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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.182 Lisboa jan. 2007

 

Maria Manuela Ferreira Mendes, Nós, os Ciganos e os Outros, Etnicidade e Exclusão Social, Lisboa, Livros Horizonte, 2005, 205 páginas.

 

O conceito de identidade cigana é, por assim dizer, uma self-fulfilling prophecy: existe um consenso alargado, tanto do ponto de vista émico como ético, sobre o que é «ser cigano», e portanto não se discute; opta-se, em alternativa, por folclorizá-lo (exotizando-o) ou por denunciar tentativas e estratégias hegemónicas de combate a essa identidade e tradição «diferente». Do ponto de vista histórico, os estudos sobre ciganos denunciam um processo marcante: o da transformação da «ciganidade» de uma «raça» — nas últimas décadas do século xx — numa «minoria étnica». Esta transformação é concomitante com a mudança de paradigma, nos projectos científicos, que foi rejeitando retratos culturalistas homogéneos e primitivistas em favor de uma complexificação do social através da consciência do pluralismo que, em última instância, o define. Ambos os processos redundaram numa opção «política», na literatura recente sobre os ciganos em Portugal, de denúncia de lógicas de exclusão e marginalização dos mesmos, frequentemente sem o necessário esforço de questionamento epistemológico dos conceitos empregues nessa denúncia.

O livro de Maria Manuela Ferreira Mendes tem, neste contexto, dois méritos: em primeiro lugar, porque aborda esta problemática de um modo frontal — assumindo-a como a questão central da obra — e, em segundo, porque, ao fazê-lo, assume-se como uma das raras monografias publicadas nos últimos anos sobre os ciganos portugueses, a partir de uma investigação de terreno qualitativa e quantitativa, desenvolvida pela autora em bairros sociais da região do Porto. Neste sentido, a autora adopta também ela um objectivo «político», isto é, o de combate ao desconhecimento tradicional que persiste na sociedade (neste caso concreto, a sociedade portuguesa) em relação aos ciganos e que é, segundo Mendes, a principal causa para a «exclusão social» dos mesmos (pp. 18-19). Aqui a noção-chave será precisamente a de «conhecimento»: através da investigação das dinâmicas de «interconhecimento» — tanto entre os próprios ciganos como entre estes e «os outros» e, eventualmente, entre ambos e os investigadores do social (daí, parece-nos, o título proposto: Nós, os Ciganos e os Outros) — poder-se-á combater o tal «desconhecimento» dos «outros» em relação aos ciganos, desconhecimento que se estende do senso comum à própria academia. A autora alerta, e com razão, para a escassez de conhecimento científico em relação aos ciganos (p. 190), o que em si também constitui uma forma de marginalização.

Seguindo um estilo argumentativo directo e pragmático, oferecendo capítulos de reflexão teórica e bibliográfica como complemento a capítulos de apresentação e sistematização de dados empíricos, a autora manifesta uma preocupação inicial na situação da problemática, tanto do ponto de vista teórico — nomeadamente através de um dos conceitos-chave da ciência social contemporânea, a «etnicidade» (capítulo 1) — como do ponto de vista histórico — recuperando os eixos da presença e movimento dos ciganos no continente europeu (capítulo 2). Assim, no capítulo 1 a autora invoca a teoria sociológica acerca dos conceitos de «raça», «grupo social», «etnicidade», «identidade» e «classe», problematizando as suas hipóteses, para depois procurar particularizá-la no contexto cigano. O exercício poderia ser resumido nas seguintes questões: quais as «autopercepções» dos ciganos enquanto grupo étnico? Quais os mecanismos afectivos (sentidos de pertença), políticos (movimentos de reivindicação), estruturais (sócio-económicos, demográficos), que fomentam a noção específica de «etnicidade cigana»? Em que medida é que esta se constrói — como diferença, alteridade — em oposição a outra(s) etnicidade(s), ou em relação à «sociedade dominante»? Em resposta, a autora recorre a um conceito omnipresente nas investigações sobre ciganos nas últimas décadas: o de «exclusão social». Associando a pobreza, a segregação espacial e cultural e o défice de escolarização como factores mutuamente alimentados e reproduzidos, denuncia-os como alvos fáceis de discriminação e rejeição social — ou, numa lógica simmeliana, «estrangeirização» (p. 46). Nesta linha, o capítulo 2 da obra revisita a história da presença cigana no continente europeu e, em particular, no território português. Reproduzindo as principais linhas historiográficas e temáticas acerca da presença secular dos ciganos no «ocidente» e as principais narrativas e debates sobre a sua origem, a autora procura demonstrar como a «marginalização cigana» é o resultado de uma longue durée (p. 47) que cristalizou uma imagem estereotipada e negativa do «cigano» como nómada e, portanto, contrário à civilização.

