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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.185 Lisboa  2007

 

Manuel Loff e M. da Conceição Meireles Pereira (coords.), Portugal: 30 Anos de Democracia (1974-2004), Porto, Editora da Universidade do Porto, 2006, 294 páginas.

 

 

Coordenado por Manuel Loff e Maria da Conceição Meireles Pereira, este livro reúne as comunicações ao colóquio organizado pelo Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e que teve lugar em 2004, a propósito do 30.º aniversário do 25 de Abril de 1974.

É de saudar, desde logo, a circunstância de se publicarem as actas de um colóquio, prática pouco frequente entre nós. A pretexto dos mais variados assuntos, todos os dias se realizam em Portugal dezenas de seminários, encontros científicos, palestras, conferências, jornadas de estudo e reflexão ou debates cujo rasto se perde na memória dos participantes. Se, pela sua quantidade algo desmesurada, é difícil sequer acompanhar a existência de tantos colóquios e conferências, percebe-se que há um sério risco de, na ausência de registos escritos, se estar a perder uma parcela cada vez mais significativa da actividade académica e científica nacional. Afigura-se, pois, de primordial importância que os encontros científicos, quando adquiram uma dada dimensão (como foi o caso deste colóquio), sejam objecto de registo e divulgação para o futuro.

O encontro que forneceu o pretexto para a edição deste livro visou assinalar o 30.º aniversário do 25 de Abril de 1974. Tratou-se de um colóquio científico, ao qual esteve associada uma inevitável carga comemorativista — o que, em si mesmo, nada tem de reprovável, mas que pode, apesar de tudo, afectar a imparcialidade das abordagens, sobretudo quando estas assumem um figurino claramente engagé, como sucede com muitos dos textos que integram esta obra. Por outro lado — e como é natural numa obra colectiva —, o livro contém contributos de qualidade muito desigual e com alcances muito diversos. Aqui se encontram desde ensaios de interpretação global do período revolucionário e da descolonização — como os de Fernando Rosas e Josep Sánchez Cervelló, respectivamente — a análises de temas muito circunscritos e limitados, de que é exemplo o texto de Maria da Conceição Meireles Pereira sobre a projecção do 25 de Abril na Vértice ou a nota informativa sobre a interessantíssima experiência do Centro de Documentação e Informação sobre o Movimento Operário e Popular do Porto (CDI), da Universidade Popular do Porto. Encontramos ainda, numa linha de investigação que tem vindo a ser explorada pelo autor desde há alguns anos, um estudo de António Costa Pinto sobre o legado do autoritarismo e a transição portuguesa para a democracia que, a par do texto de Josep Sánchez Cervelló, é porventura o trabalho que, de um ponto de vista científico e académico, revela maior qualidade, profundidade e isenção de todos quantos são dados à estampa neste volume. Em contraste, existem artigos, como o de Tiago Matos Silva, sobre o 25 de Abril e o ensino da história, que assumem uma perspectiva de tal modo «comprometida» — e até não despida de intuitos polemizantes (Tiago Silva afirma, por exemplo, que os autores de um manual de história do 11.º ano de escolaridade não hesitam em «mentir abertamente») — que os torna pouco fiáveis e objectivos.

A este propósito, a construção interpretativa de Fernando Rosas sobre o 25 de Abril, apesar de engenhosa, imaginativa e inteligente, padece de algumas fragilidades que merecem ser registadas. Logo a abrir, o autor diz-nos que a revolução portuguesa «foi a última revolução de esquerda da Europa do século xx» (p. 15). Se é absolutamente indiscutível que o 25 de Abril foi uma revolução «de esquerda» (no sentido em que se dirigiu contra um regime «de direita», autoritário e conservador), qualificar os movimentos revolucionários à luz dessa dicotomia é uma empresa sempre arriscada. Que dizer então das «revoluções» de 1989, que ditaram a queda dos regimes comunistas do Leste da Europa? Foram revoluções «de direita»? Ou não foram de todo «revoluções», em sentido próprio?

Fernando Rosas afirma também que o MFA controlava por inteiro os acontecimentos, tendo sido capaz de paralisar a capacidade operacional sobre as forças armadas da hierarquia militar e até dos «generais dissidentes minoritários» (ou seja, Spínola e Costa Gomes). Se com isso se pretende afirmar que, num certo sentido, a cadeia hierárquica das forças armadas se esfumou durante o período revolucionário, tal não oferece grande dúvida — ainda que se possa dizer que, a par da cadeia hierárquica militar tradicional, outras hierarquias, efémeras e flutuantes, se forjaram nos meios castrenses durante o PREC. Mas o enfraquecimento da cadeia de comando e da própria disciplina militar não significou, ao invés do que pode sugerir uma leitura apressada do texto de Fernando Rosas, que o valor da hierarquia se extinguiu no seio das forças armadas, nem muito menos que isso teve como consequência política a redução dos «generais dissidentes minoritários» a figuras decorativas ou ornamentais. Se Spínola era um «general quase sem tropas» — o que, de certo modo, é verdade —, também se pode argumentar que o MFA era um «movimento sem generais». E tanto precisava de generais, quer por tradição castrense de respeito pelas hierarquias, quer para evitar lutas fratricidas ao nível dos oficiais intermédios do Exército que lideraram o golpe, que António de Spínola e Francisco da Costa Gomes iriam ocupar a chefia do Estado até à realização das eleições presidenciais de 1976. Para não dizer que muitos dos oficiais intermédios do MFA seriam graduados em patentes superiores, no mais puro respeito pelas tradições e pelos ritos próprios da instituição militar.

