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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.180 Lisboa  2006

 

Guilherme d’Oliveira Martins, Que Constituição para a União Europeia? Análise do Projecto da Convenção, Lisboa, Gradiva, 2003, 117 páginas.

 

A constituição está morta. Viva a constituição. A morte da constituição europeia não invalida que a Europa no futuro, provavelmente, se socorrerá de soluções apontadas neste documento. Por este motivo, o livro de Guilherme d’Oliveira Martins continua a ser relevante.

A primeira questão que este especialista em assuntos europeus aborda é a necessidade de uma constituição europeia. O Conselho Europeu (composto pelos quinze chefes de Estado e primeiros-ministros dos 15 Estados da União Europeia) de Laeken, de Dezembro de 2001, foi claro nos motivos para uma constituição europeia: «A União deve passar a ser mais democrática, mais transparente e mais eficaz. Deve também dar respostas a três desafios fundamentais: como aproximar os cidadãos, e em primeiro lugar os jovens, do projecto europeu e das instituições europeias? Como estruturar a vida política e o espaço político europeu numa União alargada? Como fazer da União um factor de estabilização e uma referência no novo mundo multipolar?» (p. 24).

Com estes objectivos, o Conselho decidiu convocar uma convenção para elaborar o anteprojecto de constituição. A escolha de Valéry Giscard d’Estaing para presidente da convenção seria uma imposição do compromisso franco-alemão apoiada pelos ingleses. Os médios e pequenos países, incluindo Portugal, consideraram que a candidatura do holandês Wim Kok teria sido mais equilibrada. A escolha de Giscard d’Estaing para a presidência demonstra bem a crença de Oliveira Martins de que no actual panorama político e legislativo comunitário os grandes têm vantagem sobre o médios e pequenos países. Os vice-presidentes da convenção foram o italiano Giuliano Amato e o belga Jean-Luc Dehaene. A convenção foi composta por quinze representantes dos chefes de Estado ou de governo dos Estados membros (o governo português designou Ernâni Lopes), dois membros de cada parlamento nacional (num total de trinta — o parlamento português designou Alberto Costa e Maria Eduarda Azevedo, sendo Oliveira Martins suplente do primeiro), dezasseis membros do Parlamento Europeu (incluindo o português Luís Marinho) e dois representantes da Comissão (António Vitorino e Michel Barnier). Os países candidatos (os dez países que se tornam membros em Maio de 2004, mais a Roménia, a Bulgária e a Turquia) participaram igualmente na convenção, embora não pudessem bloquear qualquer consenso dos Estados membros. A convenção iniciou o seu trabalho em Bruxelas a 1 de Março de 2002 e terminou-o em Junho de 2003.

A primeira questão decidida pela convenção seria se a União era um Estado ou uma organização internacional? A resposta afirmaria que a União é uma organização supranacional onde coexistem as soberanias europeia e nacional. As competências da União regem-se pelos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade, permitindo uma maior intervenção dos parlamentos nacionais na defesa das suas esferas de influência. Funcionando como uma contrapartida da «constitucionalização » da União Europeia, foi intenção dos membros da convenção atribuir maiores responsabilidades aos parlamentos nacionais no acompanhamento das questões europeias de maneira a estes preservarem a sua legitimidade e autoridade nacional por intermédio do novo sistema de controlo da subsidiariedade e proporcionalidade. O primado do direito comunitário sobre o direito nacional, um princípio confirmado pelo Tribunal de Justiça Europeia desde 1963, é pela primeira vez consagrado na constituição.

A constituição mantém o presente quadro institucional, que compreende o Parlamento Europeu, o Conselho Europeu, o Conselho de Ministros, a Comissão Europeia e o Tribunal de Justiça. Em relação ao Parlamento Europeu houve acordo no número limite de deputados (736), mas não na sua distribuição, pela qual ficou acordado que até 2009 se manteria a distribuição de lugares acordada no Tratado de Nice (Portugal fica com 24). O Conselho Europeu é consagrado formalmente na constituição, decidindo habitualmente por consensos as linhas mestras da política da União nas suas reuniões ordinárias trimestrais ou extraordinárias. As principais matérias controversas são: a proposta de eleger por maioria qualificada um presidente do Conselho Europeu para um mandato de dois anos e meio, renovável uma vez, ao invés do presente sistema rotativo; se continuará a haver um comissário por Estado membro e a falta de acordo sobre a política externa e de segurança comum (com sérias reticências da Grã-Bretanha) e a política de segurança e de defesa Comum (reticências dos países neutros ou não alinhados, como a Áustria, a Finlândia, a Irlanda e a Suécia).

