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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.171 Lisboa jul. 2004

 

Fernando Luís Machado, Contrastes e Continuidades — Migração, Etnicidade e Integração dos Guineenses em Portugal, Oeiras, Celta Editora, 2002, 464 páginas.

 

Se para definir esta obra tivéssemos de escolher um dos vocábulos do título, a opção recairia, inevitavelmente, no termo continuidade(s). Continuidade num trabalho rigoroso e sólido que Fernando Luís Machado vem desenvolvendo há mais de dez anos em torno de questões como a integração dos imigrantes e, especialmente, a identificação dos seus «espaços de etnicidade» no contexto da sociedade portuguesa, continuidade relativamente ao aprofundamento de determinadas temáticas (e. g., politização da etnicidade) que, inicialmente, se revelaram temas pioneiros na análise científica da imigração em Portugal, continuidade, enfim, em termos de aprofundamento de um caso de estudo (os guineenses) ao qual é aplicado o modelo analítico construído pelo autor (os capítulos 3 e 4 são, neste domínio, os mais didácticos) após análise do quadro migratório da Guiné-Bissau e dos percursos dos migrantes (capítulo 2) 1.

Este modelo analítico, explicitado de forma elegante na segunda metade do capítulo I, está assente em pressupostos bem definidos, concebendo «a etnicidade 2 como um espaço de contrastes e continuidades…» (p. 63) em relação ao grupo de referência (a maioria da sociedade de destino), construído a partir de dois eixos estruturantes (simplificadamente, o social e o cultural).

Cada um destes eixos estruturantes é, por sua vez, decomposto em três dimensões que, no caso social, correspondem à composição de classe (a que o autor atribui um carácter primário, uma vez que condiciona, «mais do que as outras, a posição particular de cada minoria nesse espaço e a possibilidade de essa posição se alterar no tempo...») (p. 39), à localização residencial e à estrutura etária e sexual. Relativamente ao eixo cultural, as três dimensões consideradas são a língua, a religião e a sociabilidade/padrões matrimoniais, que assumem o carácter de centralidade atribuído à composição de classe no eixo social.

A operacionalização do modelo, pensado para um contexto caracterizado por uma população maioritária e várias populações minoritárias, mas passível de aplicação noutras situações, permite verificar a relevância da etnicidade para as diferentes populações a que é aplicado o modelo — quanto maiores forem os contrastes sociais e culturais das minorias relativamente à maioria, mais relevantes são as pertenças etno-raciais. Trata-se de um modelo virtuoso, claramente formulado do ponto de vista teórico e operacionalizável (o autor identifica as variáveis que sustentam as seis dimensões consideradas) (p. 36), que permite localizar os vários grupos minoritários presentes em Portugal (populações dos cinco PALOP, luso-africanos, novos luso-africanos, ciganos e indianos) no espaço metafórico da etnicidade tanto em relação à maioria — tomada como referência — como uns em relação aos outros (p. 47).

Não obstante, há dois aspectos que merecem um comentário adicional, que, num dos casos, é até iniciado pelo próprio autor.

Em primeiro lugar, a designação dos eixos estruturantes como cultural e, sobretudo, como social, ainda que justificada, sobretudo no contexto de uma análise sociológica, pressupõe alguma simplificação que justificaria uma discussão mais aprofundada. Porque a obra, pela temática de que trata e pelo tipo de argumentação que desenvolve, interessa, evidentemente, a um público mais abrangente do que o correspondente aos sociólogos, antropólogos e estudantes das duas disciplinas, talvez tivesse valido a pena explicitar melhor por que é que uma dimensão demográfica e uma dimensão espacial (geográfica) aparecem amalgamadas num único eixo apenas designado como social. Mesmo aceitando a argumentação de Fernando Luís Machado de que a localização de classe dos membros das minorias, de resto muito bem discutida no capítulo 3, com uma interessante crítica ao conceito de subclasse (underclass), tem um papel mais relevante na identificação do seu posicionamento no espaço da etnicidade do que as outras dimensões, tal não é suficiente para relegar as restantes duas componentes para uma situação de «outras dimensões sociais» (p. 41). Ainda que esta observação se prenda com preocupações inerentes à minha própria filiação disciplinar, não se trata de qualquer essencialismo geográfico, mas tão-só de valorizar o espaço enquanto dimensão autónoma que condiciona e é condicionada pelos processos sociais, como, de resto, é relevado pelo próprio autor. Isto acontece quer na análise específica da localização geográfica — estando nós de acordo relativamente à menor concentração residencial dos imigrantes em Portugal e às características interétnicas de muitos bairros degradados da AML 3 — e da mobilidade espacial dos migrantes (capítulo 3), quer no capítulo 6, quando se debruça sobre a menor incidência (percebida pelos próprios) de racismo nos bairros residenciais, afirmando que este «será mais provável quando os membros dessas minorias formam enclaves habitacionais no meio da população maioritária do que quando estão dispersos» (p. 373). Em súmula, partilhamos a opinião de outros investigadores 4 de que a teoria social crítica deve incorporar o espaço como dimensão autónoma e não subordinada, combinando-a com outras — social, económica, cultural… —, de modo que se obtenham explicações mais completas para os fenómenos da sociedade.

