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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.183 Lisboa abr. 2007

 

Armando Malheiro da Silva, Sidónio e Sidonismo, 2 vols., Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006, 431 e 413 páginas.

Em Sidónio e Sidonismo, adaptação da sua tese de doutoramento, Armando Malheiro da Silva propõe algo de simultaneamente útil e difícil: apresentar ao leitor, de forma exaustiva, os conhecimentos historiográficos sobre Sidónio Pais. Útil, porque muito do que se escreve sobre Sidónio e a sua breve presidência da República se baseia num número reduzido de fontes, nem sempre fiáveis, mas sobre as quais assentam várias ideias feitas; difícil, porque,

tendo em conta a natureza da carreira de Sidónio Pais, tal obra é, em grande parte, de pouco interesse para quase todos os potenciais leitores: a estreia política de Sidónio ocorreu apenas após o 5 de Outubro; pouco conseguiu realizar nos anos que se seguiram; em Berlim, como ministro, foi geralmente ignorado pelos governos português e alemão; verdadeiramente nasceu para a história com a conspiração que o levou ao poder em Dezembro de 1917, pouco menos de um ano antes da sua morte violenta na gare do Rossio. Por outras palavras, a biografia de Sidónio Pais, enquanto obra literária capaz de entusiasmar o leitor e fornecer-lhe, tanto quanto possível, um entendimento da forma de pensar e agir do sujeito retratado, é de difícil execução, já que muita da vida levada por Sidónio foi tudo menos excepcional — e o mito sidonista, fascinante e único na história contemporânea portuguesa, mas frequentemente abordado por outros autores, fica fora do âmbito de Sidónio e Sidonismo.

A divisão desta obra em dois volumes, com o segundo dedicado exclusivamente ao período de Dezembro de 1917-Dezembro de 1918, demonstra que Armando Malheiro da Silva tentou resolver este dilema: mas nem sempre o esforço de adaptação da tese de doutoramento para obra destinada a um público maior (esforço demonstrado pelo enorme número de notas de rodapé que remetem o leitor, não para as fontes, mas para a tese) foi bem sucedido. Qualquer dos dois volumes é excessivamente longo, em parte pela reprodução, directa ou indirecta, de documentos facilmente consultáveis (tais como decretos e debates parlamentares), em parte pelo estilo do autor, algo dado a discussões tangenciais que o afastam do essencial da obra. O ponto forte de Sidónio e Sidonismo reside na pesquisa detalhada da vida de Sidónio Pais. A descoberto, finalmente, ficam as suas várias carreiras: militar (surpreendentemente breve), docente, administrativa, política (antes e depois do golpe de estado de Dezembro de 1917) e diplomática. A descoberto fica, porém, o facto de haver pouco de notável na vida de Sidónio até 1917. O autor lida também, e com notável cuidado, com a pouco ortodoxa vida familiar do seu biografado. Para qualquer historiador que queira referir-se a Sidónio e ao sidonismo, a consulta da obra de Armando Malheiro da Silva será, e por muito tempo, obrigatória. Mais discutível é a interptretação feita pelo autor do cômputo geral da obra política sidonista e de algumas das suas partes.

Ao longo de 1918 e dos anos que se seguiram foram duas as questões que dividiram a opinião pública portuguesa em relação a Sidónio Pais, à sua obra e aos seus propósitos. A primeira, e mais importante, estava relacionada com a intervenção portuguesa na grande guerra; a segunda, com as ligações entre Sidónio Pais e os monárquicos. Por outras palavras, sobre a acção e a memória de Sidónio pairavam duas acusações — a de ser traidor à pátria e de ser traidor à República. Muito mais tarde, historiadores e politólogos debruçaram-se sobre outros aspectos do regime sidonista, especialmente as semelhanças notáveis entre o dezembrismo e os regimes antidemocráticos que não tardariam a proliferar por toda a Europa. Fora Sidónio Pais um pioneiro do assalto autoritário ao liberalismo, um protofascista? O que teria acontecido a Sidónio Pais, ao seu regime e a Portugal se este tivesse escapado às balas de José Júlio da Costa na estação do Rossio?

Armando Malheiro da Silva, quanto às primeiras acusações, não tem dúvidas: longe de ser um vendido ao ouro alemão, ou um germanófilo convicto, Sidónio Pais esforçou-se por cumprir as obrigações de Portugal para com os aliados, sendo impedido de reforçar o Corpo Expedicionário Português por uma série de circunstâncias que não podia controlar. E, por outro lado, se Sidónio Pais aceitou a cooperação monárquica, fê-lo apenas por ser estruturalmente republicano, isto é, tolerante de outras forças políticas, disposto a um compromisso que para ele nascia da necessidade de salvar o país. Quanto às possíveis ligações ideológicas entre o regime sidonista e os vários regimes fascistas ou meramente autoritários que se lhe seguiram, o autor declara logo na introdução o seu ponto de vista: há um «erro óptico» que tem levado a quase totalidade dos historiadores a confundir alguns dos elementos ideológicos minoritários do republicanismo português, incapazes de se imporem após o 5 de Outubro, mas nem por isso menos genuínos, com os regimes autoritários do pós-guerra, incluindo o fascismo italiano. Segundo Malheiro da Silva, a nossa hipótese parte, pois, desta mudança de perspectiva: acentuar que Sidónio Pais foi, dentro dos seus particularismos psicobiográficos, um republicano e um democrata e que o dezembrismo/sidonismo não representou qualquer tipo de ruptura ou de alteração substancial relativamente à matriz ideológico-política e político-institucional em que surgiu, achando-se incluídas no património doutrinário do Partido Republicano Português, desde o último quartel de oitocentos, a corrente presidencialista, a denúncia dos efeitos do parlamentarismo e a ênfase positivista na aliança da ordem com o progresso.

