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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.185 Lisboa  2007

 

Dieter Nohlen, Os Sistemas Eleitorais: o contexto faz a dife-rença, Lisboa, Livros Horizonte, 2007.

 

Quando os fundadores do governo representativo estabeleceram os alicerces deste modelo, por certo não imaginaram — nem essa foi a sua preocupação central — a dinâmica do debate que se seguiria sobre os sistemas eleitorais. Mesmo Thomas Hare, a quem devemos o Treatise on the Election of Representatives, como produto mais acabado da machinery of representation, e Stuart Mill, sobretudo nas suas Considerations on Representative Government, seguem a linha de Locke, Montesquieu, Madison, Burke e Sieyès. O que é comum a estes autores é a preocupação em construir um modelo de governo onde o povo pudesse governar através de representantes; no fundo, um sistema particular de instituições políticas enquanto mecanismo estrutural de tomada de decisão nas sociedades complexas. Contudo, no quadro desta nova formulação sobre a teoria da representação política, surgiria o debate seminal entre princípios de representação (proporcional e maioritária), travado entre Stuart Mill e Walter Bagehot, que estabeleceria as bases para compreender a essência dos sistemas eleitorais, entendidos em sentido amplo, e que influenciaria a abordagem a este fenómeno por parte de alguns dos actuais investigadores. Um deles é Dieter Nolhen, que, desde muito cedo, orientou o seu trabalho, não sem alguma controvérsia, para a compreensão dos sistemas eleitorais a partir da teoria da representação política.

Seria fastidioso, mesmo em formato sintético, traçar aqui a evolução do debate sobre os sistemas eleitorais e sobre as suas muitas formulações concretas. No entanto, importa relevar o significativo desenvolvimento da aplicação de sistemas eleitorais concretos, muito por força da terceira vaga de democratização, bem como a dinâmica reformista ocorrida — e nem sempre concretizada — em alguns países industrializados sobre aspectos estruturais ou parciais dos seus sistemas. Estes factores, a que acrescem outros de natureza política, têm contribuído para acelerar o ritmo de investigação sobre o tema, ainda que persistam muitas divergências de cariz metodológico e conceptual que marcam a sua natureza complexa e garantem a continuidade do debate, hoje mais centrado nas suas consequências na vida política e na procura de ajustes técnicos destinados à eventual terapia de alguns males da democracia representativa moderna.

Em boa parte, a síntese deste debate encontra-se no mais recente livro de Dieter Nolhen, Sistemas Eleitorais: o contexto faz a diferença, obra que resume, numa linguagem acessível — claramente devedora do esforço de Conceição Pequito Teixeira, tradutora da obra do castelhano para português e organizadora do índice —, o essencial da discussão e que se resume ao que denomino de traçado tridimensional do estudo dos sistemas eleitorais. Este traçado é, sobretudo, uma sistematização de perspectivas observantes que orientam o observador na compreensão deste subsistema do sistema político. A primeira orientação é de natureza genérica, centrada na importância das instituições no processo de decisão política; a segunda é de natureza específica, dedicada aos efeitos dos sistemas eleitorais no sistema de partidos e noutras variáveis da vida política; a terceira é de cariz metodológico e orienta-se para a análise do tipo de relações causais entre uma variável supostamente independente e os seus efeitos conhecidos.

A obra vale pelo seu todo, ainda que alguns capítulos repitam matérias tratadas em secções precedentes, facto compreensível pela decisão do autor em seleccionar textos publicados em anos recentes, a maioria decorrente de conferências proferidas na América Latina, área onde é dos mais conceituados especialistas. Mas vale, sobretudo, por tratar temas essenciais de uma forma que se ajusta aos requisitos de aprendizagem de públicos pouco familiarizados quer com aparelhos conceptuais mais elaborados requeridos à compreensão destas matérias, quer com as ferramentas técnicas aplicadas à sua dimensão empírica. É, por isso, uma obra aconselhada não só aos alunos das diferentes academias que leccionam matérias desta natureza como a todos os interessados em conhecerem melhor uma das instituições mais relevantes na configuração da natureza da competição política pela via eleitoral.

Como bem assinala o autor, os textos podem ser lidos segundo as preferências temáticas e subtemáticas do leitor. Isto significa que os textos assumem uma autonomia, quer analítica, quer didáctica, o que só beneficia o leitor. Contudo, a obra requer uma leitura transversal que assinale os eixos centrais de reflexão sobre os sistemas eleitorais. Dessa leitura escolhi três temas que me parecem constituir três aspectos cardeais para a compreensão dos sistemas eleitorais. O primeiro respeita à necessidade de estudar os sistemas eleitorais no quadro da teoria da representação política; o segundo trata de uma controvérsia mais significativa entre os investigadores: a questão dos efeitos dos sistemas eleitorais; o terceiro incide sobre os limites e sobre o alcance das reformas eleitorais.

