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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.171 Lisboa jul. 2004

 

Cristiana Bastos, Miguel Vale de Almeida, Bela Feldman-Bianco (coords.), Trânsitos Coloniais: Diálogos Críticos Luso-Brasileiros, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2002, 422 páginas.

 

Na génese desta colectânea estão dois encontros científicos: o workshop «Nação e diáspora: diálogos cruzados luso-brasileiros», organizado por Bela Feldman-Bianco em Outubro de 1998, na Universidade de Campinas (Brasil), e o seminário «Tensões coloniais e reconfigurações pós-coloniais: diálogos críticos luso-brasileiros», organizado pelos coordenadores do presente livro, em Novembro de 1999, no Convento da Arrábida. Em pano de fundo ecoam os recentes debates sobre colonialismo e pós-colonialismo.

A obra é constituída por quatro secções, que se subdividem em capítulos, assinados por diferentes investigadores: «Lusofonias críticas» (textos de Miguel Vale de Almeida, Omar Ribeiro Thomaz e Ana Maria Galano Linhart, recentemente falecida); «Poder e margens» (textos de João de Pina Cabral, Nuno Porto, Cristiana Bastos e António Carlos de Souza Lima); «Ideologia e etnicidade» (Silvia Hunold Lara, John M. Monteiro e Giralda Seyferth); «Trânsitos e tráficos » (Jill Dias, João Fragoso e Manolo Florentino, Gladys Sabina Ribeiro, Robert Rowland e Bela Feldman- -Bianco). Dos dezassete autores que participam nesta obra, onze trabalham no Brasil e seis em Portugal. Olhando para este conjunto em função do país e da área científica, verifica-se que, entre os brasileiros, encontramos uma socióloga, quatro antropólogos e seis historiadores (dois dos quais são co- -autores de um único texto); entre os radicados em Portugal, encontramos cinco antropólogos e só uma historiadora (professora num departamento de antropologia).

Devido à enorme diversidade de temas tratados nesta colectânea, não nos debruçamos sobre todos os capítulos. Optámos por destacar os textos que, por estarem mais próximos das nossas áreas de interesse, convidam a um diálogo crítico.

Depois da introdução propriamente dita, assinada pelos três antropólogos que coordenam o livro, aparece- -nos o capítulo de Miguel Vale de Almeida («O Atlântico Pardo. Antropologia, pós-colonialismo e o caso lusófono»), que pode ser lido como uma espécie de introdução teórica ao projecto. A partir da experiência colonial portuguesa, é-nos proposta uma reflexão sobre a antropologia e sobre o pós-colonial (isto é, os complexos de relações transnacionais entre as ex-colónias e as ex-metrópoles depois do fim do colonialismo) enquanto novo campo de pesquisa para aquela disciplina. Neste texto, de certa forma programático e orientador de futuras pesquisas, destacaríamos três aspectos. Primeiro, o autor salienta que os estudos pós-coloniais não se devem concentrar exclusivamente nas representações e no discurso, mas englobar também a economia e a política (p. 27); segundo, reconhece que para estudar o colonialismo e o pós- -colonialismo é necessário colocar a história em primeiro lugar (p. 29); terceiro, lembra que a análise da especificidade do colonialismo português não deve significar a aceitação de um suposto excepcionalismo moral e cultural (pp. 31-33). Da mesma forma, acrescentamos nós, a crítica do luso- -tropicalismo também não pode conduzir à negação das especificidades da experiência colonial lusa.

Parece-nos, porém, que nem sempre se escapa à armadilha de que se procura fugir. Critica-se a componente emocional e ideológica do luso- -tropicalismo e facilmente se resvala para a rejeição de tentativas de construção de uma entidade ou fórum em que se reúnam os espaços que foram colonizados por Portugal. A ideia de um passado comum é vista, à partida, como neocolonial e, portanto, negativa. Ao enredarmo-nos nestes preconceitos, não nos arriscamos, perversamente, a pôr em causa a validade e o interesse de fóruns intelectuais de debate como os que deram origem a esta colectânea?

É aqui que detectamos a necessidade, a prioridade, a urgência da história, a que Vale de Almeida alude. Sem conhecimentos de base desta disciplina, sem a noção da sua enorme complexidade, das continuidades, das transformações e das rupturas, das diferenças espaciais e temporais, é possível generalizar, negar relações, fazer equivaler comunidades, regiões, momentos, situações, proferir afirmações peremptórias sobre o passado baseadas em preconceitos ou na observação do presente.

No texto «Tigres de papel: Gilberto Freyre, Portugal e os países africanos de língua oficial portuguesa», Omar Ribeiro Thomaz analisa com rigor o pensamento de Gilberto Freyre sobre a identidade entre os espaços colonizados por Portugal e as posteriores apropriações/manipulações de que o luso-tropicalismo foi alvo. Porém, na sequência da leitura crítica que faz da acção da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa e dos seus pressupostos ideológicos, acaba por pôr em causa a existência de relação entre os espaços/povos que fizeram parte do império português. Para este autor, a ideia de «relação» e a frase feita «em português nos entendemos » são demasiado equívocas, configurando, no mínimo, uma violência retórica (cf. p. 57).

