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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.187 Lisboa abr. 2008

 

Goffredo Adinolfi, Ai confini del fascismo. Propaganda e consenso nel Portogallo salazarista (1932-1944) (prefácio de António Costa Pinto), Milão, Ed. Franco Angeli, 2007, 245 páginas.

 

Os estudos sobre os fascismos têm elegido como objecto de investigação a propaganda enquanto instrumento para a conquista do poder e a consolidação dos respectivos regimes. Goffredo Adinolfi concentra a sua atenção sobre este tema específico, avaliando a sua dimensão no Portugal de Salazar durante a primeira década de vida do Estado Novo.

O título da obra, resultado da tese de doutoramento defendida na Faculdade de Ciências Políticas da Universidade dos Estudos de Milão, merece desde já a nossa atenção. Enquanto o subtítulo explicita o objecto do estudo, Propaganda e consenso nel Portogallo salazarista (1932-1944), é todavia o título, Ai confini del fascismo, que antecipa a perspectiva importante que o autor vai desvelando no decorrer da leitura da obra, ou seja, que o Estado Novo português se posiciona nas fronteiras do fenómeno fascista, num território político onde a assumpção de algumas características da revolução mussoliniana, sejam elas coreográficas ou institucionais, não fazem do salazarismo um mero decalque do modelo italiano. Reinterpretando a ditadura salazarista à luz da política de construção do consenso, Adinolfi investiga as técnicas de propaganda e de conquista do consenso promovidas pelas elites políticas do Estado Novo sob a direcção vigilante de Oliveira Salazar. O autor orienta deste modo a sua investigação, não pela procura do cariz fascista da propaganda salazarista e das estruturas criadas para essa finalidade, mas pela revelação do modus sentiendi e operandi das direitas autoritárias lusitanas na obra de promoção do seu projecto para Portugal. Assim sendo, a comparação com os regimes italiano e alemão não desvirtuam as peculiaridades do regime português.

A tese de fundo da obra é que Salazar nunca teve intenção nem interesse em promover a mobilização das massas à semelhança do que estava acontecendo nos mesmos anos em Berlim ou, ao longo dos dez anos anteriores, em Roma. Nesta linha interpretativa desenvolve-se a narração da política propagandística do Estado Novo e do seu enquadramento nos delicados equilíbrios do regime. O autor evita a reconstrução meramente técnico-institucional; pelo contrário, cruza-a com a narração dos acontecimentos históricos, desde o colapso da I República até aos conturbados anos da segunda guerra mundial, e do percurso político de Salazar, desde a sua estreia como ministro das Finanças até à primeira década na Presidência do Conselho. O fil rouge da narração histórica é a estratégia seguida pelo ditador português para consolidar o regime e fazer do Estado Novo, aos olhos dos portugueses, uma solução destinada a durar no tempo, ultrapassando a transitoriedade do golpe militar de 28 de Maio de 1926.

Tal como os outros ditadores europeus, Salazar teve de lidar com os modernos meios de comunicação de massas e criar organismos estatais de propaganda e instituições de tipo corporativo. Apoiado por grande parte da imprensa desde os tempos de ministro das Finanças, foi-se tornando o «salvador da pátria» e daí procurou transformar o consenso espontâneo inicial num consenso construído e firmemente controlado por si. Como bem demonstra Adinolfi, o seu interesse prioritário foi sempre o de manter a estabilidade interna do regime, evitando concentrações de poder no interior do Estado que pudessem fugir ao seu controlo directo. Fiel ao princípio do divide et imperat, Salazar procurou garantir a estabilidade da sua própria autoridade face a possíveis contrapoderes que pudessem surgir nos primeiros e delicados anos da institucionalização do Estado Novo. Como exemplo emblemático, o autor sublinha o papel que o presidente do Conselho atribuiu ao partido único. Enquanto nos regimes alemão e italiano o partido é protagonista da tekne moderna, como instrumento de conquista do poder ou como templo civil da ortodoxia revolucionária que se torna Estado, em Portugal, pelo contrário, a União Nacional não passa de um mero repositório de notáveis do regime, chamados a reunirem-se formalmente à sua volta e que Salazar controlou de maneira clientelar, porque as elites políticas, sobretudo as do Portugal periférico, caracterizaram-se por antigas e perigosas fidelidades de natureza caciquista. O ditador português nunca fez do partido nem um motor da revolução nem um baluarte da ideologia salazarista.

Relativamente à mobilização das massas, Adinolfi explica como Salazar se dedicou à obra de reconstrução nacional sem procurar o contacto directo com o povo. Aliás, sempre tentou evitar aquela osmose entre chefe e massas, característica principal dos regimes fascista e nazi. O consulado salazarista caracterizou-se por uma autoridade sobre o povo, para o povo, mas nunca com o povo. Na opinião de Adinolfi, Salazar estava convicto de que qualquer mobilização traria consigo os perigos de politização e consciencialização das massas, ou seja, uma possível ameaça à estabilidade do regime. Esta hipótese enquadra-se perfeitamente na cultura política de Salazar, no seu nacionalismo elitista e oitocentista, no seu conservadorismo, mais do que no seu revolucionarismo.

A este respeito, o autor poderia ter vincado mais o carácter instrumental (para fins de consenso interno) do «Salazar revolucionário», que almeja a criação do homem novo e o cumprimento do processo revolucionário através da modificação das mentalidades. O autor, de facto, apresenta o corporativismo e a reforma da educação nacional como sinais importantes da construção propagandística de um improvável «Salazar revolucionário», não demarcando, tanto como poderia tê-lo feito, as características contra-revolucionárias destas mesmas reformas. A acção do governo, que Adinolfi descreve — e bem — como dirigida à eliminação do conflito de classes, parece-nos inspirada mais pelo reformismo da doutrina social da Igreja do que pelo modelo económico fascista por excelência — modelo que, aliás, permanecerá inacabado e largamente inaplicado até à queda do regime. No campo educativo, por seu lado, a obra de depuração dos aspectos ideológicos herdados do regime anterior sugere-nos que estamos mais perante um processo contra-revolucionário do que revolucionário — ou seja, mais uma tentativa de recuperar as glórias do passado do que de criar um homem novo.

