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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.185 Lisboa  2007

 

João Pedro Marques, Portugal e a Escravatura dos Africanos, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2004, 160 páginas.

 

 

O livro de João Pedro Marques foi feito para portugueses em um duplo sentido. Sua estrutura é assemelhada a um trabalho de síntese — como, aliás, alerta o próprio autor — cujo fim é claramente o de atualizar o público lusitano, acadêmico ou não. Seu objeto é o Portugal incrustado em territórios recônditos de certa cultura historiográfica, acuado pela dupla acusação de haver reintroduzido o cativeiro no Ocidente e de não tê-lo combatido adequadamente quando, séculos depois, quase todo o mundo o exorcizava.

Talvez se possa considerar que Portugal e a escravatura dos africanos representa uma espécie de «resposta nacional» a estas imputações. Que seja. Entretanto, em termos mais amplos, os portugueses não estão sozinhos na contenda. A acompanhá-los está, por exemplo, o Brasil, onde o tráfico e a escravização ainda hoje operam como fantasmas em seu imaginário nacional. Ali, anualmente, produz-se um verdadeiro caudal de teses e dissertações nas quais, não obstante a eventual qualidade acadêmica, gastam-se rios de tinta em introduções transformadas em verdadeiras profissões de fé contra o cativeiro. Como se fosse necessário, como se a escravidão moderna não passasse de tecido morto. (Na verdade, estas anacrônicas tomadas de posição têm o seguinte subtexto: todos são racistas, menos eu.)

Em um plano mais profundo, o que incomoda a muitos autores de ambas as partes do Atlântico está em outro lugar — na escolha que, em algum momento de suas histórias, Portugal e Brasil fizeram pela eterna manutenção do status quo. Opção amalgamada pelo catolicismo contra-reformista, é certo, mas para a qual, de diferentes modos, o tráfico de escravos e a escravidão assumiram papel de suma importância.

Fronteira vitoriosa na luta contra o islamismo, desde o início a nação portuguesa se confundiu de tal modo com a igreja que, quando a Reforma cindiu a cristandade, a Península Ibérica naturalmente se transformou em bastião do catolicismo. Como se não bastasse, os ganhos derivados do comércio oriental e das riquezas americanas permitiram a Portugal levar ao extremo um tipo de sociedade fundado na afirmação de valores aristocráticos e na esterilização de grande parte da riqueza social. Em vez de capturar nesses traços elementos de um projeto arcaico tão legítimo quanto a opção pelo capitalismo, a historiografia anglo-saxã — mas também a francesa e a alemã — esmerou-se em reduzi-lo a mero «atraso». E um dos maiores signos dessa decadência radicaria no pioneirismo lusitano no tráfico de africanos e no seu afinco à escravidão quando, embalado pelo puritanismo abolicionista do Oitocentos, o Ocidente denunciava a ambos. Eis como a escravatura se imprimiu como nódoa na imagem que se tem dos portugueses.

Ironicamente, ao completarem-se duzentos anos da abolição do tráfico inglês (1807), os ganhos obtidos pela historiografia anglo-saxã permitem redefinir muito daquele ponto de vista que, nas palavras de João Pedro Marques, «pesadamente responsabiliza os lusitanos pela existência de instituições tão desumanas». Para tanto, o autor revela-se extremamente atualizado, demonstrando enorme intimidade com o que há de melhor acerca da escravidão ocidental, com destaque para o manejo de obras como as de David Brion Davis, Philip Curtin, David Eltis, Joseph Miller, John Thornton, Paul Lovejoy, Ralph Austen, dentre outros.

A verdade, sustenta Marques, é que até o século xviii a cultura ocidental encarava a escravidão como uma muitas vezes dolorosa forma de promover o progresso humano. Evitemos mal-entendidos. Ninguém em sã consciência questiona a crueldade implícita em todo tipo de escravidão — é absurdo pensar em bom ou mau cativeiro. Um exemplo: de acordo com o historiador norte-americano Joseph Miller, de cada 100 escravos apanhados em Angola, 36 morriam entre a captura e o traslado até a costa, 7 à espera do embarque nos negreiros, 6 pereciam durante a travessia oceânica e 23 feneciam nos primeiros anos de Brasil, ou seja, em quatro anos, 72% de mortalidade acumulada!

Afiançando a escravização do africano estava certa visão depreciativa do negro, muito comum à cristandade, e que não era de modo algum apanágio apenas dos letrados ibéricos. Assim, se 55% dos norte-americanos adultos de hoje interpretam literalmente a Bíblia, imagine-se quão corrente era, na época moderna, associar os negros aos descendentes de Cã — aqueles que, por terem sido amaldiçoados por Noé, deveriam servir às proles de Sem (os asiáticos) e de Jafé (os europeus). Outros coevos juravam de pés juntos que, por derivarem de Caim, os africanos personificavam a própria maldição do Senhor. Não surpreende que os negros encontrassem no cativeiro a saída natural para o vício que os tecia. O aparecimento do Systema Naturae (1735), de Lineu, não melhorou as coisas — inscreveu o homem no reino animal, é certo, mas reiterou a inferioridade do africano, indolente e astuto, frente ao europeu, delicado, perspicaz e inventivo.

Portugal não apenas não era a única sociedade europeia a encontrar na religião a justificativa para a escravidão moderna, como tampouco a inventou. Se o cativeiro declinava desde a derrocada de Roma, ganhou força no Mediterrâneo dos séculos xiv e xv, impulsionado por Gênova e Veneza, primeiro em suas plantações de cana-de-açúcar no Oriente Médio, depois em Chipre, Creta e na Sicília. Destaca-se em semelhante processo o peso da crise do século xiv, cujo principal signo — a enorme fratura demográfica — resultou em panoramas razoavelmente distintos dentro da própria Europa. No norte impulsionou o incremento do exército de jornaleiros rurais e urbanos e a regulação de salários, além da introdução do trabalho compulsório para os indigentes. Na Itália e Península Ibérica, ao invés, incrementou a procura por escravos provenientes cada vez mais do mar Negro, sem contar os africanos e um número cada vez menor de mouros.

