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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.171 Lisboa jul. 2004

 

António dos Santos Pereira, O Parlamento e a Imprensa Periódica Beirã em Tempos de Crise (1851-1926), Porto, Edições Afrontamento / Assembleia da República, col. «Parlamento», n.º 11, 2002, 262 páginas.

 

Uma das tendências mais seguidas pela historiografia contemporânea portuguesa nos últimos anos tem sido a da abertura aos estudos regionais ou locais, delimitados como case-studies que permitem ilustrar tendências ou descobrir especificidades, assim enriquecendo posteriormente sínteses mais alargadas, no âmbito da história política, social e económica. É justamente nesse enfoque regional e local que se insere o livro de António dos Santos Pereira. Oscilando entre o registo da ciência política e o da história, o autor estabelece como seu objecto a análise crítica do discurso político na segunda metade do século XIX e no primeiro quartel do século XX, realizada quer através da imagem do Parlamento e dos parlamentares veiculada pela principal imprensa periódica da região da Beira Interior, quer através da agenda temática beirã que esses mesmos parlamentares apresentavam e discutiam em São Bento (v. p. 7).

Este objectivo obriga a precisar um pouco mais de que trata esta obra: não estamos perante uma história da imprensa ou da opinião pública na Beira Interior, como uma leitura apressada do título poderia fazer crer; nem estamos perante uma história do Parlamento entre a Regeneração e o colapso da República, embora este seja um assunto que vai aparecendo descontinuadamente ao longo do texto; tão-pouco se trata de uma monografia sobre a história político- social das terras beirãs, assunto que teria implicado um investimento na cronologia, na geografia, na política local e em indicadores sócio-económicos e culturais locais muito mais vastos e, porventura (ainda) impossível de fazer, no estado actual da historiografia portuguesa. Tendo um pouco de tudo isto, o livro de Santos Pereira nunca opta por um só daqueles caminhos — facto que se repercute muitas vezes na falta de um fio condutor na escrita — ou por uma tese que lhe sirva de esqueleto. A montante do próprio conteúdo da obra, uma referência não pode deixar de ser feita ao próprio âmbito cronológico do livro (1851-1926) e à forma como esse arco temporal é classificado: «tempos de crise». A não ser ao nível muitíssimo geral da longa duração — que requereria, ainda assim, uma justificação contextualizadora —, os 75 anos que mediaram entre os golpes de Saldanha e de Gomes da Costa não constituíram um tempo uniforme de crise. Para não ir muito longe, o Portugal fontista da Regeneração é um tempo de expansão, qualitativamente diferente dos anos da primeira metade do século XIX (esses sim de crise), e termina, enquanto modelo de desenvolvimento, com o choque do fim do século, que levará a Monarquia da contestação aberta (pós-1890) à substituição por um regime republicano com contornos de ciclo económico-social diferentes dos da Regeneração. Mesmo na Beira Interior, onde os ritmos de mudança não fluíam por certo à velocidade dos de Lisboa, estas nuances cronológicas devem ter sido sentidas.

O livro de António dos Santos Pereira divide-se em duas partes. A primeira, intitulada «Pretos, brancos e outros: a Beira Interior e o Parlamento no tempo da Monarquia», começa por traçar quais eram os ecos e a imagem do discurso e do agir políticos dos parlamentares beirões na imprensa periódica local, isto é, no jornalismo fazedor de opinião publicado no eixo Castelo Branco- Covilhã-Guarda e terras adjacentes (v. pp. 13-32). O diagnóstico apurado é globalmente negativo, confirmando quanto os portugueses (e sobretudo a partir das últimas décadas do século XIX), neste caso os beirões, se sentiam distantes da instituição parlamentar, críticos da sua obra, cépticos acerca do seu funcionamento e, em geral, sub-representados por aqueles mesmos que, de volta à aldeia, de tempos a tempos lhes arrancavam o voto. Segundo a leitura do autor dos jornais locais, faltavam à política parlamentar portuguesa em geral «construções mentais programáticas» de fôlego, sobejando-lhe, por contraste, «pragmatismo » e «imediatismo». Daí o discurso jornalístico, que veiculava uma visão baixa da política, do poder, das eleições, dos partidos, naturalmente mais cáustica quando se estava na oposição e mais esperançada quando se alinhava pelo poder. O segundo capítulo da primeira parte, «Os recenseamentos, as campanhas e as eleições, os partidos e os deputados» (pp. 33-50), exemplifica e confirma, localmente, o que se sabe serem as práticas políticas da Monarquia constitucional — os caciquismos familiares, a mecânica da compra do voto, a «chapelada» eleitoral, tudo contribuindo para o descrédito do regime parlamentar/ monárquico, que se acentuou nas últimas décadas do século XIX. De acordo com o autor, o «catonismo político», ou seja, um discurso de apelo à virtude pública e à pureza de ideais, como veículos de melhoramento moral da política e de correlativo saneamento da pátria, foi um tópico uma e outra vez hasteado por figuras gradas beirãs, que lograram altear a sua voz, a ponto de serem escutadas por todo o país (v. pp. 84-86).