De qualquer forma, a análise das relações de Salazar com as instituições do Estado e com as massas permite ao autor delinear a relação do ditador com a propaganda e a conquista do consenso. Goffredo Adinolfi reconstrói o iter de formação do Secretariado da Propaganda Nacional (SPN) e sublinha como Salazar procurou evitar, também neste caso, a formação de um contrapoder. Para tal, o presidente do Conselho manteve sempre o controlo directo sobre o SPN, garantindo-lhe a independência relativamente a outros centros de poder, como a União Nacional, mas limitando-lhe o campo de acção, não lhe atribuindo os poderes da censura e nunca o promovendo à categoria de ministério.

Demonstrada a substancial limitação de poderes do SPN do ponto de vista institucional, Adinolfi explica também o falhanço da obra propagandística e de doutrinação das massas encetada pelo SPN. A este respeito são analisados os instrumentos de mediação entre o regime e as massas — a imprensa, a rádio, o cinema, o teatro. Com base nos dados do Instituto Nacional de Estatística e nos relatórios dos governadores civis, Adinolfi desvenda o panorama desolador de um regime que se demonstra incapaz de combater a limitada difusão destes instrumentos de propaganda e o seu difícil acesso por parte do público.

Convicto de que em política «tudo o que parece é», Salazar preocupa--se principalmente com a capacidade da propaganda de convencer o povo do bom caminho trilhado pelo Estado Novo e do seu perfil de estadista competente. O tom da mensagem propagandística, longe do discurso inflamado do fascismo e do nacional-socialismo, parece convidar a nação a uma confiante «apolitia» e ao regresso ordeiro ao portuguesíssimo «viver habitualmente»

Adinolfi faz notar, com razão, que uma das razões de fundo desta discrepância face aos outros autoritarismos reside na diferença substancial entre o expansionismo italo-alemão e a vontade de conservar um imenso império colonial em anos conturbados no panorama internacional. Por outro lado, a inexistência de uma obsessão totalitária em relação à conquista do consenso pode ser atribuída ao papel que Salazar destinou a outros actores tradicionais — como a Igreja — na difusão dos valores do nacionalismo português: Deus, pátria e família. De facto, embora o autor reconheça a independência de Salazar face à Igreja, realça, por outro lado, o serviço valioso que esta prestou ao regime no que diz respeito à difusão dos valores por ele apregoados, como, por exemplo, a idealização do Portugal rural, cuja pobreza e atraso são sinais de dignidade e pureza.

Emerge assim a contradição entre um discurso oficial de apelo à reconstrução nacional e uma prática de governação em que os cidadãos devem abster-se da prática política. Para sustentar esta tese, Adinolfi descreve a formação das duas estruturas de militância estado-novista: a Mocidade Portuguesa e a Legião Portuguesa. A primeira aparece como um instrumento do ditador para retirar a exclusividade da educação da juventude a um corpo docente substancialmente anti-salazarista; a segunda teria sido aceite pelo ditador para enquadrar e controlar as pulsões fascistas de alguns sectores sociais. De novo é o pragmatismo salazarista a falar mais alto.

O autor, todavia, sublinha como a propaganda no Estado Novo não deve ser considerada um instrumento inerte nas mãos do ditador. Salazar, pelo contrário, reconhece as vantagens que dela podem provir para a promoção da sua obra. É sintomático deste interesse a atribuição da direcção do recém--nascido SPN a António Ferro, intelectual adepto das correntes mais vanguardistas na cultura e nas artes, sincero admirador da revolução fascista e da obra de Mussolini.

Adinolfi analisa a evolução do SPN paralelamente ao percurso político de António Ferro. Assim, o livro adquire uma maior riqueza analítica, especialmente em relação aos obstáculos que o exercício da propaganda encontra nas diatribes internas do regime. Ferro emerge como o ponta-de-lança da corrente genuinamente revolucionária do Estado Novo, composta por intelectuais que almejavam a implantação da «revolução da ordem». Salazar atribui a estes intelectuais tarefas de relevo no campo da promoção cultural. Contudo, a obra do SPN nunca conseguirá influenciar significativamente a vida cultural portuguesa. Caso emblemático é a relação com a imprensa da província. Se, por um lado, o SPN combaterá o difuso anti-salazarismo através do financiamento de periódicos afectos ao regime, por outro lado, a imprensa nacional irá excluir-se das orientações políticas do Secretariado, para satisfação das redes clientelares da União Nacional, ciosas da autonomia de António Ferro. Acresce ainda que a acção repressiva da censura nunca se articulou com a estratégia do SPN. O divide et imperat de Salazar torna-se, no campo da propaganda, deletério para a obra cultural destes intelectuais tentados pelos regimes fascistas. Adinolfi insiste de forma convincente no falhanço desta revolução cultural: descreve a essência da «política de espírito» delineada por António Ferro; a sua acção na promoção da imagem do chefe carismático da nação através das famosas entrevistas ou da Exposição do Mundo Português.

As conclusões do autor vão no sentido de continuar a questionar a inclusão do regime salazarista entre os regimes fascistas, o que se compreende, já que subsiste o debate sobre a identificação dos autoritarismos com o fascismo. Deste modo, este estudo é um contributo útil para desvendar o que o salazarismo realmente foi, mais do que parece ter sido.

 

Riccardo Marchi

Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa

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