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Análise Social

Print version ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.172 Lisboa Oct. 2004

 

Áurea Adão, As Políticas Educativas nos Debates Parlamentares. O Caso do Ensino Secundário Liceal, Porto, Afrontamento, col. «Parlamento», 2002, 664 páginas.

 

Há mais de duas décadas, quando os historiadores portugueses reintroduziram as questões educativas como parte relevante das suas agendas de investigação, começaram por se concentrar no debate e nas políticas, nos aspectos institucionais, didácticos, pedagógicos, curriculares, do funcionamento das escolas. Foi dado particular relevo aos aspectos políticos e ideológicos subjacentes às vicissitudes que marcaram o liberalismo português e às suas implicações nos subsistemas educativos. Esta linha de investigação foi incorporando contributos relevantes, entre os quais se inclui o livro As Políticas Educativas nos Debates Parlamentares. O Caso do Ensino Secundário Liceal.

Esta tendência para tratar as questões educacionais nas perspectivas citadas determinou a evolução historiográfica, na medida em que a grande expressão que se reconhece a estes estudos limitou a abordagem sistemática das questões de natureza sociológica ligadas à instrução pública. Longe de ser um problema, este tipo de abordagem parece constituir uma etapa necessária ao processo de desenvolvimento da história da educação. A historiografia francesa apresentou o mesmo percurso, diversificando as suas abordagens no final da década de 1970, com a abertura às metodologias e problemáticas oriundas das ciências sociais.

Em Portugal, no século XIX, são mal conhecidos os mecanismos sociais ligados à aquisição de capital escolar e a sua importância nos processos de mobilidade social. Este último aspecto, aliás, foi regularmente abordado nos debates parlamentares. Esperar-se-ia que a história social ou a própria sociologia histórica tivessem investido significativamente nesta área. Apesar de existirem contributos numa e noutra especialidade, no primeiro caso, o problema parece ter sido relegado face a outras prioridades, como, por exemplo, a história das elites. No segundo, os contributos, embora importantes, são ainda sectoriais. Aproximar os esforços de investigação da história social, da sociologia histórica e da história da educação é tanto mais necessário quanto o estudo da mobilidade associada ao ensino secundário é essencial para se compreender o processo de transformação social que a historiografia vem assinalando a partir das últimas décadas do século XIX.

Em Portugal, decorridos os últimos vinte anos, em que as vertentes políticas e pedagógicas dos debates em torno da educação têm sido hipervalorizadas, esperar-se-ia que todo o trabalho basilar estivesse realizado. Este livro, inserido na área clássica da história da educação, mostra que não. O caso é tanto mais grave quanto se verifica que há aspectos elementares que ainda não estavam estudados. O que falta passa muito pela disponibilização de fontes, pela compilação de estatísticas da educação e de outros conjuntos documentais considerados relevantes e de difícil acesso. Isto é verdade tanto para a história da educação como para outras áreas especializadas. É conhecida a dificuldade — e a morosidade — em proceder ao levantamento dos discursos, mesmo que eles sejam produzidos por um número limitado de deputados, quer pelas características dos diários, com o seu jargão protocolar ou as minudências algumas vezes anedóticas das sessões, quer pela dimensão dos mesmos.

Quanto mais não fosse, a publicação do livro justificar-se-ia em função da dificuldade em aceder aos registos parlamentares e, sobretudo, devido às dificuldades em compulsar o grande e por vezes complexo volume de informação que o Diário da Câmara dos Deputados contém. Para além da junção dos registos dispersos, a obra As Políticas Educativas nos Debates Parlamentares oferece um índice onomástico e um índice temático que transforma uma obra volumosa e destinada a especialistas em algo verdadeiramente útil e acessível. O conjunto é enriquecido com uma interpretação historiográfica do ensino liceal oitocentista.

O livro é constituído por uma introdução e duas partes: a primeira intitula-se «O ensino secundário liceal no século XIX» e a segunda «Os debates parlamentares». Na introdução, a autora contextualiza os princípios que presidiram ao complexo processo de reformas do ensino liceal oitocentista, sublinhando a extensa e inconsequente produção legislativa como um dos principais factores da degradação do ensino secundário — nada menos do que sete reformas e muita legislação avulsa entre 1836 e os finais do século XIX. Visto sob o prisma do reformismo educativo, o século XIX é o exemplo paradigmático da aplicação do «império da lei» teorizado por Max Weber. Constitui um caso levado ao extremo da conhecida afirmação de Alexis de Tocquevill segundo a qual costumes livres haviam originado leis liberais, como foi o caso da Inglaterra, enquanto noutros países era preciso que leis liberais criassem costumes livres. As implicações deste princípio, seguido à risca pelos políticos oitocentistas, foram enunciadas por Rui Ramos: «O liberalismo habituou-se assim a uma política de «reformas»: nasceu reformando, viveu reformando e julgou que nunca morreria desde que continuasse a reformar1

