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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social v.181 n.181 Lisboa  2006

 

Ascensão e queda de uma cidade tecnológica

 

Langdon Winner*

 

Silicon Valley, conhecido pela sua vitalidade intelectual e dinamismo económico, tem sido aclamado por toda a parte como um modelo bem sucedido daquilo que um ambiente urbano avançado tem para oferecer: empresas dinâmicas, emprego, salários elevados e estímulo intelectual. Apesar de habitualmente se atribuírem os louros à ousadia empresarial quanto à origem da magia deste vale, foram várias décadas de despesa pública na tecnologia e na educação que lançaram as bases do que mais tarde seriam iniciativas privadas de sucesso. No fim, nem o envolvimento governamental nem a criatividade das empresas de alta tecnologia tiveram êxito na produção de um ambiente urbano bem constituído. Quem habita a «Super-Região de Silicon Valley» encara hoje uma mancha caótica de estradas, longas horas no trânsito e padrões de vida social cheios de stress.

Palavras-chave: Desenvolvimento tecnológico, Desenvolvimento urbano, tecnologia, Urbanismo.

 

Ascension et chute d’une cité technologique

Silicon Valley, connue pour sa vitalité intellectuelle et son dynamisme économique, a été partout acclamée comme un modèle de succès de ce qu’un environnement urbain avancé peut offrir: entreprises dynamiques, emploi, salaires élevés et stimulation intellectuelle. Bien que les lauriers soient en général attribués à la hardiesse des entreprises pour ce qui est de l’origine magique de cette vallée, le fait est que les bases de ce qu’on appellerait plus tard des initiatives privées de succès ont été lancées grâce à plusieurs décennies de dépense publique en matière de technologie et éducation. Au bout du compte, ni cet engagement gouvernemental, ni cette créativité des entreprises de pointe ne sont parvenus à produire un environnement urbain bien constitué. Les habitants de la «Super Région de Silicon Valley» doivent aujourd’hui faire face à une réseau chaotique de routes, endurer de longues heures dans un trafic engorgé et suivre des modèles de vie sociale pleins de stress.

 

The rise and decline of a technological city

Renown for its intellectual vitality and economic dynamism, Silicon Valley is widely praised as the working model of what an advanced urban landscape has to offer: dynamic corporations, jobs, growing incomes, and intellectual excitement. While the standard origin myth praises bold entrepreneurs as the source of the Valley’s magic, a closer look shows that several decades of public spending on defense and aerospace technology laid the foundation for what later became private initiatives in computers and digitalelectronics for domestic markets. In the end, however, neither government involvement nor the creativity of high tech business succeed in producing a well formed urban environment. Those who inhabit the «Silicon Valley Super Region» today face a chaotic sprawl of roadways, long commuting times and stressful patterns of social life. Intensive infusions of information technology seem to exacerbate rather than solve these problems.

 

Os projectos que procuram revitalizar comunidades locais mediante a injecção de doses maciças de tecnologia e capital apontam muitas vezes Silicon Valley como o melhor exemplo a seguir. Este vale, conhecido pela sua vitalidade intelectual e dinamismo económico, tem sido aclamado por toda a parte como um modelo bem sucedido daquilo que um ambiente urbano avançado tem para oferecer: empresas dinâmicas, emprego, salários elevados e estímulo intelectual. Mesmo depois do colapso das dot-com na bolsa em 2000, que acabou com milhares de postos de trabalho e arruinou muitos investidores em todo o mundo, a cidade tecnológica californiana continua, aparentemente, a despertar o mesmo fascínio de sempre.

Cresci na periferia desta metrópole emergente e tive a oportunidade de presenciar o seu extraordinário crescimento, a sua capacidade de transformação do mundo à sua volta. A nível pessoal, participei e beneficiei das reformas educativas que estiveram na origem da ascensão desta grande cidade. No princípio dos anos 1980 vivi por um breve período em Santa Cruz, perto do coração da cidade, durante a fase inicial do seu desenvolvimento, e integrei uma equipa de investigação que estudava as dinâmicas sociais da sua emergente indústria informática. Mesmo quando me mudei para Nova Iorque, a 4500 km de distância, continuava, como toda a gente no planeta, a estar sujeito à sua influência.