As partes mais originais da obra são precisamente aquelas em que Santos Pereira saiu do abstracto da análise discursiva e desceu ao espaço concreto e aos homens históricos para traçar um esboço de prosopografia da elite política beirã e da geografia partidária daquela região. É então que se encontra a chave explicativa para o título de «Pretos, brancos e outros»: na sua expressão mais simples, a política beirã da segunda metade de Oitocentos era a luta entre os «brancos» de Francisco Tavares Proença, o lugar-tenente do Partido Progressista, e os «pretos» de Manuel Vaz Preto Geraldes, o célebre cacique albicastrense que dominou a máquina do Partido Regenerador e, depois, do Partido Constituinte nas terras da Beira. Cartografada num mapa, a mancha progressista beirã iria, de acordo com a reconstituição do autor, de Castelo Branco ao Fundão, com prolongamentos para Idanha-a-Nova, Proença-a-Nova e Belmonte, enquanto os regeneradores dominavam, quase por absoluto, o Vale do Zêzere (Beira do Pinhal, Vila de Rei, Sertã e Oleiros), registando- se uma maior divisão do eleitorado nas áreas da Covilhã e de Vila Velha de Ródão (v. pp. 48-49).

O capítulo que fecha a primeira parte intitula-se «A matriz beirã no Parlamento: o desenvolvimento agrícola e a esfera transformadora, as vias de comunicação, a questão social, a questão religiosa e outros temas » (pp. 51-86). O ângulo de análise mudou. Depois de analisada a presença do Parlamento na Beira, o autor averigua aqui a presença da Beira no Parlamento, ou seja, como, quando, onde e até que ponto funcionavam os circuitos de comunicação, pressão e representação das reivindicações locais no interior da sede do poder legislativo em Lisboa, a propósito das principais temáticas que preocupavam o quotidiano das elites beirãs — a propriedade da terra, a comercialização agrícola, a esfera transformadora (lanifícios e sedas), as vias de comunicação, a questão social, a questão religiosa, a instrução, a saúde, as reformas administrativas, o associativismo e até a condição feminina. Foi sobre estes assuntos que pediram a palavra os parlamentares eleitos pela Beira. O tom desalentado e crítico com que a imprensa periódica local ia acompanhando as iniciativas, propostas e discursos dos seus emissários em São Bento deixa adivinhar que não foi muito, no global, o que a Beira obteve dos governos de Lisboa nas últimas décadas do regime monárquico.

A segunda parte da obra — sob o título geral «Entre a república de Catão e o império do Messias anunciado » — realiza um itinerário semelhante ao traçado para a Monarquia, mas agora aplicado aos anos de 1910-1926. A despeito de muitas e dispersas esperanças que percorriam não apenas a Beira mas o país inteiro, a chegada da República não significou a investidura no poder de um qualquer Catão impoluto. Quando chegavam aos jornais publicados na Beira, a política republicana, o parlamento e os deputados republicanos já apareciam, sem solução de continuidade, com os mesmos vícios e os mesmos egoísmos do passado monárquico, pese embora a cultura cívica da imprensa se esforçasse, aqui e ali, por elevar o magistério da opinião pública (v. pp. 91-98).

Seria a Beira Interior uma região intrinsecamente reaccionária e, por isso, adversária declarada da República? O problema é enfrentado pelo autor no segundo capítulo desta segunda parte, «A geografia do republicanismo beirão» (pp. 99-108). Para Santos Pereira, a republicanização da Beira foi um processo filho de coisas tão pouco políticas como «o aumento da circulação automóvel», «o incremento da luz eléctrica», «o desenvolvimento das redes telefónicas » ou «as primeiras experiências da telegrafia sem fios» (p. 99). Mas, se é verdade que isto foi importante e que aquele processo efectivamente se deu, não resulta claro para o leitor qual foi a extensão geográfica da republicanização na Beira e a sua profundidade sociológica, pesem embora as listagens de associações, clubes, centros e profissionais republicanos apresentadas. Este é talvez o ponto em que o livro é mais impreciso — e até contraditório, tanto afirmando que «focos monárquicos» permaneceram na Beira com uma expressão «muito forte», para logo contrapor que o republicanismo se impôs «rapidamente no interior português » (p. 108).