Ao longo desta introdução, a autora refere os aspectos mais marcantes da evolução do subsistema de ensino secundário durante o século XIX, evidenciando as relações entre sociedade, política, ideologia e sistema de ensino. Nas páginas iniciais é importante a referência aos discursos compilados na segunda parte, nomeadamente a chamada de atenção para o facto de a recolha efectuada não incluir debates sobre 4 das 7 grandes reformas oitocentistas. Sobre elas os deputados não se pronunciaram. Trata-se de um aspecto que poucas vezes é salientado. Quando se viam na impossibilidade de obterem previamente da Câmara dos Deputados as prerrogativas que lhes permitissem exercer a ditadura, os governos procuravam dissolver a Câmara. De seguida, concretizado tal intento, conseguiam quase sempre que a nova Câmara sancionasse por um bill de indemnidade os actos realizados durante o período em que as cortes haviam permanecido dissolvidas. Diga-se em abono da verdade que, no caso das reformas educativas, em alguns momentos tal facto trouxe benefícios ao país, embora não favorecesse a popularidade e longevidade dos governos. As reformas de ensino setembristas foram promulgadas através de decreto entre 15 de Novembro de 1836 e 13 de Janeiro de 1837 e reconhece-se hoje que promoveram um verdadeiro progresso rumo à modernidade pedagógica. Outro exemplo, para o qual a autora chama a atenção, é a reforma de João Franco-Jaime Moniz (1894), que veio a ser discutida como uma reforma adquirida e em implementação, inquinando o debate parlamentar com as polémicas em torno da sua aceitação pela opinião pública e por parte dos agentes educativos.

Na 1.ª parte o livro estrutura-se em torno de três grandes reformas: a proposta de lei de Costa Cabral (1843); a reforma do ensino secundário de 1880; e a apreciação, em 1896, da «reforma de Jaime Moniz». A partir dos discursos insertos no Diário da Câmara dos Srs. Deputados, compilados na 2.ª parte, a autora produz uma interpretação dos mesmos no quadro da evolução do subsistema de ensino secundário, estruturando-os em torno dos momentos de debate parlamentar. Obtém uma visão coerente, intercalando uma abordagem historiográfica da evolução do subsistema de ensino que faculta ao leitor uma panorâmica sintética do período 2.

Como resultado do esforço analítico, resultam evidentes as principais características das três reformas e o teor das principais intervenções então produzidas no hemiciclo.

1.º A adequação do subsistema de ensino secundário às necessidades de desenvolvimento do país — em que a aprendizagem de conhecimentos práticos e relevantes tinha o merecido destaque — é evidenciada na análise da proposta de lei de Costa Cabral (1843), mas, na ausência de debate sobre a reforma levada a efeito pelo governo de Passos Manuel (1836), a autora antecede a abordagem daquela proposta de lei de um enquadramento da actuação setembrista na área da instrução pública. Sobre este aspecto, defende que «a criação de um novo tipo de estabelecimentos de ensino secundário, influenciado pelo sistema francês, correspondia a uma aspiração liberal anterior à revolução de Setembro» (p. 19) e faz remontar ao Projecto de Bases da Constituição Portuguesa (8-1-1821) o despoletar de um processo reformista que viria a ter expressão prática durante o consulado de Passos Manuel.

Segundo Áurea Adão, da análise dos Discursos sobre a proposta de lei cabralina destaca-se a defesa do sistema implementado por Passos Manuel e o debate em torno da introdução dos estudos preparatórios eclesiásticos no currículo dos liceus. Estava, portanto, em causa o modelo de formação do novo clero no quadro do regime liberal.

Com o objectivo de estabelecer a evolução e as principais etapas do subsistema de ensino secundário após Costa Cabral, na ausência de debates parlamentares profundos até às iniciativas progressistas de 1880, a autora dá relevo às alterações introduzidas pelos diversos regulamentos no quadro da eterna discussão sobre a promiscuidade entre o ensino público e o ensino privado, que contou com o inevitável denominador comum: os professores.

