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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.185 Lisboa  2007

 

Vera Borges, O Mundo do Teatro em Portugal — Profissão de actor, organizações e mercado de trabalho, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2007.

 

Se em Todos ao Palco! — Estudos Sociológicos sobre o Teatro em

Portugal1nos era oferecida uma perspectiva que, embora atenta ao quadro genérico em que o teatro vive e actua na sociedade portuguesa, deliberadamente circunscrevia a sua referência empírica a quatro companhias de teatro,já em O Mundo do Teatro em Portugal a atenção reclama propósitos mais compreensivos e define a expectativa ambiciosa em título e subtítulo anunciada. Nos espaços rasgados pelo novo desafio revivem a minúcia e circunstância «microssociológicas» do primeiro trabalho, sempre funcionalmente ancoradas na formulação da hipótese, no traçado dos caminhos da pesquisa ou na documentação da teoria. E, por o estudo em questão — tal como o outro, de resto — não eleger o especialista como leitor ideal (a leitura é vantajosa para leigos e peritos), não existem quaisquer barreiras erguidas por imperfeito domínio dos códigos de referência e instrumentos conceptuais do discurso específico da análise sociológica.

Na introdução impressionará a ênfase quase obsidiante dada à tradição científica recente, o que não será tanto uma reivindicação de autoridade como aquela acusação da dívida, por certo aliada à intenção persuasiva do argumento, que é marca distintiva da investigação mais escrupulosa. O testemunho de uma filiação teórica em estudos de importância fundadora não é inoportuno quando a teoria fatalmente se cruza com a massa documental das fontes, múltipla e indisciplinada, e o percurso da investigação reclama a vigilância permanente que subordine o magma do material empírico e documental a um rumo sólido dirigido por uma metodologia consciente do que persegue.

A tipologia dos grupos de teatro em função do modelo que presidiu à sua fundação, à matriz da sua estrutura e organização interna, à sua relação com o espaço físico e ao horizonte de possibilidades do seu funcionamento e capacidade de intervenção, ainda a geografia variável do estatuto do actor ou o seu lugar no grupo ou fora dele no contexto de um mercado de trabalho volúvel e flexível: eis, numa simples e lacunar enunciação, a vasta e, a um primeiro olhar, nebulosa constelação de preocupações que dita o jogo incessante do descritivo e do explicativo, da indagação teórica e da hipótese empírica, do juízo de alcance médio ou da conclusão documentalmente apoiada. E a autora não se detém perante as confessadas dificuldades, de natureza vária, que obstinadamente se erguem ao seu esforço de selecção de informação, filtragem e confronto de dados e sua hierarquização e classificação ou que até ditam pronta adequação metodológica quando, por exemplo, a pesquisa resvala para território minado, «com antagonismos e rivalidades relativamente fortes, pelo que foi necessário não escamotear a concorrência entre os grupos de teatro, no caso de se situarem na mesma localidade ou serem concorrentes no mesmo segmento de mercado. Muitas vezes tive de reconduzir as entrevistas ao seu propósito biográfico; de outra forma, tornar-se-iam apenas testemunhos das reivindicações dos nossos entrevistados contra o Ministério da Cultura» (p. 43).

Uma insistência na identificação de procedimentos metodológicos testemunha a honestidade intelectual de uma empresa que abre caminho a outras indagações. E a dificuldade assinalada na p. 51 (a forçosa exclusão dos grupos de teatro amador, e num quadro de difícil discriminação de fronteiras entre profissional, semiprofissional e amador), ou a que a autora julga dever destacar, na página seguinte (com remissão para o capítulo relativo à programação dos grupos de teatro, alegadamente merecedor de um investimento na análise estatística mais elaborada, facto apenas detectado na fase da escrita do estudo), bem revelam essa atitude de escrúpulo e rigor. Por seu lado, a identificação das fontes abre generosamente caminho a outros percursos de investigação.