Pela primeira vez fica definido o procedimento de suspensão de direitos de pertença à União (no caso de violação dos valores da democracia e do respeito dos direitos humanos) por maioria de quatro quintos dos membros, por proposta de um terço dos Estados membros, do Parlamento Europeu ou da Comissão Europeia, e aprovação por dois terços do Parlamento Europeu. Está igualmente consagrada pela primeira vez a saída voluntária da União. A Carta dos Direitos Fundamentais está incorporada no projecto de constituição. No projecto de convenção está igualmente consagrada a nova figura do ministro dos Negócios Estrangeiros da União, unindo as tarefas do comissário para as relações externas e do alto representante para a PESC, votado por maioria qualificada pelo Conselho Europeu. O voto por maioria qualificada fica definido como a maioria ou dois terços dos Estados membros desde que representem pelo menos três quintos da população total.

Oliveira Martins relembra que o mandato da convenção era preparatório, e não substitutivo da Conferência Intergovernamental, com o poder constituinte continuando nas mãos dos Estados. O autor alerta que o projecto de constituição resultante não se sobrepõe às constituições nacionais, mas às competências próprias da União — a soberania «originária» continua nos Estados, acrescentando que a democracia supranacional da constituição é baseada, segundo o autor, em duas legitimidades e soberanias — a dos Estados membros e a dos povos.

O projecto de constituição tem sido criticado mesmo por europeístas convictos, como António Barreto e Pacheco Pereira, pela falta de legitimidade democrática dos membros da convenção, por ser favorável aos Estados grandes (nomeadamente no que diz respeito ao fim da rotatividade no exercício da presidência do Conselho Europeu e à possível adopção de um sistema presidencial, bem como à possibilidade de deixar de haver um comissário por país na Comissão Europeia) e por ser um texto desnecessário que abandona o método dos pequenos passos de Jean Monnet (integração por sectores económicos). A estas críticas, Oliveira Martins responde que a constituição deve ser legitimada democraticamente através de referendos nacionais e que «Portugal — ou qualquer outro Estado médio ou pequeno só tem que ganhar com uma Europa política eficaz e actuante. E tem tudo a perder com a prevalência das lógicas exclusivamente nacionais e proteccionistas, que apenas favorecem as grandes potências» (p. 13). Concluindo, Oliveira Martins considera que «a recusa de passos corajosos no sentido da democracia supranacional só pode beneficiar os grandes. Mais, o autor considera que deve haver mais Europa política que zele pelo bem comum europeu, dando como exemplo a confusão entre supranacional e intergovernamental, o que está na origem da debilidade política do Pacto de Estabilidade e Crescimento do Euro, como o recente comportamento da Alemanha e da França tão bem demonstrou (p. 14).

Este especialista considera que o debate sobre a futura Constituição Europeia não se devia concentrar nos egoísmos nacionais relacionados com a composição da Comissão ou a rotatividade da presidência do Conselho Europeu, mas na defesa de interesses comuns, no sentimento europeu e num sistema equilibrado da divisão do poder (mais conhecido pela expressão inglesa checks and balances). No caso específico de Portugal, Oliveira Martins considera que o interesse nacional é melhor defendido com uma segunda câmara legislativa de Estados, a preferência da regra da maioria qualificada sobre o veto, o prevalecimento da lógica do parlamentarismo sobre um sistema presidencialista do Conselho Europeu e a atribuição à Comissão de funções executivas.

Oliveira Martins conclui que a Constituição da União Europeia representa «uma garantia acrescida para os cidadãos». Conforme Francisco Lucas Pires afirmou a páginas tantas, «a soberania não se perde por ser partilhada». Na realidade, conforme estabeleceu o reputado historiador Alan S. Milward, a soberania do Estado sai reforçada com o processo de integração. Um realidade reforçada para os pequenos e médios Estados, conforme o historial recente da integração europeia prova.

Independentemente dos pontos de vista acima citados, o livro de Guilherme Oliveira Martins é uma obra notável de síntese e clareza sobre a proposta de constituição europeia que permite aos leitores inteirarem- se sobre as principais questões e decidirem por si próprios no referendo, referendo este que é desejado pelo autor para legitimar democraticamente este renovado passo no processo de integração europeia. Um considerável feito numa área mais que conhecida pela sua opacidade e dificuldades de compreensão.

 

NICOLAU ANDRESEN LEITÃO

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