Um segundo aspecto prende-se com a identificação de «localizações médias» das diferentes minorias, e dos guineenses em particular, no espaço metafórico da etnicidade. Esta questão é, no entanto, muito bem tratada pelo autor, que destaca o facto de as minorias não serem homogéneas nas várias dimensões que compõem os dois eixos configuradores do espaço da etnicidade. Assumindo as limitações do conceito de comunidade, designadamente pelo facto de pressupor uma visão falsamente homogeneizadora dos elementos que integram os grupos (p. 436), Machado dá um importante realce às diferenças internas existentes nos grupos minoritários, em termos de composição de classe, relações de género, filiação religiosa e outros (p. 37). De resto, a análise do grupo correspondente ao caso de estudo (guineenses) é sempre segmentada em termos de composição etária, sexual e profissional, para além de distinguir as situações de luso-guineenses (guineenses de nacionalidade portuguesa ou portugueses de origem guineense) e imigrantes (migrantes laborais guineenses propriamente ditos) e de ter em consideração as diferenças entre as várias «etnias» guineenses presentes em Portugal (papéis, manjacos/ mancanhas, muçulmanos e crioulos) 5.

No quadro de uma imigração selectiva, que incide mais particularmente sobre os grupos mais urbanos e escolarizados (p. 102), é destacado o perfil mais favorecido e «próximo» da maioria no caso dos luso-guineenses (pertença aos segmentos favorecidos das classes médias urbanas, níveis de instrução mais elevados, maior significado das famílias mistas exógenas), as origens urbanas, o catolicismo e a «crioulização» dos papéis e os menores recursos sociais de manjacos e muçulmanos, mais concentrados nas actividades da construção civil e com relações mais intensas com a Guiné.

Se este posicionamento crítico de Fernando Luís Machado relativamente às perspectivas homogeneizantes e simplificadoras que tendem a atribuir um perfil comum a grupos de migrantes marcados por diversas clivagens internas é extremamente enriquecedor, é pena que não tenha aprofundado um pouco mais a discussão em torno das próprias diferenciações internas da sociedade maioritária. Efectivamente, não são apenas as populações minoritárias que são marcadas pela diversidade interna; a assunção da maioria enquanto referencial comum, relativamente homogéneo, em relação ao qual se identificam contrastes e continuidades, merecia uma discussão crítica mais aprofundada. Na verdade, os contrastes «médios» podem esconder continuidades entre maioria e minoria neste ou naquele domínio específico (em termos de género ou posicionamento na estrutura de classes), e vice-versa.

Se o modo como é concebido o modelo analítico tem, em nosso entender, uma aceitação mais unânime devido ao seu carácter inovador no contexto português e às suas virtudes em termos de clarificação e identificação do espaço da etnicidade e de possibilidade de aplicação empírica, a proposta de leitura do autor relativamente à relação entre posicionamento no espaço da etnicidade e nível de inserção na sociedade de destino deixa um campo mais alargado para debate.