É arrojado o painel de preocupações acolhido no estudo de Vera Borges, constituindo um tratamento integrado do que à partida se afiguraria fatalmente disperso. Aqui reside uma das suas principais virtudes: o registo da localização e a definição dos contextos em que essa distribuição no território se insere (capítulo 1), a consideração dos grupos de teatro enquanto empresas artísticas, neles se distinguindo as modalidades de articulação dos elementos no seio do grupo ou a pluralização de aptidões que neste progressivamente se manifestam (capítulo 2), ou a identificação de um estatuto e de um rosto artístico face a vectores tão decisivos como o modo de utilização do espaço (titularidade de uma sala de espectáculos ou ausência dela), ou ainda as características específicas do modelo de intervenção (capítulo 3), ou a atenção, pragmática e incisiva, dada a aspectos aparentemente tão prosaicos como o regime de financiamento das companhias e a programação e produção dos espectáculos (capítulo 4), o ensaio de uma tipologia dos grupos — grupos-família, grupos-microempresa teatral, grupos-projecto (capítulo 5) — , o exame da génese do actor — como se faz um actor, como se chega à profissão —, com a identificação de recentes factores de profissionalização ou a descrição do lugar precário em regra associado ao ofício de comediante (capítulo 6), ou ainda a análise de casos paradigmáticos da complexa tessitura de relações desenhada pelas figuras do encenador e do actor no quadro da companhia de teatro (capítulo 7), interpelam sempre a exacta espessura probatória da fonte aduzida ou a capacidade explicativa do facto convocado. As estâncias desta jornada, com alguma frequência acompanhadas de uma síntese retrospectiva no final de capítulo (e às vezes prospectiva, como sucede no início do capítulo 3), ajudam o leitor a situar-se na vasta paisagem do discurso crítico e obedecem, na verdade, a uma segura concepção expositiva. Por vezes, até o rigor da linguagem científica vem generosamente aliar-se à linguagem dos afectos, emergindo esta discretamente para deixar falar a história privada do teatro e da representação, ocorrência particularmente inscrita nos capítulos 6 e 7, lugar de cruzamento da hipótese empírica e da notação particular: das entrevistas conduzidas pela autora se registam as escolhas de uma vida e aqueles momentos de iluminação que tudo decidem (releiam-se, a este propósito, as pp. 227 a 229, com alguma pertinência a sugerirem confronto com o timbre mais distanciado que o mesmo problema inevitavelmente suscitará em oportuna clarificação de «caderno de encargos», v. g.,p. 127).

O livro de Vera Borges dá resposta a temas e problemas que julgamos dominar, mas não dominamos, e qualquer paráfrase não lhe presta a devida justiça. As clivagens entre gerações de actores, os mais antigos mais inclinados à segurança e à fidelidade à companhia de que sempre fizeram parte, os mais novos mais envolvidos nas contingências e na mobilidade exigidas por ofício precário e arriscado mas aberto a uma aprendizagem e inspiração sempre renovadas, o redimensionamento dos grupos de teatro e a geografia variável dos seus profissionais e a diversa natureza dos vínculos que os ligam à companhia, o impacto que a televisão exerce sobre a profissão de actor, a progressiva cumplicidade estabelecida entre o teatro e outras expressões da cultura no quadro da reconfiguração das companhias — estes e outros problemas merecem o tratamento coerente e sistemático que é estímulo do especialista e compensadora oportunidade para o distraído senso comum de um público mais alargado. Interesses despertados pelo estudo em comentário registam-se em jornal diário de referência, quase coincidindo com o momento em que estas notas são redigidas2. E o mais natural é que as réplicas se sucedam.

O Mundo do Teatro em Portugal — Profissão de actor, organizações e mercado de trabalho é um estudo sério, útil e inovador, e isto é o melhor que de um livro se pode dizer.

 

 

Nuno Pinto Ribeiro

 

Notas

1 Vera Borges, Todos ao Palco! Estudos Sociológicos sobre o Teatro em Portugal, Oeiras, Celta editora, 2001.

2 «No teatro português faltam papéis para as mulheres mais velhas»,artigo de Maria José Oliveira, Público, edição Porto, caderno P2, segunda-feira, 9 de Julho, p. 12.

 

 

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