SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número183Regimes políticos e recrutamento ministerial na Europa do SulPrivate Life under Socialism. Love, Intimacy and Family Change in a Chinese Village índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.183 Lisboa abr. 2007

 

Francesca Vianello, Ai margini della città. Forme di controllo e risorse sociali nel nuovo ghetto, Carocci, Roma, 2006, 271 páginas.

 

O livro é uma colectânea de textos que resultam do trabalho de pesquisa de uma equipa de investigadores do Departamento de Sociologia da Universidade de Pádua, Itália. Os autores, especialistas nas teorias e práticas do controlo social em terrenos migratórios distantes, elaboram a sua análise num terreno perto de casa: um «gueto» da cidade onde vivem, o complexo residencial da «via Anelli» em Pádua, situado a 2 km do centro histórico e do próprio lugar de trabalho dos investigadores. Os prédios de cimento que constituem a arquitectura deste bairro são tristemente famosos pela atenção que a comunicação social lhes dedica quase quotidianamente nos últimos dez anos pela falta de higiene, prostituição, comércio de droga, criminalidade e intervenções das forças policiais. Mesmo assim, ao lado desta imagem, as associações de apoio e os movimentos cívicos que trabalham no bairro contam uma realidade diferente. O projecto de investigação neste lugar nasce da necessidade de interpretar analiticamente esta realidade migratória contemporânea e as suas formas de controlo social. Os resultados do projecto são apresentados nos seis capítulos do livro.

O primeiro, da autoria de Annalisa Butticci, Alvise Sbraccia e Francesca Vianello, é uma reflexão aprofundada sobre os desafios metodológicos de uma investigação levada a cabo num espaço de exclusão. Trata-se de um capítulo transversal a todos os outros, uma vez que as dificuldades em fazer pesquisa num espaço com estas características emergem em todos os outros capítulos. Do ponto de vista metodológico, o trabalho tem um enfoque exclusivamente qualitativo, referindo que foram utilizadas várias técnicas, como sejam: a observação directa do contexto; as entrevistas a observadores privilegiados e aos actores; a análise dos documentos camarários e das providências administrativas que os governos locais (quer o de centro-esquerda, quer o de centro-direita, que o substituiu mais recentemente) têm promovido entre 1998 e 2004 em relação à «via Anelli»; a recolha e análise de artigos da comunicação social local sobre este lugar para o mesmo período de tempo. Neste capítulo introdutório descrevem-se, pormenorizadamente, os mecanismos de controlo e autocontrolo que se activam em espaços segregados, como aquele em análise, interpretando-os com base nas teorias do controlo social. As técnicas utilizadas para a recolha de dados são etnográficas e os autores apresentam aqui também uma revisão da literatura sobre pesquisa etnográfica e trabalho de campo ancorada sobretudo na escola de Chicago e nas suas pesquisas pioneiras sobre fluxos migratórios do século xx.

Em sociologia, a escola de Chicago refere-se à primeira tentativa importante de estudo dos centros urbanos que combina conceitos teóricos e pesquisa de campo de carácter etnográfico. Da década de 20 à de 30, a sociologia urbana foi quase sinónimo de escola de Chicago, uma vez que esta inicia um processo que aborda os estudos em antropologia urbana em que o «outro» se torna o «próximo». Tendo o seu foco de análise principal no meio urbano, desencadeia os estudos relacionados com o surgimento de «favelas», a proliferação do crime e da violência, o aumento populacional, tão marcantes no início do século xx no continente americano. É neste contexto teórico que os autores do livro referem, por exemplo, autores como Clifford Geertz, o antropólogo da «descrição densa», que se definiu a si próprio como sendo, «da cabeça aos pés, um etnógrafo que escreve sobre etnografia». É assim que se pode ler: «As entrevistas constituem momentos, oportunidades de verificação e redefinição não somente das hipóteses, mas também das interpretações que íamos amadurecendo por meio da observação das relações interpessoais e grupais no interior da comunidade observada» (p. 27).

Fica claro como o objecto de estudo teórico nesta pesquisa se constrói no terreno, surgindo as hipóteses do discurso biográfico do entrevistado e dizendo respeito ao carácter pragmático e criativo dos actores imigrantes, para os quais a ordem social aparece como uma referência distante e um horizonte problemático. Neste sentido, do ponto de vista da análise, a posição dos actores torna-se explicativa do desafio normativo da recuperação das técnicas etnográficas na sociologia contemporânea. E não é por acaso que esta recuperação se faz por referência aos teóricos da escola de Chicago, «empenhados prevalecentemente em considerar os efeitos das repetidas ondas migratórias na organização social da metrópole» (p. 28), a que todas as contribuições deste livro colectivo se referem.

