização e do constrangimento de regras rígidas. Pierre Bourdieu 5, na mesma linha de reflexão, sugere também que a actividade humana não pode ser reduzida a um conjunto de regras, referindo-se ao indivíduo «virtuoso» e à sua acção («perícia») para exprimir um significado equivalente ao «perito » de Dreyfus e à sua acção («excelência »). Os termos, que poderão dar origem a desenvolvimentos conceptuais, explicitam não só o agente, como também os processos de acção que ele desencadeia. Ora, está assim aberto o caminho para a resposta à segunda questão central da obra de Flyvbjerg e que articula conhecimento com acção: o conhecimento e as capacidades são adquiridos através da experiência.

Se a teoria não consegue apropriar- se do contexto porque procura princípios universais e o conhecimento pericial é dependente do contexto, então os novos princípios de orientação epistemológica devem ser ancorados no contexto. Esta proposta de reorientação ganha forma na segunda parte da obra, onde o autor procura uma alternativa epistemológica para a situação actual das ciências sociais. E fá-lo tendo como ponto de partida a ideia aristotélica de phronesis, que procura desenvolver em três possibilidades de interpretação contemporânea: (i) o poder explicativo do exemplo pode encontrar uma fórmula metodológica no estudo de caso; (ii) deve relacionar-se valor e poder nos contextos de acção; constitui este diálogo com base nas reflexões propostas por Friedrich Nietzsche, Michel Foucault e Jurgen Habermas; (iii) apresenta-nos um conjunto de princípios metodológicos que definem os contornos da teoria social de carácter phronético e que têm como propósito fazer a ligação entre uma mudança de carácter epistemológico e uma prática científica concreta. Vejamos em primeiro lugar como constitui a revisão contemporânea da ideia de phronesis.

A ideia aristotélica de phronesis é-nos apresentada por Flyvbjerg, não como uma reflexão filosófica em torno do conceito, mas sim como uma apropriação prática da sua essência com vista a potenciar uma mudança epistemológica que serve fundamentalmente para constituir a ideia de valor como princípio epistemológico das ciências sociais. Associando o ideal científico moderno, desde o iluminismo, à virtude intelectual a que Aristóteles chamou episteme e que diz respeito aos princípios universais e à produção de conhecimento que é invariável no tempo e no espaço e que se alcança com a ajuda da racionalidade analítica 6, sugere-nos que a viragem para os valores deve ser acompanhada de uma viragem em direcção à presença do contexto na formulação da teoria, tal como esta é proposta na idealização de duas outras virtudes aristotélicas: techne e phronesis. Se a techne encontra uma correspondência terminológica actual no termo técnica, sendo entendida como conhecimento pragmático, variável, dependente do contexto e orientado para a produção — fundamentado por uma racionalidade prática instrumental orientada para um objectivo consciente —, a phronesis não tem uma correspondência actual. Ela representa o conhecimento ético e a deliberação sobre valores com referência à praxis. Sendo um conhecimento pragmático, variável e dependente do contexto, tal como a técnica, ela orienta-se para a acção, baseando-se numa racionalidade de valor. Não procura um fim objectivo consciente, mas sim a orientação de uma ética situada no contexto. Ora, Flyvbjerg assume que techne e episteme estão sobrevalorizadas e sobejamente desenvolvidas na epistemologia moderna, sendo fundamental dar um espaço de crescimento à ideia de phronesis.

Mas como ganha forma esta mudança de orientação? O papel das ciências sociais será o de desenvolver análises e interpretações do estatuto dos valores e dos interesses nas sociedades contemporâneas com vista ao comentário e à acção social, isto é, à praxis. O ponto de partida de uma análise clássica de tipo phronético pode ser identificado através de três questões racionais valorativas (Para onde estamos a dirigir- nos? Essa direcção é desejável? O que deve ser feito?) que orientam a acção do cientista e do trabalho científico e que devem incorporar os pressupostos anteriormente enunciados. Em termos práticos, a fórmula metodológica proposta para esta reorientação valorativa centra-se no estudo de caso como possibilidade de investigação científica aplicada: ancorando-se no contexto, em metodologias mistas (qualitativas e quantitativas), pressupondo uma boa narrativa como forma de transmitir o conhecimento, aproxima-se dos sujeitos em acção e assume também um carácter etnográfico. Mais ainda, ao supor que cada caso é um caso, contribui para que se desenvolvam metodologias de análise e competências de investigação diferenciadas para cada situação, por um lado, e para que se transmita de forma eficaz, simples e clara a mensagem científica e o conhecimento adquirido pela experiência da investigação, por outro. E assim está constituída uma via possível de resposta à terceira questão inicial apresentada pelo autor: o conhecimento permite dar forma aos valores na prática humana.