Na verdade, Silicon Valley não é uma cidade no sentido tradicional, mas antes uma região urbana composta pelos resquícios de centenas de vilas, aldeias, cidades e áreas rurais que foram engolidas pelo seu crescimento explosivo nos últimos anos. Centro de uma vasta colecção de indústrias de microelectrónica e alta tecnologia, ocupa a extensão de 15 comarcas razoavelmente grandes que formavam uma região dos EUA conhecida como a «San Francisco Bay Area» e que agora, reflectindo o domínio avassalador das altas tecnologias na economia e na vida social desta zona, foi rebaptizada de «Super-Região de Silicon Valley».

Tentar explicar a constituição deste espantoso agregado de pessoas, recursos culturais, empresas e infra-estruturas é uma proposta ambiciosa, demasiado complexa para um curto ensaio. O meu objectivo aqui será comentar alguns aspectos dessa história que, embora relevantes para uma boa compreensão da economia e forma de vida no vale, são frequentemente excluídos das descrições entusiastas sobre o modo como o Valley apareceu e muita gente consegue hoje viver ali.

Uma das causas indiscutivelmente centrais, mas normalmente esquecidas, da ascensão de Silicon Valley foram as sucessivas décadas de investimento directo do governo. Do princípio dos anos 1940 em diante foram investidos biliões de dólares em grupos empresariais e instalações governamentais, primeiro, para o esforço de guerra na segunda guerra mundial e, depois, para travar a guerra fria nos quarenta anos seguintes.

É assim que surge uma poderosa, complexa e profundamente enraizada infra-estrutura material e social, de investigação, desenvolvimento e produção, no que anteriormente eram pequenas comunidades agrícolas do vale de Santa Clara — uma bela paisagem de quintas e pomares outrora conhecida por «Vale das Delícias». Grande parte desse desenvolvimento estava concentrada no esforço para combinar a electrónica com o novo armamento aerospacial. Não entrando nos pormenores dos seus efeitos, é importante salientar que as enormes quantidades de dinheiro público serviram para lançar as bases do que mais tarde seriam iniciativas privadas, como, por exemplo, na área dos computadores e da electrónica digital para o mercado interno.

É importante relembrar o papel da despesa pública em todo este processo, porque a posterior idealização, o mito de Silicon Valley, atribuiu a ascensão da indústria electrónica a alguns indivíduos geniais e à ousadia empresarial. É verdade que pessoas como Steven Jobs e Steven Wozniack (que fundaram a Apple Computer) começaram por trabalhar nas garagens das suas casas. Mas tinham fácil acesso a todo um mundo de pessoas, serviços e materiais que tinha vindo a desenvolver-se durante décadas na indústria electrónica local.

Hoje em dia ninguém gosta de louvar as virtudes do investimento público. Por isso, os hinos que cantam a história de Silicon Valley saltam os primeiros versos, começando no último coro triunfal.

O segundo factor para o sucesso da região é também frequentemente ignorado pela mitologia contemporânea — a importância de uma experiência inovadora no sistema público de educação, lançada na Califórnia em meados do século XX. À época, o conceito básico era o de que todos os jovens deviam ter acesso gratuito a um ensino de elevada qualidade. Hoje em dia esta ideia parece absurda nos Estados Unidos, onde o custo exorbitante da educação para as famílias absorve frequentemente as pequenas poupanças familiares quase por inteiro. Mas no princípio dos anos 1960, quando entrei para a universidade, esta questão era vista de uma forma diferente na Califórnia. O governo estatal tinha-se lançado na edificação de um sistema de ensino superior de três patamares. No topo estava a Universidade da Califórnia, com oito pólos universitários — Berkeley, UCCLA, etc. —, onde trabalhavam os melhores investigadores e estudavam os melhores alunos. Abaixo deste existia um sistema universitário completamente separado, as «universidades estatais», composto mais ou menos por quinze grandes pólos universitários. Destinava-se a estudantes com resultados escolares mais baixos no secundário mas que queriam frequentar a universidade. Havia um terceiro patamar, as universidades comunitárias, com cursos de dois anos, que existiam em todas as regiões do estado.

Nos três sistemas, os custos para os alunos limitavam-se ao alojamento. Lembro-me de que no meu primeiro dia na Universidade da Califórnia, em Berkeley, o reitor subiu ao palco para nos dar as boas-vindas e desculpar-se por a universidade ter decidido instituir uma pequena propina — $ 86,50 — para a assistência médica dos estudantes. Fez questão de sublinhar que a universidade instituía esta propina contrariada porque acreditava que qualquer pessoa que desejasse prosseguir a sua educação não deveria ser desencorajada pela falta de meios.