Porém, os autores sublinham também que realizar entrevistas em profundidade na «via Anelli» tem sido a fase mais complexa de todo o trabalho pela necessidade de possuir, ao lado de uma preparação teórica, uma abordagem humana que torne possível a interacção com o entrevistado. Como os autores sublinham, a capacidade de comunicação que permite recolher uma biografia passa por reconhecer os processos de controlo e autocontrolo social e estar disposto a oferecer algo em troca, partilhando alguma informação biográfica e estimulando a confiança.

Além disso, a escolha das pessoas para entrevistar pressupõe a presença de intermediários como associações e activistas políticos e outras redes preestabelecidas. Os modos como são descritas as várias técnicas usadas, as dificuldades encontradas e as pistas oferecidas para a sua resolução constituem, quer neste primeiro capítulo, quer em todos os outros capítulos temáticos, o contributo mais importante dos autores deste livro, um verdadeiro reconhecimento da importância da etnografia para a investigação sociológica na área das migrações contemporâneas. A título de exemplo, os autores explicam que reconhecer os espaços privilegiados para observar o ritual da violência/intimidação, o que faz parte de uma transacção de droga, é apenas possível entrando de alguma forma no jogo, indo «atrás das pessoas», como diria Clifford Geertz.

O capítulo 2 do livro, «Destinazione via Anelli: traiettorie di vita e percorsi migratori», da autoria de Annalisa Butticci, oferece a reconstrução dos percursos migratórios através dos quais a população migrante se insere no contexto habitacional, relacional e de trabalho no complexo «Sereníssima» da «via Anelli» em Pádua. A partir da análise da situação familiar, sócio-económica e do trabalho, das redes de socialização e de lazer no país de origem e no país de acolhimento, é reconstituído o percurso da migração de indivíduos de origem marroquina, tunisina, nigeriana e senegalesa. São aqui analisadas as razões das escolhas migratórias, as peculiaridades familiares, o peso e a importância das redes e as estratégias de sobrevivência dos fluxos migratórios. A maioria refere que a «via Anelli» é considerada uma «ultima spiaggia» (última praia) para a obtenção das condições de habitação, sociabilidade, solidariedade étnica e inserção no mercado de trabalho.

No capítulo 3, «La costituzione di uno spazio segregato», o autor, Alvise Sbraccia, põe em relação os percursos biográficos dos entrevista dos com os processos de estereotipagem e estigmatização que atingem os habitantes do complexo «Sereníssima» da «via Anelli», com particular atenção às formas como neste espaço segregado se constrói o encontro entre precariedade e clandestinidade. É aqui posta em evidência a inexactidão da associação da «via Anelli» à criminalidade, como é constantemente proposto pelos meios de comunicação social locais. Para corroborar esta perspectiva, o autor propõe uma leitura do espaço da «via Anelli» como um espaço de «trânsito», onde os recém-chegados constroem a sociabilidade necessária para organizarem a sua própria vida no país de acolhimento, embora em condições degradantes e problemáticas. Põe-se aqui também uma discussão sobre a dificuldade de designação do terreno de estudo e a falta de neutralidade da linguagem que é evidenciada nas nomeações que se usam para classificar o espaço do bairro. Referido às vezes como «espaço de minorias», outras como «espaço de exclusão» e ainda como «espaço segregado», a equipa do projecto decide-se pela designação «novo gueto» para indicar os 280 apartamentos que, como é explicado, foram inicialmente pensados como alojamentos para os universitários residentes na província, pela proximidade da estação do comboio e de uma das principais artérias rodoviárias da região. É nos anos 90 que os imigrantes começam a alugar casas neste bairro, sobretudo devido aos preços acessíveis, em consequência também da presença antiga de actividades, como a prostituição e o comércio de droga, que contribuem para a deterioração dos espaços comuns. É neste panorama que a retórica da luta contra a criminalidade encontra um terreno fértil para a construção da problemática da imigração como sendo exclusivamente uma questão de segurança.

A questão da inserção dos migrantes no mercado de trabalho é aprofundada nos capítulos 4 e 5, onde os autores, respectivamente Devi Sacchetto e Alvise Sbraccia, do capítulo «Un'area di manovalanza stigmatizzata», e Francesco Faiella e Devi Sacchetto, no capítulo «Una prospettiva rovesciata: «via Anelli come risorsa» — analisam as tipologias ocupacionais e as condições de trabalho dos migrantes da «via Anelli». Neste espaço, a população é empregada, quer na indústria (60% da população da região do nordeste italiano), quer nos serviços (cerca de um terço da população), enquanto 10% são empregados na agricultura. Os contratos a tempo determinado ocupam um número crescente de trabalhadores extra-europeus. Numerosas testemunhas dão conta da difusão do trabalho irregular do ponto de vista dos benefícios sociais e das inúmeras actividades ilegais, como a muito mediatizada venda de estupefacientes, e dos espaços de ambivalência que esta actividade comercial configura. Isto faz com que este tipo de comércio ilegal seja alvo de uma espécie de aceitação difusa em nome do processo de socialização das comunidades naquele espaço de imigração escolhido por vendedores que não vivem no bairro pela sua falta de segurança. São referidos os moldes em que são processadas as actividades ilegais que muitas vezes complementam os rendimentos irregulares e legais dos migrantes que vivem na «via Anelli» e as articulações do comércio da droga com a prostituição. Em suma, um lugar onde a ilegalidade existe ao lado, e às vezes em conflito, das práticas da ordem social quotidiana que vê nos imigrantes uma reserva de mão-de-obra invisível mas fundamental ao aparelho económico do Nordeste italiano (p. 157).

