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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.171 Lisboa jul. 2004

 

Maria Alice Samara, Verdes e Vermelhos. Portugal e a Guerra no Ano de Sidónio Pais, Editorial Notícias, 2002, 226 páginas.

 

O movimento operário foi o grande protagonista da historiografia portuguesa da década de 1970; durante a década seguinte, os historiadores abriram espaço para outras preocupações. Este livro de Maria Alice Samara, originalmente uma tese de mestrado orientada por Nuno Severiano Teixeira, recupera agora o interesse pelo papel das organizações de trabalhadores nos processos políticos do mundo contemporâneo e, neste caso concreto, no acesso ao poder de Sidónio Pais e nos problemas de governação com que o presidente se viu confrontado. Como assinala a própria autora, «O sidonismo e o movimento operário» já tinha sido objecto de estudo central de um livro de António José Telo, a quem presta homenagem, e ocupou também as reflexões de Manuel Villaverde Cabral, Fernando Medeiros ou José Pacheco Pereira, entre outros. Não obstante, e apesar da proximidade do objecto e da renúncia da autora a tornar explícitas as suas diferenças para com a historiografia anterior, Verdes e Vermelhos surge-nos como um livro autónomo que revela uma notável mudança na evolução historiográfica. Um pouco mais à frente analisaremos as virtudes e fragilidades deste novo rumo.

O livro divide-se em duas partes. A primeira coloca em cena os protagonistas do momento político — dirigentes, partidos, militares e organizações operárias — e traça um panorama dos assuntos que estavam em jogo: a guerra e o descontentamento militar, o fracasso da União Sagrada, o problema das subsistências e o confronto entre democráticos e sindicalistas.

A segunda parte centra-se no período sidonista propriamente dito. Em primeiro lugar, relata o papel do movimento operário no golpe do 5 de Dezembro, as suas reivindicações, a sua busca de reconhecimento institucional e, durante o ano de 1918, a progressiva ruptura entre a União Operária Nacional e a República Nova, detendo-se com minúcia na organização da greve geral de Novembro desse ano, o seu desenvolvimento e consequências. De seguida, debruça-se sobre o próprio bloco sidonista e examina os eixos da sua política social-assistencial, o seu medo da desordem pública, as medidas que tomou para manter as rédeas do poder e, finalmente, o processo de desagregação das suas bases de apoio, que precedeu o assassinato do presidente.

A autora utiliza, com perícia, fontes jornalísticas, memorialísticas e de arquivo para construir o seu relato, conseguindo, além disso, uma prosa fluida e concisa, capaz de nos oferecer, com pouca prolixidade e um punhado de pinceladas, um quadro expressivo dos diferentes cenários históricos.

Porém, não obstante a elegância implícita a esta forma de escrita, a ausência de problematização converte o trabalho de Samara numa narração excessivamente «transparente» dos acontecimentos, o que implica uma tendência para a naturalização do processo político que estava em curso e, em última instância, a perda de uma oportunidade para rever a fundo o valor de algumas teses historiográficas. A autora não torna explícitas hipóteses teóricas fortes, nem tão-pouco apoia em sistematizações quantitativas as suas afirmações ou os encontros dos protagonistas aos quais atribui valor. Desta forma, Samara deixa-nos sem meios para avaliar a incidência relativa daquilo que nos conta (o livro não inclui quaisquer quadros, gráficos ou séries estatísticas…).

Do mesmo modo, e como já comentámos, a autora renuncia a tomar posição perante os trabalhos que, de diferentes perspectivas marxistas, já tinham abordado o período. A única interpretação explicitamente alternativa às propostas por António Telo ou José Pacheco Pereira é a que faz referência à caracterização da greve geral de Novembro de 1918. Enquanto para aqueles autores se tratava de uma greve ofensiva e revolucionária impulsionada pelos sectores anarquistas da UON, Alice Samara mostra de modo convincente que a maior parte da central sindical a entendia como uma greve defensiva. Os sectores radicais agiram no seio dos sindicatos, desdobraram-se no seu esforço activista e divulgaram a sua propaganda, mas não lideraram a decisão nem a organização da greve.