Nas décadas que se seguiram à segunda guerra mundial, a Califórnia era ainda uma economia fundamentalmente agrícola. A sua população estava em rápido crescimento. Os líderes políticos do país perguntavam-se: qual é o melhor investimento que podemos fazer no futuro deste estado? A resposta era construir um sistema de educação amplo, aberto e de elevada qualidade que fosse acessível a todos os cidadãos de todos os níveis. Fui, claramente, um dos beneficiados por este empenho das instituições públicas na educação. Nasci numa pequena comunidade agrícola. Embora ambos os meus pais tivessem habilitações universitárias, a minha família não era tradicionalmente intelectual. Mas, como queria aprender, trabalhei afincadamente e descobri que a Califórnia estava disposta a encorajar e apoiar estudantes como eu.

Acabou por acontecer que muitos dos meus amigos na universidade eram alunos de electrónica e informática. Ao terminarem os estudos, muitos dos estudantes dos institutos e universidades do sistema tripartido da Califórnia do Norte queriam permanecer naquela região pela beleza da sua paisagem e pelo bom clima. Em conjunto com os alunos de Stanford — uma universidade privada muito rica situada no coração do actual Silicon Valley —, constituíam uma enorme e altamente qualificada força de trabalho capaz de ajudar a criar as várias profissões e empresas de electrónica, informática e comunicações. Esta geração, assim como as subsequentes gerações de alunos, são o fruto do que hoje parece ter sido um investimento muito sábio a longo prazo dos fundos públicos no que depois se revelaria um centro de transformação tecnológica de enorme importância.

Uma das contribuições decisivas da Universidade de Stanford para a história do vale foi a de Frederik Terman, professor de Engenharia, que introduziu a prática de associar a investigação universitária ao mercado empresarial da comunidade. Nas décadas de 1930 e 1940, Terman incentivou o corpo docente e os alunos de engenharia a aplicarem os seus conhecimentos na criação de novas firmas e a comercializarem novos produtos. Entre os seus primeiros alunos a seguirem seriamente o conselho estavam Hewlett e Packard, que fundaram aquilo que veio a tornar-se uma das mais bem sucedidas empresas de electrónica.

Uma das marcas características de inovação de Silicon Valley continua a ser a estreita ligação entre o que se passa dentro das salas de aula e dos laboratórios das universidades públicas e privadas da região e o que está a acontecer no mundo empresarial. Nos dias de hoje, como é evidente, as áreas abrangidas não se limitam à electrónica e informática, incluindo também as telecomunicações, biotecnologia, nanotecnologia e outros campos da alta tecnologia.

Em muitas das suas versões mais conhecidas, a história do vale é feita de casos de sucesso absoluto — políticas de largo alcance que produziram uma população amplamente educada, gente que criou empresas poderosas, prosperidade económica, vitalidade cultural, e que exerce uma enorme influência nos padrões sociais e económicos de todo o mundo. Estes são certamente elementos-chave a ter sempre em consideração. Mas existe outra face da moeda, um aspecto da história que não é salientado pelo jornalismo empresarial ou pelas descrições de Silicon Valley que encontramos na cultura popular, que apresenta este lugar como uma espécie de Hollywood da tecnologia, com toda a riqueza, publicidade, glamour e excessos pessoais típicos de Hollywood.

O outro lado da moeda implica o reconhecimento de que, apesar do enorme poder intelectual reunido, de toda a criatividade, todo o capital acumulado, todas as empresas criadas, todo o software e hardware produzido e toda a riqueza gerada, apesar de tudo isto, se olharmos bem para esta região, descobrimos que Silicon Valley se transformou num desastre urbano, numa região social e ambientalmente caótica.

O boom económico dos anos 1990 alargou grandemente o alcance geográfico das firmas de electrónica e de tecnologias da informação e das comunicações e congéneres com sedes ou instalações em Silicon Valley. À medida que a habitação foi escasseando e que os preços dispararam, mesmo os trabalhadores relativamente bem pagos da indústria da alta tecnologia foram forçados a procurar casas longe do seu local de trabalho. Terras que nem sequer estão no mapa do Central Valley da Califórnia, longe de São Francisco, são agora locais muito procurados para empreendimentos urbanísticos alimentados pela riqueza de Silicon Valley.