Em termos concretos, o autor estabelece uma ponte entre o posicionamento das diversas populações migrantes nos dois eixos estruturantes da etnicidade (simplificadamente, o social e o cultural) e os seus níveis de integração na sociedade de destino. Nas suas palavras, «etnicidade e integração não são, portanto, realidades necessariamente antagónicas. Se isso acontece nas situações de duplo contraste, em que contrastes sociais e contrastes culturais se reforçam mutuamente e a etnicidade se constitui como clivagem «estrutural », nas situações de baixo contraste a etnicidade é apenas uma diferença adicional num sistema mais amplo de diferenças…» (p. 70). Completando esta ideia, através do esclarecimento do significado de cada uma das dimensões da etnicidade, Machado refere que «a integração tende a ser menor nas minorias em que, apesar das continuidades culturais, o padrão de condições socioeconómicas prevalecentes deixa muitos dos seus membros em situação de pobreza ou vulnerabilidade à pobreza do que naquelas que, embora culturalmente contrastantes e fechadas sobre si próprias, não conhecem condições socioeconómicas desfavorecidas» (p. 70). Ao assumir que integração não é sinónimo de homogeneização cultural (p. 38) e ao enfatizar os contrastes sociais desvantajosos enquanto elemento de aprofundamento da exclusão das minorias étnicas, parece- nos que o trabalho deixa um pouco implícita nas entrelinhas a valorização de um ideal de integração 6, assente, basicamente, na eliminação das desvantagens sociais (contrastes «para baixo» experimentados pelas minorias) e no esforço para limitar a reprodução intergeracional destas. O final do capítulo 1 é relativamente elucidativo quanto a este aspecto, ao estabelecer uma relação entre uma sociedade potencialmente marcada por situações de racismo e xenofobia e o agravar dos contrastes sociais e culturais, que tenderão a dificultar o processo de integração das populações migrantes. Nas palavras do autor, «aumentando os níveis de igualdade de oportunidades e de participação social e política dos membros das minorias migrantes… os contrastes hoje marcantes dariam lugar a continuidades não só sociais, mas também culturais» (p. 74). Refira-se que, na perspectiva apresentada, os contrastes culturais, mesmo que possam atenuar-se na sequência de um processo capaz de gerar continuidades sociais mais fortes, não representam uma limitação à integração, correspondendo apenas a traços de distinção entre grupos de população, no contexto de uma sociedade marcada pela pluralidade. Apenas num cenário de agravamento das situações de exclusão (reforço dos contrastes sociais), apresentado ao fechar do trabalho, o potencial processo de maior «fechamento » das minorias étnicas, hetero e autopercebidas como «estranhas» à sociedade global, contribuiria para transformar a diferenciação cultural «numa clivagem estrutural socialmente disruptiva» (p. 441).

A este debate, que relaciona a integração com os dois eixos sustentadores da etnicidade, gostaríamos de acrescentar um terceiro pilar que, no contexto de uma sociedade marcada por possibilidades acrescidas de mobilidade real e virtual, tende a assumir uma importância crescente: a dupla pertença. Isto é, o «jogo em dois tabuleiros» referido pelo autor (o da sociedade guineense e o da sociedade portuguesa), mais marcado entre manjacos e muçulmanos, tem implicações sobre o processo de integração no destino, podendo mesmo falar-se em «dupla integração», uma vez que hoje as lógicas de pertença e presença não vão necessariamente a par. Neste sentido, parece-nos importante que os académicos portugueses que trabalham no domínio das migrações discutam os processos de inserção nas sociedades de destino tendo em consideração também o contexto relacional, efectivo ou virtual, que se estabelece com o contexto de origem. Afinal, talvez resida aqui o nosso maior contraste de perspectiva…

Jorge Macaísta Malheiros

 

 

 

1 Nos capítulos 5, 6 e 7 são tratados temas específicos — literacia, racismo e dimensão política da etnicidade — que assumem particular relevância no contexto dos debates contemporâneos sobre imigração em Portugal. Estes três capítulos, que, embora continuem a dar algum privilégio ao caso de estudo guineense e remetam, nos seus encerramentos respectivos, para uma linha de discussão em termos de contrastes e continuidades, assumem uma perspectiva mais ampla e mais autónoma face ao modelo de análise predefinido do que as componentes precedentes do texto. Ganha-se em termos de abrangência temática, mas perde-se alguma coerência interna. Talvez tivesse sido possível reduzir um pouco estes três capítulos, até porque uma parte do seu conteúdo não é inteiramente nova em termos do trabalho do autor.

2 Este conceito, discutido de uma forma crítica, na continuidade de trabalhos anteriores de Fernando Luís Machado, é definido como «a relevância que, em certas condições, assume, nos planos social, cultural e político, a pertença a populações étnica ou racialmente diferenciadas. Essa pertença traduz-se e é veiculada por traços como língua, religião, origem nacional, composição social, padrões de sociabilidade, especificidades económicas e outros…» (p. 29).

3 V., a este propósito, Malheiros, «Minorias étnicas e segregação nas cidades — uma aproximação ao caso de Lisboa no contexto da Europa mediterrânica», in Finisterra, XXXIII (66), CEG, 1998, pp. 91-118.

4 V., a este propósito, Edward W. Soja, Postmodern Geographies — The Reassertion of Space in Critical Social Theory, Londres, Verso, 1989.

5 Embora a categorização das «etnias» assente em critérios discutíveis, incluindo, por exemplo, os «muçulmanos» (categoria de base religiosa), mais do que um grupo étnico tradicional, a forma como esta está construída acaba por ter vantagens operativas, sintetizando a informação e facilitando a sua leitura.

6 Em momento anterior do texto, Machado faz uma apresentação crítica muitíssimo interessante das teses multiculturalistas e dos seus limites, nomeadamente a hipervalorização da pertença de cada indivíduo a uma determinada comunidade pretensamente caracterizada por uma cultura «única» e específica, relativamente inalterável, e o facto de todos os processos de aculturação serem impostos pelas culturas dominantes (p. 24).

 

 

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