Os aspectos renovadores deste estudo relativamente à historiografia da década de 70 manifestam-se na mudança de linguagem, no desaparecimento das classes como sujeitos históricos e na renúncia a analisar os aspectos estruturais do capitalismo português como elemento explicativo central do desenvolvimento político. Contudo, estas mudanças não implicam um verdadeiro salto interpretativo que nos situe numa nova história. As virtudes narrativas e o recorte temático dos problemas tornam a obra sugestiva, mas a autora coíbe- -se no momento de interrogar os acontecimentos sobre as suas condições de possibilidade e, assim, de iniciar uma reconstrução sistemática das condições de eficácia das distintas posições políticas que se digladiavam no processo. Em que consistia o carisma de Sidónio, qual a razão da sua eficácia? Como se traduziam as acções económicas do movimento operário na arena política? Que efeitos tinham sobre a situação os actos de violência política? E as greves, os motins ou as manifestações? Como é possível que para outros historiadores que se basearam principalmente em fontes memorialísticas, como Jesus Pabón, a greve geral nem sequer merecesse uma linha de comentários?

No fundo, a autora integra o período que analisa na tese clássica da grande crise do liberalismo (1890-1926). De maneira estilizada, esta interpretação defende que, a partir de 1890, o conflito de interesses ideológico e pessoal entre os diferentes sectores das classes dominantes se agudizou. Todavia, perante eles ia-se formando um bloco antagonista, o movimento operário, que com a sua progressiva organização ameaçava o predomínio dessas classes. Assim, as elites que se digladiavam foram descobrindo que para reproduzirem a sua posição privilegiada necessitavam de formar um bloco conservador e de pôr de lado as suas querelas «menores», como as referentes à questão de regime ou à questão religiosa. Neste contexto, o sidonismo seria uma primeira experiência de integração de uma plataforma conservadora comum que, no seu fracasso, ofereceria os ensinamentos de que Salazar se serviu para unificar as diferentes direitas e, com arte, fechar o ciclo liberal. Esta velha hipótese manter-se-á seguramente em vigor durante muito tempo, mas para a contrastar não podemos caracterizar o sidonismo como um mero «sintoma» dessa crise, ainda que agora «em sua feição republicana e oligárquica» (p. 209). Reduzir um processo político a um «sintoma» de outra coisa não só lhe retira peso enquanto objecto de investigação, como converte a política num epifenómeno. Aquilo que desde a década de 1980 se propõe como uma nova história política, armada com as ferramentas que as ciências sociais lhe oferecem, ou com problematizações explícitas — como a de, por exemplo, Filipe Ribeiro Meneses, que constrói o seu União Sagrada e o Sidonismo (Cosmos, 2000) em torno dos problemas da mobilização política e da nacionalização das massas —, pode aspirar a conceder um estatuto mais central à acção política.

A narração não pode deixar de ser uma das ferramentas centrais do historiador, mas a aproximação à dinâmica das crises e dos conflitos pode ser enriquecida se combinar as vantagens da análise estratégica com as da análise estrutural. A análise estratégica, ao referir-se ao que se desenvolve durante o conflito, às acções, às interpretações da situação, permite utilizar uma concepção interaccionista do poder e ter em conta o que fazem os actores como componente fundamental de todo o processo político.

A análise estrutural, por sua vez, há-de permitir identificar, por um lado, os espaços nos quais tem lugar a actividade dos actores e, por outro, o modo como estão distribuídos os recursos para a acção: organizações, armas, dinheiro, carisma, cultura… Do mesmo modo, há que ter sempre em conta que os recursos não estão incondicionalmente disponíveis, nem têm um valor intrínseco independente dos processos de interpretação e mobilização que permitem colocá-los em jogo. O repto está em relatar o processo político integrando os acontecimentos e os mecanismos explicativos. Também não se pode tentar atribuir um sentido único aos grandes processos políticos, pois a realidade estrutural complexa das sociedades contemporâneas, com a sua pluralidade de arenas, faz com que os grupos sociais e os indivíduos que se somam às mobilizações o façam por motivos e interesses heterogéneos. Além disso, o sentido das suas acções e o seu impacte sobre o conjunto do processo escapa à sua vontade. Assim, uma revolução política pode tornar-se uma situação propícia a uma vaga de greves laborais, conectando sequências causais independentes umas das outras. Cada entrada de um novo actor concede ao processo um conjunto de novos significados e, definitivamente, dota-o de novas trajectórias históricas.

No livro de Maria Alice Samara, como bom livro de história que é, encontramos muitos elementos para construir uma análise do processo político nesses termos, bem como interpretações sugestivas que exigem um estudo pormenorizado que permita pô-las à prova. Verdes e Vermelhos sugere mais do que afirma, mas, acima de tudo, convida-nos a recuperar o interesse pela análise do lugar do movimento operário, do «económico» e do «político», do «existente e do «fantasma soviético», na configuração dos problemas de governabilidade, ordem pública e legitimação dos sistemas políticos do século XX.

Diego Palacios Cerezales

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