O capítulo 5 oferece uma leitura alternativa da situação da «via Anelli» através de várias testemunhas directas que fornecem uma imagem dos habitantes do «gueto» como indivíduos que, apesar de viverem em condições precárias tanto do ponto de vista económico como do ponto de vista social, conseguem activar uma série de recursos relacionais e económicos que lhes permite realizar os seus próprios projectos de vida. A discussão apresentada neste capítulo permite questionar os estereótipos e os preconceitos que conduzem à construção de equações simplistas, «como aquela que torna iguais as condições de irregularidade de um migrante à prática de actividades ilícitas» (p. 161). Faz-se referência neste capítulo às oportunidades que a «via Anelli» oferece como espaço habitacional de baixo custo, pelo menos em comparação com o custo de apartamentos com as mesmas dimensões noutros bairros, oferecendo também a garantia de encontrar compatriotas e com eles estabelecer alguma forma de solidariedade primária indispensável à chegada ao país (recordamos a entrevista com a jovem nigeriana que, no capítulo 2, conta ter deixado Lagos sozinha, apenas com um papel no bolso a dizer «via Anelli»). Refere-se ainda a prática comum do subaluguer e também a existência de várias associações laicas e católicas que oferecem consultorias e ajuda para a resolução de problemas legais ligados à imigração e à assistência social. A maioria dos habitantes do «novo gueto» sai de manhã para ir trabalhar ou para ir à escola, havendo também uma boa parte de residentes envolvidos nas actividades das associações que operam no bairro. Existe igualmente um grande movimento de comércio informal nas ruas, a cargo sobretudo de mulheres que comercializam produtos alimentares e comidas prontas. Mas não é por isso que a «via Anelli» deixa de ser estigmatizada como um lugar de marginalidade, sendo referido que declarar que aí se reside constitui um forte motivo de exclusão no acesso ao mercado de trabalho.

No capítulo 6, Alvise Sbraccia e Francesca Vianello, depois de descreverem o processo pelo qual a «via Anelli» se tornou um caso «nacional» no que diz respeito à ordem pública, descrevem também como este processo levou a transformações que têm consequências na gestão dessa mesma ordem pública, quer de um ponto de vista político, quer do modus operandi das forças policiais. Mais uma vez, a compreensão deste processo beneficia da análise dos relatos da vivência diária dos habitantes do «gueto» e das forças policiais.

Finalmente, e retornando à questão metodológica que já foi referida no início, é importante realçar o mérito desta investigação sobre um «gueto» de Pádua que, além de percorrer a sua história, descreve as suas características e as suas representações públicas, escolhendo dar voz aos próprios actores imigrantes e pondo em evidência a necessidade de estudar os movimentos migratórios contemporâneos de forma mais complexa do que aquela que se limita a analisar a questão em função das exigências democráticas de segurança urbana que estão a ser discutidas pelos governos locais e centrais um pouco por todos os países da União Europeia. Como refere Francesca Vianello, na área das migrações contemporâneas existe, a nível político, mas também em certa investigação académica, a tendência para considerar o «crime» um «contenitore» (contentor) de todos os males (p. 242). Ai margini della città é um exemplo de quanto é necessário aprofundar a investigação nesta área, dando atenção ao «outro» na perspectiva de uma real resolução dos problemas sociais que existem nos «novos guetos» das cidades europeias contemporâneas.

Pelas informações que fornece, através dos relatos dos próprios actores, sobre a regulamentação do movimento migratório contemporâneo em Itália e a necessidade da sua adequação ao contexto, esta investigação é também um exemplo da ligação que existe entre investigação científica e decisores públicos sobre as questões sociais que emergem nesta área. De facto, o livro termina com cenários para um futuro próximo, onde os investigadores se interrogam sobre as últimas decisões político-administrativas que afectam as áreas sociais sensíveis na «via Anelli» em Pádua, exemplo de «factos sociais» de alguma forma generalizáveis na Europa contemporânea.

Marzia Grassi

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons