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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.174 Lisboa abr. 2005

 

Helena Mateus Jerónimo, Ética e Religião na Sociedade Tecnológica. Os Jesuítas Portugueses e a Revista Brotéria (1985-2000), prefácio de José Luís Garcia, Lisboa, Editorial Notícias, 2003, 246 páginas.

 

A revista Brotéria (fundada em 1902) é certamente uma das revistas portuguesas que mais estudos têm suscitado ultimamente em torno dos seus conteúdos e da sua trajectória editorial. Entre artigos, teses e outros trabalhos académicos, podemos falar já de uma verdadeira constelação de análises sobre este periódico, que se impôs no panorama cultural português há mais de cem anos. A Brotéria é das poucas revistas que, pela sua origem, percurso editorial, longevidade, qualidade e significado, começam a fazer parte, como sugere Eduardo Lourenço, da nossa «mitologia cultural» (Fé, Ciência, Cultura: «Brotéria» — 100 anos, Lisboa, Gradiva, 2003, prefácio).

Este livro de Helena Mateus Jerónimo foi publicado precisamente no ano da celebração do centenário desta revista dos jesuítas portugueses. Estamos perante o resultado aperfeiçoado de uma tese de mestrado defendida no ISCTE, na área científica da «comunicação, cultura e tecnologias de informação», perante um júri composto por Hermínio Martins, J. M. Paquete de Oliveira, J. M. Carvalho Ferreira e José Rebelo. Esta jovem professora e investigadora universitária oferece-nos aqui uma análise sociológica avançada, pouco habitual no meio académico português, na medida em que é aplicada invulgarmente a uma revista e a uma organização religiosa com base em grelhas teóricas bem explicadas e cuidadosamente fundamentadas. Por isso mesmo é que o estudo apresentado nesta obra é estimulante e inovador a vários títulos.

Em primeiro lugar, a autora, para melhor situar e integrar ideologicamente o seu objecto de estudo, começa por caracterizar o micro e o macrocosmos da instituição, os percursos formativos e as convicções dos intelectuais produtores e mentores da revista Brotéria. Com base nos conceitos e grelhas classificativas de grandes teóricos das organizações contemporâneos, como Peter Drucker, Claude Rochet e Henry Mintzberg, Helena Jerónimo procura caracterizar a complexa organização da Companhia de Jesus e da sua Casa dos Escritores em Portugal, onde a Brotéria é editada, no quadro tipo das «organizações missionárias». A força mobilizadora e do seu ideário inaciano, que faz apelo a uma realização transcendente, a dimensão militante da sua acção, a coesão e sintonia na realização verificada entre os seus membros permitiram à socióloga estabelecer esta classificação, na qual se podem integrar todas as outras ordens religiosas, assim como as associações filantrópicas e instituições de beneficência e até as organizações que prosseguem ideais ecológicos. O modo como é estudado o funcionamento dos jesuítas e da sua organização a nível nacional e multinacional pode muito bem sugerir mais outros estudos sociológicos aplicados a outras instituições semelhantes que actuam no nosso país. Certamente que, sem esta compreensão prévia, no plano da sociologia das organizações, a hermenêutica da reflexão ética patente nas páginas da Brotéria (que constitui o núcleo principal desta dissertação desenvolvida no plano da sociologia da comunicação) seria menos omnicompreensiva, além ser um bem conseguido exercício de interdisciplinaridade dentro das diferentes subáreas de uma mesma área científica.

