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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.179 Lisboa  2006

 

Eric Hobsbawm, Tempos Interessantes: Uma Vida no Século XX, Porto, Campo das Letras, 2005.

Com 88 anos, Eric Hobsbawm é hoje o mais conhecido historiador mundial. Entre outros livros, escreveu quatro obras importantes sobre um longo período da história europeia (1789 a 1991), preocupando-se em dar-nos explicações acessíveis numa prosa capaz de extravasar os muros da universidade. Nunca sentiu a necessidade de se especializar. Foi capaz de nos dar uma visão da história da Europa, e das suas ramificações universais, abordando, com aparente facilidade, temas económicos, sociais, políticos e culturais. Daí que a sua obra tenha sido traduzida como nenhuma outra. Até os portugueses dispõem, em edições da Presença (nem sempre bem traduzidas), de A Era das Revoluções (a sua obra--prima), A Era do Capital, A Era do Império e A Era dos Extremos.

Eis que em 2002 saiu em Inglaterra a sua autobiografia, Interesting Times: A Twentieth-Century Life, dada agora a lume em Portugal pela editorial Campo das Letras, numa excelente tradução de Miguel Serras Pereira. Estas memórias merecem ser lidas tanto pelo que o autor diz sobre os ambientes em que viveu como sobre si próprio. Logo no início alerta para o facto de a obra se afastar das memórias clássicas: «Acrescente-se que este livro não foi escrito no registo confessional, hoje tão vendável, o que em parte acontece porque a única justificação para uma tal viagem ególatra é o génio — e eu não sou nem um Santo Agostinho nem um Rousseau — e em parte porque ninguém que escreve a sua autobiografia poderá revelar a verdade privada acerca de assuntos relacionados com outras pessoas vivas sem ferir injustificadamente os sentimentos de algumas delas […] O que procuro é a compreensão histórica, e não o acordo, a aprovação ou a simpatia do público.» Aqui reside uma das ambiguidades da obra. O autor quis escrever uma autobiografia sem estar no centro do livro, o que faz com que fique a meio caminho entre o género memorialista e o relato histórico. Adoptando a posição de «participante-observador», Hobsbawm surge como uma espécie de antropólogo do século xx, olhando, supostamente de fora, coisas que viveu por dentro.

Já o fizera em anteriores livros e, na minha opinião, até com mais sucesso. Veja-se a brilhante «Abertura» de A Idade do Império, sobre os anos 1875-1914, quando nos fala das suas origens familiares. O facto de ter optado agora por nos falar apenas do homem público é um desapontamento porque o homem particular seria certamente tão ou mais interessante do que aquele. Poder-se-ia pensar, e o autor parece indicá-lo, que o fez por modéstia, mas, como veremos, o autor é tudo menos modesto.

Isto não é uma reserva radical. O livro lê-se de um fôlego, é interessante e tem capítulos bons. Veja-se, por exemplo, a evocação, que faz no capítulo iv, da cidade de Berlim durante os últimos meses da República de Weimar. Sem a dura experiência por que então passou, provavelmente, não teria optado, como refere, pelo caminho que escolheu. Eric Hobsbawm decidiu, muito jovem ainda, ser comunista. E assim quer morrer. Não existem factos que o demovam nem argumentos que o abatam. Mesmo reconhecendo os crimes do estalinismo, prefere este regime ao capitalismo. Não hesita em escrever: «Dou-me hoje conta de que continuo a tratar a memória e a tradição da URSS com uma indulgência e uma ternura que não sinto pela China comunista, porque pertenço a uma geração para a qual a revolução de Outubro representava a esperança do mundo, coisa que a China nunca significou.»

Hobsbawm escreveu estas memórias para tentar responder à pergunta feita em todas as entrevistas que concedeu em tempos recentes: como era possível que um homem inteligente, culto e razoável pudesse continuar a declarar-se, como ele se declarava, comunista? Eis a resposta: «Escrever uma autobiografia supõe que reflictamos a nosso propósito como nunca antes o fizemos. No meu caso, isso consiste em limpar três quartos de século dos seus depósitos geológicos e em recuperar, ou descobrir e reconstruir, um estranho aí sepultado. Quanto mais recuo no passado e me esforço por compreender esse rapaz desconhecido e longínquo, mais chego à conclusão de que, se ele tivesse vivido noutras circunstâncias históricas, ninguém lhe teriaadivinhado um futuro de compromisso político apaixonado, embora quase toda a gente pudesse ter-lhe profetizado um futuro de intelectual.» Infelizmente, a explicação que fornece ao leitor para a sua opção partidária não é convincente, ou antes, é-o pelas piores razões. Leia-se o que afirma no capítulo 12, intitulado «Estaline e os pós-estalinismo», onde explicitamente diz que continuou a ser comunista a fim de provar ao establisment que fora capaz de construir uma carreira académica apesar da sua filiação partidária. Ora isto é uma mistificação.

Ninguém nega que, desde o início, a universidade foi atravessada por lutas feudais e que, durante a guerra fria, alguns intelectuais de esquerda foram afectados, por motivos ideológicos, nas suas carreiras. Mas actualmente nada disso é verdade, nem o é desde os finais da década de 1960. Não é pacífico, como Hobsbawm pretende fazer crer, que um intelectual de esquerda tenha menos oportunidades do que um de direita. É possível que nos anos 1950 lhe tivesse sido difícil ou até impossível obter uma cátedra numa das universidades da Ivy League. Mas, como ele sabe, o clima intelectual mudou. A vitimização fica-lhe mal. Na América Latina, na Europa e até nos EUA, Hobsbawm é um historiador popularíssimo, como o próprio constatará, se olhar com atenção para a contabilidade relativa aos seus direitos de autor.

Mesmo depois da invasão da Hungria, quanto muitos dos seus amigos deixaram o partido, EricHobsbawm decidiu ficar não só porque, como afirma, detesta a companhia dos intelectuais ex-comunistas, mas por um grau de orgulho quase impensável. Eis, nas suas palavras, a explicação: «Desembaraçar-me do handicap da pertença ao partido poderia ter melhorado as minhas possibilidades no plano profissional, sobretudo nos Estados Unidos. E ter-me-ia sido mais fácil fazê-lo sem alarde. Mas consegui provar a mim próprio que era capaz de ser bem sucedido […] sem deixar de ser reconhecidamente comunista e vencendo esse handicap em plena guerra fria.» No fundo, a sua ligação ao comunismo está mais relacionada com a teimosia serôdia do que com o marxismo. Apesar de não ter modificado a minha opinião quanto aos seus méritos como historiador, após ter lido este livro fiquei com menos respeito pelo homem.

Maria Filomena Mónica

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