Não é invulgar para quem vive nesses sítios passar duas ou até três horas nos engarrafamentos de trânsito nas auto-estradas para chegar ao trabalho — nos dois sentidos. A beleza original da paisagem natural foi destruída por bulldozers e alcatrão. A região está atulhada de construção barata, complexos de apartamentos, empreendimentos e centros comerciais, além das notórias «mcmansões» — casas muito grandes e elaboradas (normalmente de gosto duvidoso), apertadas umas contra as outras em terrenos demasiado pequenos —, castelos pretensiosos construídos em áreas do tamanho de um selo de correio.

À medida que esta mancha feia e caótica se espalha para as áreas circundantes a Silicon Valley, uma das zonas mais belas da Califórnia é transformada naquilo a que o crítico urbanista James Howard Kunstler chamou «a geografia de nenhures». Infelizmente, o aspecto material da região, um aglomerado de habitações e trânsito, começa a espelhar-se nos estilos de vida das pessoas que aí se estabeleceram. Embora dezenas de milhares de pessoas se mudem para esta região à procura de riqueza e qualidade de vida num encantador recanto do país, as condições de vida são, na realidade, cada vez mais frenéticas.

Um caso típico é o de David Bafford, mestre-de-obras em Silicon Valley que até há pouco tempo fazia todos os dias percursos de duas horas para chegar e voltar do trabalho. Como ele comentou a um jornalista do New York Times: «Cheguei à conclusão de que o ano passado gastei 2048 horas a trabalhar 1100 horas no trânsito [e] 608 com a minha família. Passei a guiar o dobro do tempo que passei com os meus filhos.»

Os psicólogos referem que encontram cada vez mais casos de pessoas que se deixam consumir por horários deste tipo, apresentando sintomas de stress, tais como o crescente abuso de álcool e drogas, distúrbios do sono, acidentes de viação e ataques de fúria no trânsito. Perante o dilema dos engarrafamentos que entopem as estradas montanhosas para a zona oriental de Silicon Valley, começaram a aparecer novas pressões a favor dessa grande inovação no planeamento das auto-estradas americanas dos anos 1940 — a construção de vias mais largas. É uma crença inabalável: basta acrescentar mais um par de faixas de rodagem e fica tudo resolvido.

Os custos sociais suportados pelas comunidades, vilas e cidades afectadas por estas pressões são também consideráveis. Como as ligações entre casa e trabalho estão repletas de dificuldades, o tecido social da comunidade fica feito em farrapos. Num inquérito feito pelo Los Angeles Times sobre o emprego, habitação e padrões de trânsito no Sul e Norte da Califórnia lia-se: «Pressões habitacionais desfazem laços comunitários».

As pessoas com rendimentos baixos e médios que trabalham na área dos serviços são especialmente prejudicadas porque os seus orçamentos não lhes permitem viver minimamente perto do local de trabalho. «[...] professores e secretárias, professores universitários e paramédicos, polícias e carpinteiros — as áreas de rendimento médio que são o cimento de qualquer comunidade — dão por si a serem empurrados para fora.» Consequentemente, as escolas não conseguem atrair e reter os professores, os serviços sociais ressentem-se e o sentimento de que há vizinhanças variadas, amistosas e coerentes desvanece-se. Na reportagem do LA Times salienta-se que, embora a economia do estado esteja em alta, «provocou também o deslocamento de pessoas e negócios por todo o estado, transtornando mais vidas em regiões cada vez mais afastadas».

Silicon Valley é, de facto, conhecida como a capital da indústria electrónica. A pergunta impõe-se: «O que é que a electrónica veio acrescentar a esta situação?»

Têm sido encontradas algumas pistas a este respeito numa série de estudos sobre a cultura de Silicon Valley que têm vindo a surgir, conduzidos por um grupo de antropólogos que se dedicam agora a estudar meticulosamente a vida familiar e laboral no vale. As conclusões preliminares deste estudo revelam um mundo em que o trabalho é tudo e em que os objectos electrónicos são o cimento que mantém a coesão do quotidiano familiar. Os entrevistados afirmam que estão sempre contactáveis. Seja por telefone, beeps, e-mail ou de outra forma, a sua vida está permanentemente sujeita a interrupções. São incessantemente inundados pelas exigências do trabalho, estejam no escritório, no carro ou em casa. O trabalho é tão assoberbante que os limites tradicionais entre trabalho e casa acabam por desaparecer. «A colonização do espaço familiar pelo trabalho é apenas a consequência mais evidente», como observou um cientista social. «À medida que falávamos com as pessoas no trabalho e em casa, descobríamos que só determinados tipos de trabalho eram levados para casa. Como o ambiente de hiperinformação que encontramos no local de trabalho é eminentemente interrompível, as actividades que exigem concentração — especialmente as que envolvem escrita, leitura e reflexão — são transferidas para casa, onde existe a vã esperança de se conseguir sossego.»

