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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.177 Lisboa out. 2005

 

Paulo Granjo, Trabalhamos sobre um barril de pólvora — homens e perigo na refinaria de Sines, Lisboa, ICS, 2004, 329 páginas.

João Freire

1. Este livro é o resultado de uma pesquisa de terreno feita no âmbito de uma tese de doutoramento em antropologia. Tal como o autor nos anuncia desde as primeiras linhas, é uma história que versa sobre um grupo (relativamente limitado, de homens, no masculino) que convive diariamente com situações de risco. E, porque essa narrativa nos é descrita por um antropólogo experiente, aí temos também uma análise das relações sociais construídas, mantidas e permanentemente reformuladas, quer no seu interior, quer com outros grupos e actores sociais externos ao grupo. Neste sentido, o exercício de «observação participante» do autor e o próprio efeito do seu estudo, uma vez publicado (e apresentado publicamente, inclusive em Sines), terão também contribuído para que se escrevesse mais um capítulo daquela referida história.

Vejamos então alguns dos principais aspectos da obra. Antes de mais, ela oferece-nos uma visão de um sector industrial parco em emprego e número de unidades, recatado e pouco conhecido, bem longe das numerosas e ruidosas fábricas têxteis ou metalúrgicas e mais aproximadas do silêncio um pouco misterioso das máquinas electrónicas. Trata-se, realmente, de uma indústria moderna, mas que, numa primeira leitura, não parece ter evoluído muito desde a famosa descrição da refinaria da Caltex-Gironda feita por Serge Mallet (La nouvelle classe ouvrière, 1963) há perto de cinquenta anos. Embora situada num contexto pós-industrial, mantemo-nos aqui num ambiente claramente industrial que contrasta com o «laboratorial» das biotecnologias ou o «informático» de muitas novas actividades de controlo, de pesquisa, etc. Ora, se estamos num meio que é ainda industrial (onde a noção de utilidade produtora de bens está sempre presente), não devemos estranhar que a hipótese do acidente seja uma constante e uma preocupação central de quem ali trabalha ou planeia e superintende as actividades empresariais.Neste caso, porém, o risco é de uma escala e natureza maiores do que a queda, o corte ou o ferimento de quem opera manualmente massas em movimento. É um risco potencialmente de grande impacto sobre o conjunto dos trabalhadores, sobre os equipamentos e ainda sobre as populações residentes, o património construído e o meio natural envolventes, num raio de alcance maior ou menor, mas sempre muito para além da cerca fabril. Eis o que se pode esperar de acidentes típicos desta actividade, como sejam explosões, libertação de produtos gasosos nocivos ou o derrame de líquidos poluentes, que tanto podem afectar apenas um pequeno sector (o que acontece com alguma frequência) como constituir uma catástrofe de gravíssimos e alargados efeitos letais. De facto, apesar da aparente robustez e do aspecto coriáceo das instalações produtivas, estamos perante equipamentos de alguma fragilidade, agravada em certos momentos ou segmentos da sua operação (por exemplo, transportes, trasfegas, etc.) que exigem saber, perícia, atenção, responsabilidade, coordenação e experiência por parte das equipas de rabalho nas suas diferentes funções e tarefas.

Uma segunda dimensão muito importante da análise de Paulo Granjo sobre a refinaria de petróleo de Sines refere-se às características e dinâmicas dos seus trabalhadores. Neste ponto, a análise torna-se talvez mais sociológica do que seria esperável, não tanto pelas técnicas de pesquisa utilizadas (nomeadamente o questionário, que comentaremos já adiante), mas principalmente pelos temas e formas de abordagem.

Sociograficamente, são reportoriadas as categorias de sujeitos presentes na unidade produtiva sob observação: os engenheiros (geralmente, nos seus gabinetes próprios, algo afastados dos demais); os operadores de consola e os respectivos chefes de turno, na sala de controlo; as equipas de exteriores (operários mecânicos e electricistas) e correspondentes chefes de zona — sendo identificados os seus processos normais de recrutamento e de mobilidade e caracterizados os seus fundamentais traços identitários e de classe social.

Além desta caracterização, são também analisados aspectos mais pontuais, mas de indubitável relevância sociológica, tais como: a importância do salário e, neste âmbito, do subsídio de turno (da ordem dos 30% do salário base) e das horas extraordinárias, problemática que nos remete para as aspirações de consumo dos outrora chamados operários da abundância (J. Goldthorpe, The Affluent Worker, 1968-1969); a pregnância rotineira do trabalho por turnos, com os seus impactos em diversas sociabilidades extratrabalho, a começar pela vida familiar (v. p. 103 sobre a actividade profissional das mulheres); as percepções mentais sobre «as duas fábricas», a antiga e a «nova», miticizada; ou ainda os comportamentos defensivos, os «truques» e «artimanhas» forjados, desenvolvidos e transmitidos neste microcosmos particular da divisão do trabalho.