Portugal tampouco inventou o tráfico de africanos, que já existia sobretudo para o mundo islâmico e, secundariamente, para o Mediterrâneo antes mesmo da descoberta da América — 6 milhões de africanos foram exportados até 1500, seja por meio do Sahara, ou do mar Vermelho, ou ainda pelo Índico (já no século viii existiam escravos africanos em locais tão distantes como Java ou Cantão). A não ser como resultado de absoluta ignorância ou de mero posicionamento politicamente correto — calcado, não raro, na perigosa idéia de que raças efetivamente existem —, não há como descartar a prioridade muçulmana no comércio de africanos antes mesmo de este representar papel importante para Portugal e, depois, para as Américas.

A demanda americana potencializou o tráfico, é óbvio, mas jamais poderia ser atendida na escala em que foi sem que a posse de escravos (e, como derivação, o tráfico) representasse um dos poucos meios legítimos de enriquecimento individual dentro da África tradicional. Ali, o escravo podia ser comercializado, arrendado, legado, doado, penhorado e confiscado, motivo pelo qual a duração e o volume das exportações de negros expressam o arraigo do continente ao cativeiro, onde o tráfico atendia à simultânea demanda interna e externa por braços e úteros. Em parte devido aos tênues limites que os separava de outras vítimas da dependência pessoal, ainda não se pode precisar a exata quantidade de cativos existentes nos antigos estados de Gana, Mali, Songai, Congo, Monomotapa, Ndongo e em outras regiões. Mas nada indica que ali a sua participação demográfica fosse inferior à detectada para os escravos da Grécia, de Roma ou do sul dos Estados Unidos.

Razão parece ter o norte-americano John Thornton, para quem foi a hipertrofia de instituições corporativas — como a família, o clã e o próprio Estado — o que transformou a posse de escravos no meio mais eficiente de legítimo enriquecimento individual do africano. Tratava-se de um contexto que fazia com que a riqueza e prestígio de um homem estavam mediados pelo número de dependentes e clientes que conseguisse possuir. Do que resulta terem sido as elites africanas elementos tão ativos quanto as européias e americanas no processo que tornava a escravidão a variável que amalgamava a Europa, a África e as Américas ao redor de um verdadeiro sistema atlântico — e não meras vítimas passivas da tragédia implícita à escravidão.

O livro de João Pedro Marques ensina que a responsabilidade maior de Portugal para com o cativeiro e o tráfico ocorreu no século xix, quando razões de Estado impediram-no de, por muito tempo, associar-se à onda abolicionista que varria o Ocidente. Aqui cabe um parêntesis. Pois se é certo que, no século xix, o Ocidente transformou o comércio negreiro em excrescência, o racismo — um dos seus pilares — teria de esperar o pós-1945 para ver-se alçado à condição de crime contra a humanidade. E o motivo é simples: o combate sem trégua ao tráfico de escravos não procedeu à integral separação entre raça e cultura, razão pela qual muitas vertentes abolicionistas amaldiçoavam a compra e venda de pessoas e, simultaneamente, insistiam na inferiorização do negro. Mais ainda: algo dessa paradoxal tensão oitocentista ainda viceja no imaginário do homem ocidental contemporâneo, sobretudo quando reduz o tráfico negreiro à condição de problema exclusivamente europeu ou americano. Semelhante movimento pode até apaziguá-lo ante a crescente demanda por correção política, mas infantiliza o negro e banaliza o drama humano — objetivo presente também no paternalismo que por séculos privou-o de dispor de si mesmo nas Américas.

Da junção entre semelhantes torções cobra viço a África mítica, alter ego da mãe preta cálida e inocente, ausente de hierarquias e indefesa frente à sanha atávica de mouros e cristãos à qual me referi anteriormente. Encobre-se assim o «trabalho sujo» a que se refere o historiador Jean Suret-Canale, representado pela captura e venda inicial de milhões de infelizes pelos africanos. Oculta-se igualmente a derivação: a renitência do cativeiro em vastas regiões de África, especialmente em países como Mauritânia, Mali, Sudão, Camarões e Nigéria, celeiros hoje de desgraçados de todas as idades — sabe-se que no Níger um único homem detém pelo menos 7000 escravos e no Chade pode-se alugar uma criança pelo equivalente a US$ 8 mensais.

Mesmo no caso da resistência ao fim da escravidão, Portugal não se encontrava sozinho no século xix. A acompanhá-lo estava o Brasil, postergando o trauma, extraviando-se da modernidade e travando a nação no plano da paixão arcaica. Nessa época, os milhões de africanos desembarcados nos portos brasileiros o foram por iniciativa quase exclusiva do capital mercantil residente na América portuguesa. É que, desde o século xviii, as comunidades traficantes de Rio de Janeiro, Salvador e Recife passaram a dominar o fundamental das etapas empresariais que garantiam o comércio negreiro, provendo-o de naus, de bens para o escambo, arregimentando tripulantes e garantindo o negócio por meio de suas próprias empresas seguradoras.

Em suma, de pequeno, o excelente livro de João Pedro Marques tem apenas o tamanho. São grandes as suas ambições, precisos os caminhos que as afiançam e cirúrgicas as suas conclusões. Resta torcer para que Portugal e a escravatura dos africanos contribua para que a relativa invisibilidade que se impôs ao negro em Portugal seja igualmente revertida.

 

 

Manolo Florentino

 

 

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