Mas, se estas dimensões — conhecimento, prática científica e acção social — são objecto de um olhar epistemológico, do ponto de vista metodológico, a análise centra-se na articulação entre práticas sociais, valores e poder: é através da articulação entre valor e poder que se podem compreender os processos de transformação social, diz-nos. E ao estabelecer um diálogo entre Nietzsche, Habermas e Foucault salienta não só a importância da introdução de clareza na definição do processo democrático e na constituição de ideais abstractos que justifiquem e orientem os domínios de produção legislativa, de desenvolvimento institucional e planeamento estratégico, mas também a necessidade de desenvolver uma analítica do poder centrada nas relações em detrimento das estruturas. O poder será então entendido como o potencial que cada indivíduo, grupo ou instituição pode assumir na transformação do real, através da sua prática e da sua acção, orientando-se por valores.

É neste contexto de transformação que se chega à última proposta da obra: a apresentação de princípios metodológicos de tipo ideal. Eles definem possibilidades de desenvolvimento operatório de uma investigação de tipo phronético, mas são apresentados como um caminho possível, e não como um ponto de chegada definitivo: (i) focagem nos valores, colocando três questões clássicas: para onde vamos? Esse caminho é desejável? O que deve ser feito?; (ii) o poder no centro da análise: poder como produtividade e positividade, não apenas como restrição e negatividade; (iii) ênfase nas pequenas coisas: a ênfase dada à minúcia, que se opõe de forma directa a muita da sabedoria convencional acerca da necessidade de enfoque nos «problemas importantes», tem o seu fundamento na experiência fenomenológica, que nos diz que as pequenas perguntas nos levam muitas vezes a grandes respostas; (iv) olhar para a prática antes do discurso: este tipo de proposta tem uma relação metodológica próxima, mas não exclusiva, com a «vida quotidiana »; (v) estudar os casos e os contextos: a investigação de carácter phronético opera em termos de racionalidade prática e do juízo e estes operam em função da experiência prática; assim, a racionalidade prática e os juízos são melhor compreendidos se vistos como estudos de caso narrados e expostos; (vi) perguntar «como?» fazendo narrativa: a narrativa é a metodologia de exposição mais adequada para expor as respostas possíveis à questão central da phronesis: «como?»; (vii) associar agência e estrutura: os actores e as suas práticas são analisados em relação às estruturas; as estruturas são analisadas em termos de agência; assim, os actores e as estruturas estão interligados através da agência; (viii) dialogando com uma polifonia de vozes: a investigação de carácter phronético é dialogante no sentido em que inclui e encontra-se incluída numa «polifonia de vozes» em que a autoridade máxima não é atribuída ao investigador.

A obra de Bent Flyvbjerg vem confirmar que é possível, e não só é possível como parece ser desejável, que a prática profissional levante questões sérias e produtivas à prática científica e à definição de orientações epistemológicas. Tendo como ponto de partida uma situação de definição e escolha política no domínio do planeamento urbano, o autor propõe-nos um itinerário de questões teóricas e epistemológicas que permita fundar a questão inicial num contexto científico e valorativo, com uma capacidade de diálogo e reflexão notáveis.

No entanto, ao propor esse itinerário, verifica que a prática científica e as questões epistemológicas estão profundamente separadas da prática humana. E, partindo deste pressuposto, a sua procura aponta para a necessidade de encontrar ligações fortes entre uma teoria do conhecimento (epistemologia) e uma teoria da acção (ética) que sirvam de referência fundamental para o processo de escolha política. É aqui que articula de forma inovadora um conjunto de referências fundamentais no pensamento sociológico, epistemológico e filosófico com vista à constituição de um domínio de reflexão próprio que se nos afigura de grande valor prático e teórico. Se abordagens específicas deste trajecto já vinham sendo definidas por autores de renome — vejam-se os casos de Touraine 7 e Bourdieu —, assim como pela corrente teórico-metodológica da investigação/acção, a obra de Flyvbjerg é um contributo enriquecedor para a última das três questões centrais que nos coloca — para que serve o conhecimento?

E, se não for o caso de o leitor se sentir particularmente intrigado ou fascinado por este tipo de reflexão, a mera constatação de que muita da produção científica no domínio das ciências sociais fica deixada ao esquecimento, por um lado, e de que há muitas práticas humanas que podiam ser enriquecidas com o conhecimento científico deste domínio específico, por outro, parece ser justificação suficiente para que, pelo menos, se leia esta obra e se entre com seriedade no debate que ela propõe.

João Pato

 

 

 

1 Aalborg ficou conhecida como uma das primeiras experiências de planeamento realizadas na Dinamarca.

2 A teoria ideal deve ser: (i) explícita; (ii) universal; (iii) abstracta; (iv) discreta; (v) sistemática; (vi) completa e capaz de prever.

3 H. Dreyfus, Mind over Machine, Nova Iorque, Free Press, 1986.

4 Flyvbjerg define intuição como «the ability do draw directly on one’s experience — bodily emotional, intellectual — and to recognize similarities between these experiences and new situations. Intuition is internalized; it is part of the individual» (p. 10).

5 P. Boudieu, Esquisse d’une théorie de la pratique, précédé de trois études d’ethnologie kabyle, Genebra, Librairie Droz, 1972, e Le sens pratique, Paris, Les Éditions de Minuit, 1980.

6 Com uma correspondência aos princípios identificados anteriormente para a teoria ideal e pode ser entendida como conhecimento científico independente do contexto.

7 A. Tourraine, Le retour de l’acteur, Paris, Fayard, 1984.

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