Numa certa decorrência desta abordagem sociológica, temos ainda uma descrição do «ambiente laboral», em particular no que toca às «condições de trabalho» (o contraste entre o stress reinante em certos momentos na sala de controlo climatizada e o esforço, o medo das quedas e a agressão das intempéries — apesar dos vestuários de protecção — do pessoal que opera no exterior) e a certas formas particulares da «organização do trabalho» na refinaria, como é o caso do trabalho de manutenção (tanto o de rotina como o da «grande manutenção», esta última feita por pessoal do exterior, de longe em longe).

Finalmente, só resulta um pouco estranho — para um trabalho de antropólogo — que não tenha sido dado maior destaque e detalhe ao facto de o grupo de sujeitos analisado ser exclusivamente masculino. Eis mais uma característica que, à partida, deveria conferir ao universo humano estudado uma especial peculiaridade e interesse.

Por fim, o terceiro domínio de análise centra-se propriamente na problemática da tese, isto é, sobre as condições de ocorrência de acidentes gravosos nesta actividade produtiva e de trabalho. Naturalmente, tomam aqui especial relevo dois tópicos específicos. Antes de mais, o relato de um «incidente» — que, felizmente, não chegou a ser acidente — de que o autor foi testemunha (p. 141). A propósito, e para além deste mini-case study, julgo que é pertinente fazer aqui três observações: o paralelo que pode fazer-se entre esta vivência laboral e a observada nas tripulações dos navios petroleiros numa abordagem de psicologia social (F. A. Cavaco, Human Relations on Board Merchant Ships, Ph.D. Liverpool Polytechnic, 1992); a noção de «choque» — em termos médicos e psicológicos — e o stress pós-traumático que frequentemente sobrevém para o acidentado; finalmente — no plano metodológico da investigação de terreno —, as condições de memorização e verbalização dos acidentes por parte de quem os presencia ou, por maioria de razão, de quem lhes sofre as consequências.

Noutro plano, devem também enfatizar-se certas passagens do texto onde o autor sintetiza as suas conclusões, nomeadamente com o que ele designa por ideologia de gestão dominante (p. 226) e que inclui uma procura constante de redução do pessoal, com mais tecnicismo e competência, na assunção plena da racionalidade do sistema económico vigente; com a cultura particular dos engenheiros, onde o risco é um conceito probabilístico (que pode ser reduzido), enquanto para os trabalha dores isto se traduz em perigo, isto é, algo de permanente, imprevisível e imponderável que marca as suas vivências. Finalmente, com a verificação da possibilidade de, pontualmente, estas últimas visões convergirem com as opiniões especialistas, como ocorre com os médicos no que respeita aos malefícios do trabalho por turnos (p. 97).

2. Umas breves palavras agora sobre a metodologia de observação participante utilizada pelo autor nesta sua pesquisa.

A primeira constatação a fazer é a da sua duração longa (cerca de três anos), o que é uma condição importante (e quase sempre difícil de lograr) para o aprofundamento, distanciamento e rigor do exercício. Mas é também curioso constatar a disposição do autor para uma escolha «não estratégica» das suas técnicas de recolha da informação (citando, a propósito, a atitude «anarquista» de P. Feyerabend, Against Method, 1975, num texto de posfácio).

É ainda curiosa a evocação final da perspectiva sócio-antropológica de P. Bouvier (Le travail au quotidien, 1991) cruzada com a informação do recurso a entrevistas semidirectivas, à análise dos discursos e mesmo a um «curto questionário sociológico».

Outro ponto relevante é a análise retrospectiva da evolução das relações tecidas entre o investigador e o «objecto observado», que passaram por quatro fases, começando pelo «discurso feito (pelas da casa) para pessoas de fora» e acabando numa quebra de confiança (no investigador) por parte dos engenheiros. A este propósito, ocorreria perguntar (e investigar seriamente) por que razão, tantas vezes, assim termina o percurso de «imersão» do cientista social em meio fabril. Falta de controlo do investigador sobre a sua postura, acabando por se deixar colar ou tomar o partido dos trabalhadores numa situação de conflito (ainda que latente) com a empresa? Pouco esclarecimento inicial do «contrato» que permite a observação, levando a hierarquia ou a administração empresarial a sentir-se frustrada nas suas expectativas?

3. Finalmente, uma nota derradeira sobre o contributo da disciplina antropológica para o estudo das condições de vida e de trabalho na indústria. Um tema como este dos acidentes (ou das doenças profissionais) tem sido tratado a partir de perspectivas disciplinares diferentes, como a sociologia, a psicologia social, a engenharia ou a gestão industrial, a medicina ou o direito. Em princípio, espera-se que cada uma contribua com as suas referências teóricas e conceptuais próprias para melhor conhecermos o «objecto». Neste caso, o que mais parece surpreender é a aparentemente escassa «especificidade antropológica» contida na análise (e no seu instrumental técnico de pesquisa) — não fora a prolongada mise en situation, essa sim típica da forma de intrusão do antropólogo no meio a estudar. Desaproveitamento das potencialida des de uma antropologia industrial, ou convergência para uma multidisciplinaridade menos definida no campo das ciências sociais?

Em todo o caso, saúda-se a aproximação interdisciplinar aqui revelada.

 

 

 

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