Ninguém nega hoje o republicanismo de Sidónio — e mesmo em 1918 e nos anos que se seguiram apenas a imprensa do partido democrático o fez. É legítimo, porém, questionar algumas das interpretações de Malheiro da Silva, tendo em conta a longa tradição historiográfica — não coincidente com qualquer posicionamento ideológico — de ver no sidonismo algo de novo. Em primeiro lugar, Malheiro da Silva parece prestar à experiência da guerra menos importância do que esta merece. O facto de Sidónio Pais cooperar com os aliados, especialmente com a Inglaterra, é de pouca monta, pois estes queriam reduzir ao mínimo o esforço de guerra português, o que ia de encontro aos desejos de Sidónio Pais. A política intervencionista de, entre outros, Afonso Costa, António José de Almeida e Norton de Matos foi feita, até certo ponto, contra a Inglaterra. Não foi por escolha de Sidónio Pais que a tragédia do 9 de Abril ocorreu, isto é, não foi por sua vontade que ainda havia tropas portuguesas nessa data nas trincheiras da Flandres, mas porque os aliados, preocupados com a transferência da frente leste para a França de formações alemãs após o tratado de Brest-Litovsk, demoraram demasiado tempo a retirar o Corpo Expedicionário Português (CEP) das linhas da frente. Discutir a política de guerra de Sidónio sem referir o papel no golpe sidonista de unidades militares prestes a partirem para a França (incluindo o célebre Infantaria 33), o regresso em licença a Portugal de oficiais que não mais voltaram às suas unidades e a presença de Sidónio Pais no cais de desembarque, quando chegavam os feridos, estropiados e doentes do sector português da frente, é retirar a essa política a sua carga simbólica, tão bem compreendida pela população portuguesa. Como explicar de outra forma a explosão de popularidade de Sidónio, os seus banhos de multidão nas deslocações fora de Lisboa? Seria também interessante saber o que Malheiro da Silva pensa do timing do golpe sidonista, já que este impossibilitou a realização de uma sessão parlamentar que se anunciava agitada, já que, tal como tinha acontecido anteriormente em França, os deputados que faziam parte do CEP tinham regressado a Lisboa para — e isto dizia-se abertamente na imprensa lisboeta, e encontramos ecos da acusa ção noutras fontes fidedignas — impor uma nova e mais abrangente União Sagrada, capaz de dar aos homens do CEP a sensação de que o país estava realmente a apoiá-los. Seria Sidónio Pais capaz de derrubar tal governo? Agiu ele de forma a antecipar-se a essa nova situação?

Mais importante, porém, é a discussão sobre o significado histórico do sidonismo. Limitá-lo à expressão de correntes minoritárias do republicanismo português é, de certa forma, menosprezá-lo enquanto fenómeno político, fazendo dele o resultado de uma confusão momentânea no seio desse mesmo republicanismo, rapidamente corrigida depois do fim da guerra. Malheiro da Silva sugere que, com base na sua obra, se proceda a uma revisão do papel dos sidonistas no 28 de Maio, na ditadura militar e no próprio Estado Novo. Mas, da mesma forma que se podem exagerar, num erro teleológico, as ligações entre um regime e outros que se lhe sigam, é possível exagerar as ligações entre esse mesmo regime e regimes, ou doutrinas, que o tenham antecedido. O que há, por exemplo, de verdadeiramente novo no programa de Mussolini em 1919? Muito pouco. Os aspectos inovadores do fascismo italiano aparecem mais tarde, sobretudo após a conquista de uma posição inatacável no governo. Mussolini partiu de uma base socialista, radical, mazziniana: o resto veio depois, e com tempo — esse mesmo tempo que faltou a Sidónio Pais. Sidónio Pais agiu, em Dezembro de 1917, de forma, pensou ele, a refundar a República, devolvendo-lhe a pureza inicial de Outubro de 1910, entretanto perdida pela «demagogia» dos democráticos. Mas a necessidade de proteger a sua República Nova e, ao que parece (e Malheiro da Silva não a nega), a enorme popularidade de que gozou, e que de forma pouco subtil tentou manipular, levaram Sidónio Pais a afastar-se das suas intenções iniciais, distanciando-se progressivamente das convicções políticas de toda uma vida e dos princípios básicos do republicanismo português, aqueles que, até 1910, asseguraram a união do Partido Republicano Português. Tendo a sua estada no poder sido tão curta e marcada por tantas mudanças de direcção, a importância de Sidónio Pais tem de ser avaliada não só pela obra por ele realizada, mas também pela obra que pretendia realizar — e isto não só em Dezembro de 1917, como também em Dezembro de 1918, quando o regresso ao 5 de Outubro parecia já uma miragem distante.

 

Filipe Ribeiro de Meneses

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