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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social v.181 n.181 Lisboa  2006

 

Étienne Balibar, A Europa, a América, a Guerra, Reflexões sobre a Mediação Europeia, Porto, Campo das Letras, 2005, 185 páginas.

 

Este livro sofre, à partida, de dois handicaps. Não só a sua premissa se encontra já ultrapassada, como também não podemos considerar que se trate de um livro propriamente dito. Ou seja, o autor parte da premissa de que a Europa deveria servir como mediadora entre a América e o Iraque de Sadam Hussein. O livro não foi planeado à partida como uma monografia, assentando antes na actividade académica do autor: uma conferência realizada em Novembro de 2002 na Universidade de Humboldt, em Berlim, sobre o poder mediador da Europa; uma polémica com Bertrand Ogilvie (professor de Filosofia Política e de Psicologia na Universidade de Paris-X Nanterre) que o autor intitulou «política da impotência»; nove pequenos textos para completar a conferência; uma discussão com John Carlos Rowe (professor de Literatura Inglesa e Comparada na Universidade da Califórnia, Irvine) sobre as contradições entre o conceito de mediações locais e a reforma das instituições internacionais.

Balibar é um conceituado professor de Filosofia Política na Universidade de Paris-X Nanterre e na Universidade da Califórnia, Irvine. É conhecido, acima de tudo, por ter pertencido ao grupo de ideólogos marxistas do Partido Comunista Francês (PCF) que causou um enorme impacto político nos finais da década de 60 e começo dos anos 70. A obra Lire Le Capital (com L. Althusser, P. Macherey, J. Rancière e R. Establet) é emblemática e representa uma visão hipercientista do marxismo. Posteriormente, haveria a cisão com o PCF. Outras obras poderão ser citadas para exemplificar a importância deste investigador nos meios intelectuais e académicos: Cinq études du matérialisme historique (1974), Les frontières de la démocratie (1992), Nous citoyens d’Europe? Les frontières, l’État, le people (2001).

Mas regressemos à obra em questão. A Europa, a América, a Guerra faz lembrar a expressão futebolística «jogo para cumprir calendário». A edição portuguesa acaba por ser uma formalidade sem verdadeiro impacto académico quando comparada com as obras acima citadas. Se a premissa de Balibar é justificável em 2003, data da edição original em francês, já o é menos em 2005, quando o cenário é o de resolver as consequências da invasão americana, e não uma suposta mediação europeia entre os principais intervenientes, neste triste episódio que continua a manchar as notícias.

Balibar justifica a sua obra com o argumento de que as questões da política europeia são abordadas em diálogo com intelectuais liberais americanos. O ponto de partida não parece ser o mais acertado. Por que é que este suposto diálogo é apenas com os intelectuais liberais americanos? Os argumentos dos intelectuais conservadores americanos não deveriam também ser tomados em consideração, especialmente quando estes se encontram enfeudados nas acções do governo republicano de George W. Bush? Fica a impressão de que Balibar quis discutir este assunto dentro de parâmetros liberais que estabeleceu à partida sem qualquer tentativa para abrir a discussão.

Adiante. Balibar afirma que algumas vozes de intelectuais americanos (e de intelectuais que trabalham nos Estados Unidos) se fazem ouvir para que a Europa exerça uma mediação. Estes intelectuais exigem da Europa que ajude a parar a escalada militarista norte-americana que põe em causa os direitos fundamentais democráticos e polarizam as relações entre o mundo cristão e o muçulmano. Este argumento é falacioso. Em democracia encontram-se sempre vozes discordantes. O impacto destes intelectuais foi praticamente nulo: o Congresso norte-americano apoiou por larga maioria a guerra do Iraque e, posteriormente à invasão deste país, Bush seria reeleito com ampla maioria. Fica a suspeita de que a importância destes intelectuais reside na vontade de Balibar em construir um castelo nas nuvens europeias para açaimar o hard-power norte-americano.

Balibar admite que explora um paradoxo: a construção de uma antiestratégia alternativa à mundialização e as novas guerras. Confesso que este conceito me parece bastante estranho. O fenómeno da mundialização, ou globalização, como é mais comum ser referido, é um fenómeno histórico que começou com as explorações portuguesas e espanholas e, quer se seja favorável ou não, parece inevitável. A questão não é a de aceitar ou rejeitar a mundialização. Se não queremos viver como o paraíso isolado da Coreia do Norte, os países vão ter de viver num mundo global. Podem negociar-se, em parte, os termos e os prazos, mas não o conceito de globalização. Uma alternativa às novas guerras parece igualmente problemática. Infelizmente, a guerra sempre existiu entre os homens. A guerra não é velha nem nova, é uma característica negativa do homem que, até prova em contrário, continuará a manchar a Terra.

A que se resume a antiestratégia de Balibar? A quatro proposições, nenhuma das quais é nova e que demonstram o passado intelectual de Balibar: uma nova ordem pública internacional, o desarmamento progressivo e controlado, o primado das negociações sobre os conflitos, responsabilizando os intervenientes, e a construção do conjunto euro-mediterrânico como exemplo da redução das divisões entre civilizações (neste caso a cristã e a muçulmana). A utopia escapa ao homem desde que Sir Thomas Moore escreveu a obra com esse título. Como exercício académico, o esforço de Balibar é de louvar. Como exercício académico com possíveis efeitos práticos, as propostas de Balibar são pouco realistas. Como exercício político, as propostas de Balibar são irrealistas.

Lembro-me de que numa recensão na Análise Social, há uns anos, José Cutileiro, com a sua conhecida contundência, descreveu como a escrita sobre antropologia podia ser uma «seca». A escrita sobre relações internacionais, por vezes, também pode ser uma «seca». Tendo anunciado as suas quatro proposições, Balibar escreve o seguinte: «nesta reflexão igualmente se evidencia — por conta do próprio autor — a procura de uma figura de intelectual viajante e tradutor para o qual, como para a própria Europa, desviei a expressão dialéctica «mediador em declínio», que retirei de um ensaio de Frederic Jameson publicado em 1973. Espero contribuir deste modo para a discussão em curso acerca da função política dos intelectuais, que me parecem muitas vezes perder-se em querelas «sem interesse» de gerações e etiquetas. Ao mesmo tempo desejei pôr à prova uma concepção da relação da filosofia com a actualidade que impõe articular a reflexão sobre o próprio acontecimento com a enunciação do lugar em que se fala (e onde se escuta) e a análise das condições de escrita pública. Esse lugar, quer se queira, quer não, não é puramente ideológico, antes está sujeito a forças materiais cujos efeitos se relacionam com a vida e a morte. Portanto, não se estabelece e se delimita apenas através de palavras, representações e ideias» (p. 8-9).

Infelizmente, Balibar, neste livro, contribui pouco para a função pública dos intelectuais. Procura relacionar a filosofia com a actualidade e acaba por não responder nem à filosofia nem à actualidade. Talvez tivesse sido mais bem sucedido se tivesse dividido o livro em duas partes. A primeira seria dedicada a uma exploração filosófica dos objectivos que a sociedade humana deveria estabelecer, mediante os problemas com que se debate. A segunda parte seria dedicada à análise da forma como estes objectivos poderiam, ou não, ser concretizados.

Em resumo, a principal premissa do poder mediador da Europa parece ultrapassada pelos eventos, os conceitos discutidos são debatidos de forma divorciada da realidade política e a estrutura do livro obedece à actividade académica do autor e não a um projecto global de monografia.

 

NICOLAU ANDRESEN LEITÃO

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