Mas todo este esforço prévio de indagação, classificação e compreensão desagua no mar alto do seu estudo, que ondula em torno da reflexão dos articulistas da Brotéria sobre questões tão candentes quanto actuais, como os temas da ciência nas suas relações com a ética, da ciência e mito e da epistemologia e filosofia das ciências. Ora, a corajosa eleição destas problemáticas inerentes à ciência por uma socióloga é deveras pertinente. Como a história da Brotéria nos revela, esta revista nasceu em 1902, no quadro de um ambiente cultural e ideológico do fim do liberalismo agudamente hostil à presença dos jesuítas, ao seu ensino, e muito crítico da prestação histórica da Companhia de Jesus em Portugal no plano científico, missionário, pedagógico e político. A propaganda antijesuítica, herdeira dos «clichés» de leitura pombalina desta ordem religiosa, fazia dos padres inacianos inimigos da ciência e obstáculos sempre activos do progresso do país. Estas ideias assumiam uma forte carga mítica. As suas leituras altamente desfavoráveis não ficavam por meras discussões académicas ou pasquins, mas mobilizavam massas populares e ditaram a acção política que se concretizou de forma contundente na legislação expulsória dos jesuítas da I República em 1910. A figuração negativa do jesuíta e da sua acção era, de facto, usada como bandeira propagandística para explicar, à luz da «causalidade diabólica», conforme a define Léon Poliakov, todas as anquiloses da nação, os desaires da política e até os desgostos da vida privada. É neste contexto que surge a Brotéria num colégio de ensino médio, o colégio de São Fiel da Beira Baixa, como uma espécie de ironia jesuítica, que se atreve a publicar investigação científica original e de qualidade na área das ciências naturais e que granjeia encómios internacionais e afirmando-se progressivamente em Portugal ao longo do século xx. No silêncio dos laboratórios e na paciência das pesquisas de campo, a revista acaba por garantir um lugar de prestígio, primeiro entre os produtores contemporâneos de ciência, como se pode ver pelo largo reconhecimento que lhe é dado pelas sociedades científicas das suas especialidades, depois entre as elites culturais e académicas, quando consolida o seu público leitor em 1925 e se desdobra em revista científica e em revista cultural. Assim, passado um século, a revista como que contribuiu para esconjurar o fantasma do jesuitismo e da Companhia de Jesus que pairava sobre Portugal. Sinal significativo desta mudança de mentalidade é o facto de, há quase meia década para cá, a Brotéria ostentar na sua capa a indicação clara de que é uma revista editada «pelos jesuítas portugueses». Informação que seria imprudente e contraproducente colocar há um século atrás, pois seria sinal de ignomínia, mas que é hoje mais-valia e uma marca de prestígio.

Por estas razões se torna ainda mais interessante a análise de Helena Jerónimo, que procura lançar um olhar compreensivo sobre a reflexão científica publicada na Brotéria-série cultural durante as últimas décadas em que esta revista colhe o fruto maduro do seu prestígio e da sua influência.

É curioso notar, desde logo, que a Brotéria começou por vir a lume com a aparente pretensão de estimular investigação e divulgar ciência de forma neutra e desvinculada de compromissos ideológicos, isto é, por «amor à ciência» em si. Precisamente, o estudo da reflexão ética e moral editada por esta revista permite-nos perceber que o ideário subjacente à sua criação se revela plenamente num momento em que a Brotéria aposta na produção, divulgação e reflexão sobre uma ciência de ponta como é a genética. Recorde-se que a série científica da Brotéria se transformou em 1980, pela mão do geneticista jesuíta Luís Archer, numa série dedicada especificamente a esta emergente área científica, adquirindo um novo adjectivo na sua nomenclatura de Brotéria genética.

Assim sendo, o arguto estudo sociológico de Helena Jerónimo permite-nos, na óptica de um historiador, tirar conclusões interessantes, tendo em conta a genealogia editorial da Brotéria compreendida na sua longa duração e tendo em conta o que esta revista começou por ser e aquilo que se tornou efectivamente. Em primeiro lugar, apesar da pretensão declarada inicialmente de produzir apenas conhecimento científico, e não a reflexão em torno dos princípios e dos fins da ciência de forma ideologicamente comprometida, os cientistas-articulistas da Brotéria, jesuítas ou não jesuítas, mas que partilhavam os seus princípios éticos e religiosos, procuraram dar sentido implícito, nos primeiros tempos da Brotéria, e mais tarde explicitamente, em sintonia com as suas convicções doutrinais. De certo modo, a Brotéria procurou produzir uma ciência cristã em fidelidade à metodologia processual mais moderna da produção de conhecimento científico. Deste modo, os jesuítas e seus colaboradores procuraram contraditar a imagem difundida pela propaganda antijesuítica da incapacidade de os jesuítas produzirem ciência credível; mais ainda, a Brotéria tentou refutar a ideia anticlerical oitocentista de que a ciência era incompatível com a religião e de que a condição de religioso era inadequada à criação científica mais avançada.