Jill Dias, mais à frente, acaba por responder a Omar Thomaz, quando aborda o caso dos ambakistas («Novas identidades africanas em Angola no contexto do comércio atlântico»). Tal como outros «grupos de intermediários comerciais, de descendência e cultura mista, europeia e africana, cujas actividades estavam intimamente ligadas à manutenção e expansão do poder português no interior », os ambakistas, oriundos do interior leste de Luanda, falavam português e identificavam-se como cristãos (p. 303). Até às primeiras décadas do século XIX, os ambakistas foram mediadores entre a administração colonial e as estruturas de poder africano, gozando de grande prestígio político. Com «a ocupação militar e administrativa colonial mais efectiva do hinterland de Luanda», do início do século XX, assistiu-se à exclusão da burguesia africana que tinha adaptado e incorporado símbolos culturais portugueses e cristãos para se impor junto das sociedades africanas autónomas do interior. Correlativamente, deu-se um processo de depreciação dos ambakistas.

A autora sublinha a complexidade das dinâmicas sociais e culturais geradas pela abertura do tráfico transatlântico nas diferentes sociedades africanas da costa e do interior angolano. O caso que apresenta, paradigmático das ambivalências e paradoxos gerados historicamente por processos de sincretismo cultural, demonstra que as tentativas de interpretação das relações coloniais portuguesas em Angola (como em qualquer outro espaço do antigo império português) não podem fundar-se na simples dicotomia entre colonizador e colonizado (p. 314). Houve, de facto, relação entre determinados grupos, em determinadas áreas, circunstâncias e épocas históricas. Assumi-lo não implica qualquer juízo de valor ou de intensidade.

Quanto à língua, também convém esclarecer dois pontos. Embora nem todos falem português nos espaços que foram colonizados por Portugal, o que é certo é que sempre houve grupos que falaram português e a afirmação do nacionalismo nas ex- -colónias portuguesas passou pela assunção do português como língua oficial. Daí resultou o crescimento do número de falantes de português desde a independência até aos nossos dias, sobretudo nos meios urbanos. O que não invalida reconhecer que, sob pena de alienarem o seu vínculo às realidades locais, os projectos de investigação ou de cooperação não poderão descurar as línguas nacionais africanas, que são as línguas maternas da grande maioria das populações (principalmente na Guiné-Bissau e em Moçambique).

O texto de Pina Cabral salienta outro aspecto da relação heterogénea, múltipla, ambígua e mutável, entre colonizador e colonizado: aquilo a que chama incomunicação intercultural, ou seja, o desconhecimento do outro apesar da convivência (p. 104). Em torno de um episódio de suposto canibalismo narrado por Henrique Galvão, Pina Cabral mostra que o colonizador, sentindo- -se ameaçado por populações com definições outras da realidade (ameaça simbólica) e pela incapacidade de controlar o espaço (ameaça geográfica), constrói uma fantasmagorização dos subalternos para legitimar as atitudes repressivas do poder colonial (pp. 111 e 113). Vancela, uma mulher moçambicana, provavelmente por pressão dos seus parentes e vizinhos que acreditavam que ela era a causa de qualquer infortúnio e a acusavam de bruxaria, confessou às autoridades coloniais ter «comido» o seu filho, acreditando que a «confissão » acarretaria efeitos positivos. Por seu turno, o administrador colonial entendeu essa «confissão» como prova da animalidade daquele povo.

Os administradores coloniais, que alimentavam o equívoco, usando as «confissões» de canibalismo como «prova» em processos judiciais, eram agentes de primeira linha do império e estiveram entre os principais obreiros do seu arquivo. Ao contrário do que Nuno Porto procura fazer crer no texto «O museu e o arquivo do império: o terceiro império português visto do Museu do Dundo, Companhia de Diamantes de Angola», a colonização portuguesa produziu memória documental e arquivo, este entendido tanto no sentido literal como no que Foucault lhe atribui. Não há nenhum império que possa ser administrado sem produção e circulação de documentos com vista à tomada de decisão. Tal como o autor refere, a cultura de arquivo, enquanto dispositivo de conhecimento e de exercício do poder, teve um grande incremento na viragem do século XIX para o XX, no início da colonização moderna da África (p. 120). E a experiência colonial portuguesa não se eximiu à cultura de arquivo.

De facto, a ideologia imperial do Estado Novo não se substituiu à produção de um conhecimento sobre o território, a fauna, a flora, as populações (nas vertentes antropométrica e etnográfica). O trabalho desenvolvido pela Junta de Investigações Coloniais/ Junta de Investigações do Ultramar e pelas suas missões sectoriais é demasiado volumoso para passar invisível, independentemente da avaliação que hoje se faça da sua qualidade científica.