2.º A duradoura reforma de Costa Cabral, pontualmente alterada, que durante trinta anos estruturara a organização do subsistema, viria a terminar com a lei de 14 de Julho de 1880. Com esta reforma, o governo progressista liderado por José Luciano de Castro tentou inverter a degradação que tanto os agentes educativos como a opinião pública apontavam ao ensino secundário. Do labor dos muitos parlamentares que intervieram na discussão, Áurea Adão destaca o protagonismo de dois deputados: o progressista Frederico Laranjo e o regenerador Tomás Ribeiro, sublinhando os aspectos mais relevantes da reforma, em particular a criação de um curso geral comum a todos os liceus e um curso complementar bifurcado de letras e outro de ciências para os liceus centrais. Estas propostas, que em si continham a alternativa a um ensino secundário até aí predominantemente literário e teórico, constituem a base para a discussão que Áurea Adão promove em torno dos conceitos de conservadorismo versus modernidade aplicados às reformas educativas. A autora contrapõe os adeptos da estrutura bifurcada (progressistas e republicanos), associando-os à modernidade pedagógica, aos defensores de um curso com um único tronco comum a todos os liceus (os regeneradores), conotando-os com um posicionamento mais conservador.

O ensino privado, laico, seria confrontado com a necessidade de se apetrechar com um maior número de docentes, necessariamente mais habilitados, para fazer face às novas valências que a criação de dois ramos distintos implicava, pelo que se terá constituído como importante grupo de pressão, combatendo a bifurcação em dois cursos.

É fundamental perceber quais as influências sofridas por esta reforma, pelo que a autora analisa também os discursos nessa óptica, salientando a aproximação do pequeno núcleo de deputados republicanos — em particular Manuel de Arriaga — à defesa das concepções educativas de Jules Ferry.

Até à reforma Franco/Moniz, a hierarquização dos liceus e a sua consequente mudança de estatuto merecem o destaque que a autora confere à discussão em torno deste importante tópico da reforma de 1880. De facto, esta alteração desencadeou a reacção das elites locais, obrigando à activa intervenção dos deputados regionais, face à despromoção dos liceus cuja área de influência coincidia com os seus círculos eleitorais.

3.º Como referiu Cândida Proença «a reforma de 1894-1895 não só surgiu ligada a um pedagogo, Jaime Moniz, muito influenciado pela cultura alemã, como ocorreu numa conjuntura interna e externa favorável à preponderância germânica» 3. O afastamento de Portugal em relação à Inglaterra, na sequência do ultimato de 1890, seguido de maior receptividade em relação à cultura alemã, terá sido decisivo para a implementação da reforma. A complexa situação económica e política tornou difícil a aplicação do novo modelo, facto agravado pela clara afronta que a nova estrutura representava para os interesses estabelecidos. Áurea Adão dá relevo, uma vez mais, às relações entre os interesses do ensino privado, dependentes do regime de exames, em que assentava o funcionamento dos liceus, e uma reforma que propunha sem contemplações o regime de classes. Privilegiava, portanto, a frequência e a assiduidade, em detrimento do até então omnipresente exame, do qual, aliás, se alimentavam colégios privados e professores particulares. Como corolário prático das reformas que desde 1844 até 1894-1895 estendiam ao ensino privado as normas aplicadas no ensino público, verificou- se a transferência, nos anos subsequentes a esta última reforma, de grande número de alunos para os liceus. Grande parte da polémica em torno da reforma terá sido municiada pelos interesses afectados.

Embora as primeiras 80 páginas constituam uma excelente síntese interpretativa dos discursos contidos nas mais de 500 que compõem a 2.ª parte do livro, não esgotam as múltiplas leituras que a paciente compilação dos debates parlamentares colocou ao dispor da comunidade académica.

Este livro é importante pelos contextos que fornece para a leitura dos Discursos, é valioso pela documentação que compila e sobretudo pelos instrumentos que foram integrados para a tornar mais acessível. O estudo do subsistema de ensino secundário oitocentista, vertente ensino liceal, passa a contar com uma imprescindível ferramenta de trabalho.

Fernando Luís Gameiro

 

1 Rui Ramos, João Franco e o Fracasso do Reformismo Liberal 1884-1908, Lisboa, ICS, 2001, p. 13.

2 Cf. Áurea Adão, A Criação e Instalação dos Primeiros Liceus Portugueses. Organização Administrativa e Pedagógica (1836- -1860), Oeiras, Instituto Gulbenkian de Ciência, 1982, João Barroso, Os Liceus—Organização Pedagógica e Administração (1836-1960), Lisboa, FCG/JNICT, 1995, e João Barroso e António Nóvoa, «Ensino liceal», in Dicionário de História de Portugal, vol. VII, Porto, Figueirinhas, 1999, p. 632-634.

3 Cândida Proença, A Reforma de Jaime Moniz, Lisboa, Colibri, 1997, pp. 354-355.

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