 

Princípios de representação política: o regresso aos clássicos

Uma boa parte do trabalho de Nolhen incide na procura de um enquadramento conceptual que permita classificar os sistemas eleitorais de modo a evitar confusões entre a essência dos objectivos da representação política e as muitas propostas classificativas de base normativa ou empírica, na linha, por exemplo, de Rae, Farrel, Reynolds e Sartori, que seguem critérios como o da fórmula eleitoral, o da combinação de vários elementos técnicos, o da escala de proporcionalidade ou da dinâmica dos sistemas eleitorais.

Considerando que a representação política marca a essência do desenho institucional das democracias representativas e que as sociedades complexas se configuram a partir do princípio da representação política electiva, as interrogações de Nolhen assumem particular relevância ao elegerem como questão cardeal o mesmo problema que levou à reflexão dos clássicos: o dos princípios da representação.

O regresso à centralidade estruturante destes princípios é seguramente mais ajustado porque faz prevalecer o critério dos fins dos sistemas eleitorais sobre critérios de natureza técnica ou até política. O mesmo é dizer que, em primeiro lugar, o sistema eleitoral responde a uma concepção sobre a arquitectura do governo representativo aferida para o todo nacional (diferente da concepção sobre a natureza do mandato representativo): representação funcional versus representação social. A primeira corresponde ao objectivo da formação de governos maioritários, enquanto a segunda passa pela garantia, na medida do possível, da representação das forças sociais e dos grupos políticos existentes numa determinada comunidade política.

A este propósito, vale a pena salientar que Nolhen considera que os princípios de representação são antitéticos, isto é, não se combinam. Esta posição é particularmente interessante a propósito do debate sobre os sistemas eleitorais combinados: a representação proporcional e a representação maioritária, enquanto princípios de representação política, não

podem articular-se. O que se pode é combinar elementos de um e outro princípio, resultando daí os chamados sistemas combinados. Em suma, para a classificação e avaliação dos sistemas eleitorais, o critério básico a ter em conta é o dos princípios de representação, e não o das fórmulas de decisão (forma de conversão de votos em mandatos).

 

Os efeitos dos sistemas eleitorais ou a trivialidade das «leis»

O tema dos efeitos dos sistemas eleitorais é, seguramente, o que tem gerado maior controvérsia entre os investigadores, nomeadamente após a formulação de Duverger, em 1951, de «leis sociológicas» a propósito dos efeitos dos sistemas eleitorais nos sistemas de partidos.

O trabalho de Nolhen é particularmente elucidativo da necessidade de estabelecermos uma rede teórica de fundo para compreender o problema dos efeitos. É por isso que o autor entra em ruptura com a tradição analítica que estabelece relações causais entre os sistemas eleitorais e o funcionamento de alguns aspectos da vida política, em particular o sistema de partidos, na linha de Duverger, Rae e Sartori, a quem atribui uma visão reducionista (nomológica) de um fenómeno complexo.

Nolhen contrapõe uma abordagem multicausal ou circular (abordagem contextual), filiada na tradição sistémica de análise dos fenómenos políticos, a partir de uma concepção ampla dos sistemas eleitorais. Em face da natureza e dos fins dos sistemas eleitorais, esta abordagem parece-nos mais adequada ao estudo deste fenómeno, dada a necessidade de relativizar os efeitos em face da ausência de comprovação empírica de muitos deles quando seguimos a tradição nomológica.

Regressando à tese de Nolhen, importa salientar que não é possível estabelecer uma relação causal entre sistema eleitoral e sistema de partidos. O sistema eleitoral é apenas um dos factores que actuam sobre a estrutura do sistema de partidos. Por exemplo, a homogeneidade ou heterogeneidade social, étnica e religiosa de uma sociedade fazem com que o mesmo sistema eleitoral tenha efeitos distintos.

Na sustentação de Nolhen é particularmente evidente a preocupação em encontrar um modelo explicativo abrangente. A resposta é dada pela centralidade que ocupam os actores políticos e o contexto que marca o processo de decisão desses actores. Neste âmbito, Nolhen regressa à génese da implementação dos sistemas eleitorais, destacando que, em primeiro lugar, a escolha de um sistema eleitoral é feita pelos principais actores políticos que acreditam retirar vantagens nas relações de poder e que, em segundo lugar, essa decisão ocorre num determinado ambiente social e político que se transforma.