Da presença da Beira, dos seus interesses e das suas vozes no novo Parlamento republicano pós-1910 trata o último capítulo (pp. 109-159). A leitura da imprensa do tempo permitiu ao autor detectar algumas novas ideias e novas linguagens no sentir e agir beirão — um patriotismo novo, uma consciência de cidadania nova, um uso recorrente de palavras-chave e temáticas francófilas. Mas por detrás dessa maior «modernidade no estilo» (p. 111) estavam velhos processos e velhas temáticas. Tal como na Monarquia, também na República os opositores políticos eram rasteiramente denegridos e as eleições eram negociadas nos bastidores; tal como na Monarquia, também na República os beirões queriam do Parlamento e dos governos um amplo leque de melhoramentos locais; finalmente, tal como na Monarquia, também durante a República a questão financeira, a questão operária (social), a questão religiosa, a questão administrativa, a instrução e a mulher foram os temas mais queridos da oratória parlamentar beirã, de permeio com novidades como as infra-estruturas de entretenimento e desporto e a primeira guerra mundial. Talvez tenham sido as consequências conjunturais desta última, somadas aos custos estruturais da interioridade nunca resolvidos naquelas terras, que levaram os beirões a assistir mais ou menos passivamente à morte do «Catão republicano » e à chegada do «Messias anunciado».

O livro de Santos Pereira termina com um extenso apêndice, de cerca de 80 páginas (pp. 165-248), constituído por um pequeno dicionário biográfico dos deputados, pares e senadores da e pela Beira (ou seja, quer os naturais da Beira, quer os que, originários de outras regiões, representaram a Beira no Parlamento). São, ao todo, cerca de 220 entradas, com informação concisa sobre as origens, carreira profissional e actividade parlamentar. Para o enfoque sob o qual a obra foi escrita talvez conviesse ter elaborado um quadro, cronológico, por legislatura e círculo, com a listagem nominal dos parlamentares beirões, dado que nas entradas individuais essa indicação nem sempre está completa. À parte esta observação, três outros pontos devem ser referenciados no que diz respeito a este apêndice. O primeiro é a inserção de parlamentares cuja actividade em São Bento decorreu fora, e antes, do arco temporal tratado pelo autor, facto que baralha o critério de selecção. O segundo é o tratamento e extensão muito desiguais (porventura resultado do desnível de informação recolhido pelo autor?) das entradas, o que faz com que personagens sobejamente conhecidas não excedam uma meia dúzia ou uma dezena de linhas (casos do bispo de Viseu, António Alves Martins; Augusto Barjona de Freitas; Carlos Lobo de Ávila; Francisco Tavares Proença; Jacinto Cândido; Jaime Moniz; João de Andrade Corvo; João José Vaz Preto Geraldes, irmão de Manuel Vaz Preto, uma das personagens centrais do livro; ou José Maria Latino Coelho), enquanto outras, apenas conhecidas localmente, ocupam mais do que uma página. Finalmente, não deveriam ter passado em claro, na redacção ou na revisão final, erros de alguma relevância — como o nome próprio de Hintze Ribeiro (só Ernesto Rodolfo, e não Adolfo Ernesto Rodolfo!, p. 167); o autor da obra António Bernardo da Costa Cabral. Apontamentos Históricos (que é D. José de Araújo Correia de Lacerda, e não o próprio Costa Cabral, p. 181); a data da morte de João Franco (1929, e não 1926, p. 210); ou a conjuntura de fundação do Partido Constituinte, de Manuel Vaz Preto (surgiu em torno de Dias Ferreira, em 1871, e não por oposição ao fontismo, nos meados da década de 1880, pp. 240-242), para citar apenas alguns.

Apesar das lacunas apresentadas, o esforço meritório da obra deve ser realçado. É certo que o livro se dispersa aqui e ali, atravessando transversalmente demasiados problemas e temáticas, num arco temporal de três quartos de século desigualmente explorado (uma leitura das notas de rodapé, por exemplo, pode confirmar que a imprensa periódica monárquica citada se centra, esmagadoramente, nos últimos vinte-trinta anos do regime, com escassas referências para as primeiras décadas da Regeneração; no caso da República, as referências não vão além de 1916-1917). Mas essas talvez sejam imperfeições próprias de quem pisa um terreno ainda muito pouco explorado — o da história político-social regional portuguesa, vista através de uma das mais próximas e continuadas fontes disponíveis, como é o mundo dos periódicos do liberalismo monárquico e republicano. A leitura do livro de Santos Pereira bem pode assim servir de estímulo não apenas a outros beirões, para trazerem a Beira Interior para a temática mais geral do discurso parlamentar e da política liberal portuguesa contemporânea, mas igualmente a muitos outros historiadores, para que encarem as fontes e os enfoques locais como imprescindíveis peças de um puzzle nacional.

José Miguel Sardica

 

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