Por outro lado, a administração colonial portuguesa foi uma «máquina de produção de papel» (documento/ informação/conhecimento). Quem consulta o Arquivo Histórico Ultramarino ou os arquivos nacionais de Angola e Moçambique sabe disso. Em todos os níveis da orgânica político- administrativa produzia-se e acumulava-se documentação que circulava em sistemas de informação bem definidos. Chegava-se à minúcia de exigir que os chefes de posto, os administradores de concelho e de circunscrição e os governadores de distrito das várias colónias portuguesas registassem diariamente as suas actividades em livros próprios, chamados diários de serviço, que eram remetidos periodicamente aos respectivos superiores hierárquicos.

Os argumentos de Nuno Porto, apesar de estimulantes em diversos aspectos e apoiados num assinalável aparato teórico, nem sempre são rigorosos e claros. Se a colonização efectiva da África portuguesa (e o respectivo aparato burocrático) só teve início no final do século XIX, esperar a existência de um arquivo com quinhentos anos é contraditório (p. 118). Por vezes, não se distingue ou confunde-se intencionalmente dois conceitos distintos: museu e arquivo. Não é exacto que «a situação vista do Dundo [deixe] adivinhar um império sem arquivo, onde este é substituído pela ficção da historiografia mitográfica na imaginação da nação ‘una do Minho até Timor’» (p. 130). Também não é rigorosa a dicotomia estabelecida entre a Diamang (cuja eficiência é associada, em grande medida, à existência de arquivo) e o Estado colonial português (considerado inoperante e envolto em fantasia).

O texto de Cristiana Bastos sobre a Escola Médica de Goa mostra como a experiência colonial portuguesa gerou um centro subalterno na Índia portuguesa, lugar de delegação por excelência, a partir do qual se distribuíram médicos para as outras colónias a partir dos finais de Oitocentos, numa lógica de «subalternidades sucessivas». A analogia que faz entre o estatuto de pivot da Índia lusitana, no campo da saúde, e de Cabo Verde, no campo do funcionalismo público, é muito certeira. De facto, tanto os médicos da Escola Médica de Goa como os funcionários administrativos cabo-verdianos foram utilizados enquanto mediadores dentro do império português (v. p. 147). Uns e outros faziam parte das elites crioulas que, embora subordinadas ao poder colonial português, foram agentes locais desse mesmo poder.

Giralda Seyferth revela que o nacionalismo brasileiro, apesar de se propalar plural, assentava na apologia do passado colonial (luso-brasileiro) e não se abria ao reconhecimento de outros grupos étnicos. No auge da segunda guerra mundial, a imigração alemã foi vista por Gilberto Freyre como potencial ameaça à formação social brasileira plural e mestiça (p. 286). A política de imigração do Brasil deu, por isso, prioridade ao elemento português, visto como matriz da brasilidade.

Esta prioridade parece não ter sido retribuída por Portugal no início da década de 1990. Bela Feldman-Bianco analisa os conflitos diplomáticos que eclodiram em 1993 entre Lisboa e o Itamaraty a propósito da negação de entrada em Portugal a um grupo de imigrantes brasileiros. Chama-lhe «drama familiar» e narra-o em quatro cenas. A autora salienta a necessidade de examinar as políticas de imigração do Estado português no âmbito da reconstrução do nacionalismo português no quadro da integração europeia e da omnipresente ênfase na unidade de sentimento e de cultura entre Portugal e as suas antigas colónias. No seu entender, os «discursos de ‘irmandade luso-brasileira’ e, portanto, de descendência comum só ajudam a mascarar as actuais políticas draconianas de imigração e as reconfigurações de dominação e subordinação entre países entrelaçados por antigas relações coloniais» (p. 413).

Importa, contudo, esclarecer que uma coisa é a prioridade política de Portugal, outra o referencial do imaginário nacional português. Se a partir dos anos 80 a prioridade política de Portugal tem sido a Europa, o nacionalismo português, baseado sobretudo no orgulho na história pátria e muito concretamente na história dos Descobrimentos, continua a afirmar- se universalista. Em contraponto aos «maus» nacionalismos, fechados, etnocêntricos e xenófobos, o nacionalismo português reivindica-se integrador e ecuménico (logo, benigno). O espaço de afirmação identitária supranacional de muitos portugueses estende-se hoje à Europa, à África, ao Oriente, ao Brasil… ao mundo, como outrora ao império. Como Bela Feldman-Bianco também refere, o discurso da irmandade lusófona não é unilateral, sendo também usado pelos próprios brasileiros e nacionais de antigas colónias portuguesas em África para justificar o seu direito de permanência em Portugal. Nesse sentido, dispositivos que serviram o colonialismo podem estar agora ao serviço de uma lógica multicultural.

Em jeito de balanço, destaque-se a qualidade científica da generalidade das investigações que este livro divulga e o facto de o mesmo ter nascido da vontade de discutir ideias, cruzar experiências de pesquisa, aprender com as investigações alheias e avançar no conhecimento de um objecto de estudo comum a antropólogos e historiadores radicados em Portugal e no Brasil: o antigo império português e as suas configurações pós-coloniais. Espera-se que estes diálogos (críticos e abertos à crítica) prossigam e venham a integrar investigadores de outras paragens que possam fornecer novos elementos de comparação e reflexão.

Cláudia Castelo

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