De uma abordagem mais «macro», a autora parte à procura de contextos concretos de construção e negociação de identidades colectivas, nomeadamente bairros periféricos da cidade do Porto, a saber: o Bairro de São João de Deus, do concelho do Porto — o «bairro cigano problemático» por excelência, com presença regular nos media portugueses devido aos conflitos resultantes dos processos de demolição de barracas e realojamento —, e as freguesias de Espinho, Anta e Sivalde, do concelho de Espinho. Através de uma recolha empírica, que incluiu observação participante e entrevistas biográficas, Mendes elabora uma caracterização sociográfica dos distintos grupos e famílias aí residentes através da reconstituição de trajectórias individuais em contextos de identidades grupais. Assim, no capítulo 3 a autora recorre a testemunhos orais para caracterizar os espaços residenciais do Bairro de São João de Deus e da freguesia de Espinho através das percepções dos residentes acerca do mesmo, indagando as percepções mútuas acerca de ambos os bairros e destrinçando os tópicos que conferem uma «identidade territorial» (p. 55) específica a cada um, tanto em termos «intra» como «interétnicos». No capítulo seguinte propõe-se uma nova abordagem ao problema, desta vez orientada para a caracterização sócio-demográfica dos ciganos residentes em ambos os concelhos, explicando os padrões de residencialidade, trabalho, casamento, educação, etc., que marcam a tal marginalidade defendida por Mendes: desde o abandono escolar precoce à prática de economia informal, ausência de redes institucionais de assistência, etc. Esta caracterização permitirá à autora problematizar aquela que consideramos ser a questão central na obra em causa: as dinâmicas de construção de «identidades colectivas» em oposição a «alteridades» ou, noutras palavras, as dinâmicas de construção de uma «etnicidade cigana» em oposição à «sociedade dominante» portuguesa (capítulo 5). Para tal proporá vários «marcadores» (p. 131) que servirão de eixos de abordagem e discussão dessa construção, a saber: práticas matrimoniais (estratégias de aliança matrimonial), estatutos etários (papel atribuído aos «mais velhos», autoridade e liderança), solidariedades grupais (ajuda mútua), práticas linguísticas (o uso do romano), ritos funerários (relação com os mortos) e comportamentos religiosos (catolicismo, adesão ao movimento evangélico). Estes marcadores, que constituem elementos tradicionalmente associados à «etnicidade cigana», serão analisados pela autora através da sua aplicação aos contextos de Espinho e de São João de Deus, como que testando a sua plausibilidade, ou melhor, a sua pertinência contemporânea. Por último, Mendes fará uma última incursão na problemática da etnicidade através de uma dinâmica inevitável nos identity studies de hoje: a participação cívica e política e a construção de visibilidades e canais discursivos (capítulo 6). Para a autora, é neste campo que se percepcionam as clivagens sociais em contextos de relação multicultural; daí que volte a incorporar a questão do racismo como ilustrador dessa clivagem que, para a autora, é produto dessa mesma relação multicultural (p. 190). Daí também que a autora verifique a virtual ausência de associação e participação política dos ciganos portugueses — ao contrário do que sucede noutros países europeus —, o que, em parte, explica os processos de marginalização a que continuam a ser submetidos (p. 202).

Em suma, aprecia-se na obra de Mendes uma «novidade» no que diz respeito aos «estudos ciganos» em Portugal: a sua vontade de enquadramento e problematização teórica do conceito de «etnicidade cigana», propondo vários modelos e conceitos de abordagem teórica e, sobretudo, oferecendo um levantamento empírico extenso assente numa perspectiva local — um esforço que acaba por ser incomum na ciência social portuguesa relativa aos ciganos. Por outro lado, como referimos, a própria existência do livro constitui em si um facto pouco comum na academia portuguesa, o que já de si é de louvar. No entanto, o declarado «propósito político» do livro, que propõe explicitamente estratégias de acção social no contexto abordado, se bem que moralmente justificável, poderá eventualmente toldar a maior complexificação de alguns dos conceitos aqui debatidos, conceitos já de si self evident cada vez que se produz uma abordagem científica ao contexto dos ciganos. Por exemplo, processos como o «racismo» e a «discriminação» deverão ser apenas pensados numa perspectiva univocal, unidireccional? Até que ponto é que a «exclusão social» corresponde apenas e só a uma acção deliberada de uma hegemonia contra uma minoria? Em que medida é que a «etnicidade» é colectivamente percepcionada e aceite consensualmente como homogénea? São questões que o livro em causa, pela forma aberta e honesta com que se apresenta, permite ao leitor colocar.

Ruy Blanes

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