Mas a Brotéria tem procurado ir mais longe do que a batalha em prol da compatibilidade entre ciência e religião nas últimas décadas, em que os novos problemas do vertiginoso avanço científico no domínio da microbiologia e da engenharia genética forçam a discussão no domínio da ética. Helena Jerónimo analisa um conjunto de artigos da Brotéria cultural que caracteriza como sendo «mais de ética aplicada do que fundacional», sobressaindo entre eles os textos da autoria de Luís Archer e Alfredo Dinis em nome da defesa da dignidade do homem e da natureza. Estes pensadores desenvolvem um trabalho reflexivo no sentido de responderem às grandes questões e desafios que a ciência levanta à própria integridade biológica da natureza humana, ao seu modo de estarem no mundo e ao próprio ecossistema planetário, no sentido de fornecerem o que a autora chama um «enquadramento católico» da actividade científica e teconológica, de modo a estabelecerem critérios de «moralização» da ciência quando ela ameace pôr em causa princípios doutrinais estruturadores da cosmovidência e antropovidência cristãs. Por seu lado, a Brotéria, num intento de «domesticação» da ciência, arma-se criticamente contra as novas «tentações» do neocientismo que tende a polarizar na «omnipotência da ciência» a esperança da resolução dos problemas da humanidade, assim como contra os perigos da tecnicização da vida, da passagem da biosfera à tecnosfera, da «ciborguização» e da robotização da vida humana, etc.

Daí que a socióloga classifique, no plano epistemológico, o posicionamento dos pensadores broterianos como sendo de um «realismo científico moderado». A Brotéria rejeita liminarmente (como obviamente antinómico em relação ao seu ideário) o empirismo positivista, bem como a corrente relativista radical, distanciando-se criticamente de certas visões construtivistas extremas desenvolvidas no domínio da sociologia, para pugnar por uma ciência sensível e aberta a uma dimensão espiritual onde possa colher sentido transcendente, embora sem perder de vista a «referência ao real e aos factos».

Portanto, o estudo de Helena Jerónimo faz a hermenêutica de um instrumento qualificado de divulgação de reflexão científica altamente comprometido com um sistema doutrinal que tem como fim dar conteúdo ideológico e espiritual à produção do conhecimento científico. Aliás, um dos intentos hermenêuticos bem conseguidos desta tese é a desconstrução do mito da possibilidade da construção de um conhecimento científico totalmente desvinculado de compromissos ideológicos. Donde resulta a afirmação para nós hoje largamente consensual de que não há ciência feita de forma neutra e liberta de enquadramentos ideológicos e culturais.

Corajosamente, a autora desta obra desconstrói os preconceitos, dilucida os problemas, classifica os modos de reflexão, capta e identifica as grandes correntes em que se integram ou em que se «desintegram». Não tendo receio de questionar nem de ensaiar respostas, esta obra dá-nos uma lição de bem apresentar os problemas e de situar as esferas ideológicas em que estes são elucidados, num notável esforço de isenção e de fidelidade ao quadro epistemológico de análise em que se inscreve. Pena foi que esta análise não se tivesse estendido a todo o período editorial em que a Brotéria produziu reflexão e conhecimento científicos e não tivesse colocado a sociologia a dialogar com a ciência e com a teologia em simultâneo. Mas este não era o seu objectivo, nem os conhecidos limites de uma tese desta natureza poderiam permitir derivar a reflexão para esses terrenos e muito menos estender as balizas temporais do campus de estudo. Não obstante, esta obra pode abrir uma série de novas questões que pedem respostas e esperam certamente novas vias de reflexão e novos estudos mais adentro floresta densa de «saberes» e de «sabores» que é a Brotéria.

Este é um trabalho de sociologia de comunicação que ousa questionar a ciência, o modo da sua construção e a reflexão que é feita em torno da sua função social e dos seus fins. Numa época em que a ciência invade todos os sectores da vida do homem sobre a terra, correndo o risco de transformar as suas condições habituais de existência de modo incontrolável, torna-se importante que ela seja alvo de estudo, de reflexão e de crítica por parte da sociologia no modo como ela é olhada, utilizada e pensada em termos dos efeitos sobre a sociedade dos homens. Como escreve José Luís Garcia no brilhante prefácio a esta obra: «Tanto a sociologia necessita de interrogar de forma plural a tecnologia, e neste sentido interrogar-se a si própria e ligar-se decisiva e novamente — após a desvirtuação do seu itinerário através da influência determinante do positivismo empiricista não comtiano do século xx — aos problemas perenes do homem e do sentido da sua vida, também a Igreja como instituição terá de realizar semelhante empreendimento quanto à teologia, se pretender ir mais além do que a defesa do magistério nas decisivas questões levantadas pelo dinamismo tecnológico contemporâneo. Caso contrário, o homem moderno aprofundará ainda mais o seu sentimento de estranheza perante as palavras que a religião do passado tem para lhe oferecer neste tempo.»

 

José Eduardo Franco

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