Como é evidente, as normas originalmente associadas à organização empresarial e tecnológica — comunicabilidade, multifuncionalidade, trabalho em rede e planeamento just in time, por exemplo — foram agora assimiladas como valores profundamente pessoais e familiares. As pessoas falam naturalmente de si próprias e daquilo que fazem utilizando metáforas tecnológicas e linguagem empresarial.

Os acontecimentos mais importantes do dia implicam a transmissão de programas e calendários actualizados entre cônjuges, ou o envio de mensagens aos filhos que se encontram a quilómetros de distância para se certificarem de que estão bem e em sincronia. As vidas dos filhos destas famílias são altamente planeadas. Passam a maior parte do tempo ao cuidado de professores, treinadores, amas profissionais e sistemas de transporte personalizados que os levam da escola para as aulas de música, para actividades desportivas e outras actividades extracurriculares que os ocupam até à hora que os pais chegam a casa ao fim da tarde.

Nestas condições, os valores característicos da vida familiar também estão a ser transformados. Por exemplo, uma das coisas que normalmente se exigem aos membros da família é terem sempre os telemóveis ligados e verem a sua caixa de correio electrónico e gravador de mensagens frequentemente. Um dos dilemas que atormentam as pessoas estudadas por estes antropólogos é o de como conseguir ter o máximo acesso aos outros e ao mesmo tempo controlar o acesso que os outros têm a eles.

Neste contexto, o enfraquecimento da cultura cívica local é também evidente. Os resultados do projecto de investigação nacional «The Social Capital Community Benchmark Survey» indicam que os habitantes de Silicon Valley são menos propensos do que os americanos de outras quarenta comunidades a visitar os familiares, participar em clubes, desempenhar cargos cívicos ou comparecer em reuniões públicas.

Em comentário a estas conclusões, James Koch, director do Centro para a Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Santa Clara, disse ao The Mercury News: «Temos uma enorme vitalidade no que diz respeito à inovação e comercialização de tecnologias. Normalmente isso é atribuído às sólidas redes que existem na região. Mas somos assinalavelmente fracos em termos de laços sociais... Somo como um atleta extremamente bem preparado para uma modalidade específica. Mas não cultivámos a capacidade mais geral do envolvimento cívico.»

Em suma, o que os cientistas sociais que estudam o vale estão a descobrir faz parecer a «corrida de ratos» empresarial de antigamente um passeio no parque. As pessoas estão a conviver com formas de stress e de fragmentação social que parecem ser cada vez mais características das consequências da nossa «nova economia». Do que tenho visto nas minhas viagens pela América nos últimos dois anos, estas condições parecem estar a tornar-se a norma nos outros centros de alta tecnologia – Austin, Texas; Seattle, Washington; Beaverton, Oregon; e Atlanta, Georgia, entre outros.

A «geografia de nenhures» reflecte-se no rápido desenvolvimento de uma «rede de nenhures» correspondente. Acredito que é importante encarar de frente as formas de desordem efectiva e de deslocamento social que frequentemente encontramos nos sítios que exemplificam a perspectiva de um futuro tecnologicamente saturado.

O que é que não está a correr muito bem nestas cidades e subúrbios?

Infelizmente, a visão destas realidades é frequentemente ocultada pelo imaginário idílico que desde há muito rodeia a tecnologia da informação. Mas devia fazer-nos parar para observarmos as condições de vida insustentáveis e caóticas que de facto encontramos hoje em alguns centros de alta tecnologia.

Estas condições levantam questões sérias sobre a qualidade de vida na cidade tecnologicamente sobrecarregada. Há dez anos, quando começaram a surgir os telefones móveis, e-mail, voice-mail, fax, beeps, etc., escrevi uma série de artigos em que me questionava se as pessoas aproveitariam a oportunidade para reflectir sobre o fenómeno que estava a ganhar forma, se aproveitariam para criar uma nova sociedade que fomentasse vidas pessoais mais equilibradas e relações sociais mais solidárias.