Aos argumentos monocausais, Nolhen, na linha de Rokkan, sugere que a compreensão dos efeitos se deve ancorar no aspecto genético dos sistemas eleitorais, ou seja, nas circunstâncias históricas concretas que lhe deram origem e na transformação dessas circunstâncias enquanto expressão das relações de poder. Aqui o autor rompe com a lógica de relação entre variáveis dependentes e variáveis independentes. É que os sistemas eleitorais e os sistemas de partidos são um reflexo das estruturas sociais e políticas e, nesta perspectiva, ambos devem ser considerados variáveis dependentes. Ou, se quisermos, os sistemas eleitorais podem ser entendidos, quer como variáveis dependentes, quer como variáveis independentes. Daí que sustente que são limitadas as possibilidades de prever as consequências dos sistemas eleitorais e que as previsões são apenas possíveis quando se consideram os contextos sociais e políticos que conformam o ambiente em que opera um determinado sistema eleitoral.

Não admira que Nolhen se filie na abordagem empírica de orientação histórica, por oposição à abordagem normativa (excessivamente valorativa) e à abordagem empírica de orientação estatística (centrada excessivamente no que é mensurável). Com efeito, a primeira abordagem é mais aconselhada ao estudo dos sistemas eleitorais concretos em contexto sócio-político. Por isso, o autor também a usa no debate sobre as instituições políticas: as instituições contam, mas a sua importância real e a sua idoneidade dependem da contingência política (relações sistémicas entre estruturas sociais e políticas, memória histórica, cultura política, desafios políticos, entre outros elementos do sistema político).

A opção de Nolhen tem a particularidade de relativizar a importância do sistema eleitoral ou, dito de outra forma, de o considerar importante no contexto de outras variáveis políticas e sociais. O problema de fundo mantém-se: é crucial distinguir entre efeitos específicos dos sistemas eleitorais (efeitos mecânicos) e efeitos que resultam da sua confrontação com a realidade política de uma determinada comunidade. É precisamente aqui que o contexto faz a diferença. Isto implica uma mudança do paradigma analítico que exclui, por exemplo, enunciados baseados em sociedades homogéneas e em sistemas de partidos bem estruturados.

 

A caixa negra dos mixed-sytems ou as limitações das reformas eleitorais

Uma boa parte do trabalho de Nolhen está associada ao desenho e avaliação dos sistemas eleitorais, bem como à sua reforma. Seleccionei este tema pela sua relação com o debate (ou ausência dele) sobre a reforma do sistema eleitoral português para a Assembleia da República, que tem somado confusões metodológicas bastantes para justificar uma leitura atenta da presente obra de Nolhen, aconselhada particularmente a decisores políticos e a deputados. Sendo muitas as advertências do autor a este propósito, por limitações inerentes a uma recensão, seleccionámos três.

Em primeiro lugar, o autor adverte para a necessidade de desmistificar a ideia de crise de representação, muitas vezes confundida com crise de representação sociológica, com crise de representação política ou mesmo com crise de participação política. Como é bem sabido, no caso português, a justificação da reforma encontra na suposta crise de representação o argumento de fundo para a introdução de círculos uninominais. Não é de mais salientar que na nossa história de justificação de reformas eleitorais abundam os argumentos desta natureza, que chegam a ser contraditórios. Por exemplo, enquanto as alterações do sistema para a Assembleia da República se justificam pela necessidade de responder a uma crise de representação, as alterações ao sistema eleitoral autárquico surgem como resposta a uma crise de governabilidade.

Em segundo lugar, Nolhen salienta que os sistemas eleitorais devem ser desenhados basicamente por critérios funcionais e de poder. Embora aos legisladores e sobretudo aos governantes convenham desenhos institucionais politicamente mais favoráveis, não é de mais lembrar a impossibilidade de os sistemas eleitorais cumprirem diferentes exigências ao mesmo tempo. Quer isto dizer que uma modificação que vise aumentar a participação política ou a proximidade entre eleitos e eleitores tem, em regra, custos noutras funções dos sistemas. A este propósito, é particularmente elucidativa a referência de Nolhen ao trade off entre as funções básicas dos sistemas eleitorais: ao favorecer algumas funções minimizam-se certamente outras.

A prova pode encontrar-se na recente reforma eleitoral italiana, que não conseguiu concretizar nenhum dos objectivos traçados pelos governantes.

Por último, Nolhen adverte para o facto de não existirem sistemas eleitorais ideais, assinalando que a exportação de um sistema eleitoral, ou de alguns dos seus elementos, de um país para outro tem as suas limitações. Quer isto dizer que o bom funcionamento de um sistema num determinado país não determina igual comportamento noutro país. Por exemplo, nada garante que o sistema alemão, em parte inspirador da nossa reforma, tenha os mesmos efeitos em Portugal, o que remete para o facto de a depositada confiança nos círculos uninominais para curar os males da suposta crise de representação portuguesa não passar de uma simples crença. Mais uma vez, o contexto pode fazer toda a diferença.

 

Manuel Meirinho Martins

 

 

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