Por outro lado, se olharmos para o que sucedeu no imediato pós-25 de Abril (por exemplo, o tratamento dado aos governantes do regime deposto, a ideia de manutenção da DGS no ultramar, a inexistência de um projecto absolutamente consensual quanto ao futuro das colónias), se atentarmos na composição da Junta de Salvação Nacional (com nomes como Jaime Silvério Marques, Pinheiro de Azevedo ou Carlos Galvão de Melo), se virmos quem integrava o Conselho de Estado (Freitas do Amaral, por exemplo), se tivermos presente que Adelino da Palma Carlos não era propriamente um revolucionário radical, compreenderemos que a revolução não avançou com a linearidade que o ensaio de Fernando Rosas pode sugerir — o que se compreende, dado tratar-se de uma interpretação global do processo revolucionário, no âmbito da qual seria inviável explorar todos os meandros e nuances de uma realidade complexa em convulsão permanente.

Fernando Rosas afirma também que a democracia portuguesa se construiu no período revolucionário, e não contra o período revolucionário, ao invés do que algumas leituras revisionistas pretendem fazer crer. É um facto inegável: a marca genética da revolução permanece no regime político português, e concorda-se em absoluto com o autor quando afirma que o PREC não foi um «parêntesis dispensável» para a caracterização desse regime. Mas existe aqui também uma questão de perspectiva, a exigir uma análise mais subtil. É indiscutível que muito do que foi — e do que é — a nossa democracia se encontrava já inscrito no Programa do MFA e nos primeiros tempos da revolução, mas é também insofismável — ainda que Fernando Rosas possivelmente discorde desta afirmação — que a consolidação da democracia (e o seu encaminhamento no sentido de um regime democrático de tipo ocidental) se fez, em boa medida, após o 25 de Novembro de 1975 e com a destruição paulatina de muitos dos excessos revolucionários do PREC. A este respeito, o autor alude à «contra-revolução política e legislativa dos governos constitucionais». E prossegue o seu raciocínio: «as privatizações das empresas nacionalizadas, a devolução das terras ocupadas e a desocupação das casas tornar-se-iam, desde o I Governo constitucional aos nossos dias, o pano de fundo permanente do argumentário sobre a `normalização democrática', a `recuperação económica' ou a `integração europeia'» (p. 24). Em relação a esta última, diz que «o país irá escorregando para a Comunidade Europeia, onde se integrará, sem acerca disso se ter alguma vez realizado um debate digno desse nome ou sequer uma consulta referendária» (p. 22). O problema é que, como o autor reconhece, após as eleições para a Constituinte «o vento mudara» (p. 29) e que «a legitimidade revolucionária cede definitivamente o passo à legitimidade das urnas» (p. 31). Por outras palavras, tudo aquilo que Fernando Rosas apelida de «contra-revolução política e legislativa» foi o resultado de uma opção e de uma estratégia democraticamente legitimadas. E, a menos que o autor pretenda fazer renascer a legitimidade revolucionária, sobrepondo-a à legitimidade democrática, o seu discurso arrisca-se a resvalar num passadismo nostálgico tão romântico quanto utópico ou, pior ainda, numa mal contida frustração por as coisas terem tomado o rumo que tomaram. O rumo das eleições, dos votos, dos partidos. O rumo da democracia representativa, no fundo, no quadro do qual os partidos vencedores das eleições empreenderam a «contra-revolução» e nos fizeram «escorregar na Europa».

Na verdade, a questão fulcral é sempre a de saber de que lado estava o «povo», uma entidade tão abstracta quanto intangível. Ora, se existiu inquestionavelmente «povo» nas ocupações, nas nacionalizações, nas manifestações de rua, o único critério para aferir, de forma objectiva e democrática, de que lado o «povo» se encontra só é um: as eleições. E as eleições para a Constituinte, que tiveram uma afluência popular maciça, única e irrepetível na história contemporânea de Portugal, mostraram claramente, pelo menos, de que lado o povo não estava. Fernando Rosas chama-lhe o campo da «não revolução» (p. 30), amplo e heteróclito espectro político que, segundo o autor, ia dos militares moderados que subscreveram o Documento dos Nove à «extrema-direita terrorista», passando pela Igreja Católica e pelo Partido Socialista e pelo seu «socialismo em liberdade». Convenhamos que muita gente se encontrava sob estes «guarda-chuvas sob os quais se abrigam todas as forças da direita política e militar hostis ao processo revolucionário» (p. 30). Aí estavam, por exemplo, os 37,8% de votantes no PS ou os 26,3% dos eleitores do PPD registados no sufrágio para a Constituinte. Por outras palavras, a «não revolução» era o campo político maioritário de acordo com o único critério que, para um democrata, deve ser seguido: o do número de votos validamente expressos em eleições livres e competitivas.

Esta crítica ao texto de Fernando Rosas é feita no pressuposto de que o autor propõe uma interpretação do 25 de Abril que, pela sua qualidade, riqueza e interesse, merece o contraditório (ou, melhor dizendo, o comentário). O mesmo se não dirá, infelizmente, de outros textos publicados nesta obra, cujo principal mérito, num balanço global, reside na circunstância de haver deixado registadas para a posterioridade as intervenções num colóquio sobre a revolução de Abril que teve lugar na cidade do Porto a 30 de Setembro e 1 de Outubro do ano de 2004. Um ano em que o povo português, outrora animado por ocupações de terras e manifestações de rua, se entusiasmou mais com um campeonato europeu de futebol do que com o 30.º aniversário do 25 de Abril.

 

António de Araújo

 

 

 

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