Seriam capazes de se distanciar da colmeia electrónica e criar ambientes favoráveis às relações sociais e à riqueza e diversidade do quotidiano?

Surgiriam grupos de reflexão em que as pessoas fossem capazes de assimilar as novas tecnologias, aproveitando só o indispensável e rejeitando o resto?

Iriam as pessoas unir-se por sentimentos que fossem para além do puro interesse próprio e reflectir sobre as condições de vida ambientais e comunitárias que desejariam ver realizadas no futuro?

À luz destas questões, as propostas estratégicas que temos visto jorrar dos centros universitários e empresariais nos últimos dez anos têm pouco para oferecer. O que propõem é uma cada vez maior saturação da vida laboral e pessoal pela tecnologia digital. A suposição recorrente (embora falida) parece ser: sim, as nossas vidas estão destroçadas e são caóticas, mas com mais uns quantos aparelhos digitais devemos conseguir poupar tempo, reduzir o stress e atingir um equilíbrio razoável. Escusado será dizer que tudo o que tem sido escrito por historiadores e sociólogos sobre o assunto indica que este tipo de estratégia está condenado ao fracasso. Não se consegue ganhar tempo, sossego ou equilíbrio pela compra e utilização de tecnologias que supostamente poupam tempo, sejam elas na forma de electrodomésticos ou das novas ligações com (e agora sem) fios. Isso só serve para multiplicar o número e intensidade das exigências sobre o nosso tempo, atenção e capacidade de preocupação.

Ao reflectirmos sobre estas questões, encontramos três aspectos que merecem seriamente a nossa atenção, normalmente ignorados nos textos que fazem a apologia da utopia tecnológica da Califórnia.

1. Na sua forma original e actual, a metrópole tecnológica chamada Silicon Valley nunca incentivou a investigação e desenvolvimento das artes da vida pública. Pelo contrário, os seus ensinamentos concentraram-se na inovação tecnológica como fim em si mesma e na procura do enriquecimento pessoal. A infeliz consequência tem sido permitir a deterioração dos espaços públicos, tanto naturais como artificiais, levando à erosão da qualidade de vida de todos. Qualquer tentativa de inspiração em Silicon Valley como modelo para futuras cidades académicas deve estar prevenida contra este resultado.

2. O desafio há muito reconhecido de corrigir alguns dos problemas mais urgentes na relação entre a vida urbana e suburbana não foi resolvido pelas infusões intensivas de tecnologias da informação. O que podia ter sido uma oportunidade para a reestruturação fundamental das condições de trabalho, da habitação e de transportes foi largamente ignorado. Em vez disso, sobrepusemos novas vias de comunicação aos padrões materiais e sociais existentes sem repensarmos esses padrões em toda a sua complexidade.

3. É necessário reflectir e discutir quais são as práticas, relações e instituições sociais que devem ser protegidas das pressões exercidas pelas redes comerciais globais. Numa era em que as pessoas estão ávidas de comunicação faríamos bem em perguntar: em que situações das nossas vidas faz sentido permanecer incomunicável? Ao mesmo tempo que continuamos a suportar muitos dos fardos da era industrial do automóvel, aproximamo- -nos perigosamente de uma situação de total escravatura ao e-mail, ao trabalho digital e a todo o aparelho com e sem fios que nos rodeia.

Depois do incrível rebentamento da bolha dot-com, têm-se visto alguns lampejos da consciência de que a fusão da Internet e da sociedade tem os seus limites, o reconhecimento de que de alguma maneira o bom senso terá de prevalecer.

Plano A — o plano que recomenda uma inundação sempre crescente da vida pela tecnologia digital — é manifesto que esse plano sem sentido não tem tido grande êxito.

Pois então: qual é o nosso Plano B? Qual é o nosso modelo alternativo para a integração da tecnologia na vida urbana, da tecnologia da informação na sociedade? Que tipo de mundo esperamos vir a ter?

Pela minha parte, espero que os académicos, cidadãos, líderes políticos e homens/mulheres de negócios de Lisboa e de Portugal inteiro indiquem o caminho na resposta a estas questões. Precisamos de novos modelos de transformação tecnológica e urbana, não da repetição obsessiva de fórmulas que têm falhado de forma tão estrondosa.

Tradução de Diogo Costa

* Rensselaer Polytechnic Institute, Troy, Nova Iorque.

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