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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.187 Lisboa abr. 2008

 

Filipa Subtil, Compreender os Media. As Extensões de Marshall McLuhan, Coimbra, MinervaCoimbra, 2006, 180 páginas.

 

Quando, na ausência de GPS a bordo, consultamos o Google Maps antes de nos dirigirmos a uma região que não conhecemos bem (ou não conhecemos de todo), definindo o trajecto a seguir; quando viajamos de blog em blog, deixando comentários nas respectivas caixas de mensagens, ou editamos nós próprios um post; quando fazemos uma transferência bancária, sentados diante do computador...

Bem, tudo isso depende de reajustamentos funcionais que o novo ambiente tecnológico marcado pela existência da Internet e da conversão digital dos meios de informação e comunicação trouxe.

Há cerca de meio século, um autor canadiano da escola de Toronto publicava um dos seus primeiros livros acerca das tecnologias e dos media: The Mechanical Bride. Folklore of Industrial Man. Nas obras seguintes, provocatório e intuitivo, haveria de utilizar uma série de ideias e conceitos que hoje inundam os discursos mediáticos, sem já referirem o seu autor, as suas teorias e a sua continuada actualidade.

Contornando a facilidade das modas intelectuais, os trabalhos a que Filipa Subtil se entregou nos últimos anos1 trazem a marca de uma reflexão aprofundada relativamente à obra desse pensador canadiano que inundou o léxico dos anos 60 e 70 para, gradualmente, cair num quase completo esquecimento.

Com sorte semelhante à de outros autores de referência, alguns dos termos vulgarizados a pretexto das suas obras correm mundo, desligados dos conceitos em que estiveram previamente ancorados, no quadro das suas reflexões e propostas.

«Aldeia global», meios «frios» ou «quentes», as tecnologias como «extensões» dos órgãos e dos sentidos do corpo humano; e, porventura, o mais desafiante e controverso de todos, a asserção de que «o meio é a mensagem», ou como, fruto do acaso das gralhas tipográficas, o autor um dia deixou deliberada e humoradamente passar uma delas, convertendo «o meio é a mensagem» em «o meio é a massagem».

Neste exercício de investigação e reflexão, Filipa Subtil reconstitui o núcleo principal dos conceitos cunhados por Marshall McLuhan e empreende uma viagem com três objectivos complementares:

1. Apresenta a génese das principais ideias e conceitos que o autor de Understanding Media2 (1964) utiliza nos trabalhos publicados, revisitando para isso épocas e escolas de pensamento mais ou menos remotas, de Aristóteles a Benjamim, de Lee Worf a Eduard Sapir, recobrindo uma extensa lista de produções conceptuais que inspiraram e influenciaram a escola de Toronto;

2. Passa em revisão as diferentes declinações das teses mcluhanianas na literatura especializada em que lhe foram consagradas abordagens críticas substanciais, fornecendo, a partir de aí, um roteiro da recepção às propostas que o autor da Galáxia de Gutenberg3 avançou;

3. Sistematiza o legado de McLuhan, fazendo-o assentar no percurso do pensamento acerca das tecnologias, da comunicação oral até às problemáticas do transumanismo, discutindo as tendências e consequências implicadas.

A obra de McLuhan surge aqui associada a um olhar específico sobre a história, enfatizando o papel estruturante das vias e tecnologias da informação, comunicação e transporte.

Uma tal concepção da história travejada pela sucessão, acumulação e substituição das tecnologias, em que os homens, em sociedade, foram transformando as suas condições de vida em praticamente todos os planos da existência: social, cultural, político e religioso; no plano psicológico (sensorial e perceptivo); no plano filosófico (epistemológico e ontológico).

A opção da autora na escolha do subtítulo — As extensões de Marshall McLuhan — remete para a ideia de que a influência deste autor se «estende», deixando inscrições indeléveis noutras obras e quadros teóricos. Ao mesmo tempo revela bastante dessa disposição metodológica de inscrever o património de McLuhan numa sucessão de ideários que começam por atribuir às soluções técnicas a função supletiva de prolongamentos do corpo humano (a continuação do corpo para lá dele próprio) e se projectam, «finalmente», para fora do corpo, tomando um ponto de observação imaginário, «exterior», pós-humano, anunciando as epifanias da clonagem, da transgenia e de uma nova condição que torna as actuais características gerais do homem sapiens-sapiens ultrapassadas e obsoletas.

Com um sentido de sistematização extraordinário, Filipa Subtil passa em revista os principais conceitos que constituem o núcleo do património teórico de McLuhan, detendo-se, intermitentemente, para uma anotação pessoal, ou confrontando autores que submeteram essas contribuições a um reexame cerrado, apontando para alguns dos aspectos mais polémicos da teorização. Está neste plano, por exemplo, a oposição «meios quentes» e «meios frios», que outros autores recusaram na versão primitiva, sem embargo de a retomarem, alargando o âmbito da tipificação e reformulando as suas aplicações.

Porém, a proeminência heurística do aforismo «o meio é a mensagem» agiganta-se no interior do texto da autora, constituindo-se na pedra-de-toque para a compreensão do pensador canadiano.

Essa formulação — «o meio é a mensagem» — decorre, simultaneamente, de uma intuição feliz e do estudo atento do que até então fora publicado, cruzando objectos e temáticas, tendencialmente abordadas em separado: media e tecnologias; história, psicologia, sociedade...

Marshall McLuhan poderá não ter atribuído, de início, a importância e a densidade poética que o aforismo veio a revelar. As polémicas que desencadeou e as resistências que se opuseram à validação da equação «meio ó mensagem» impeliram-no a retrabalhá-la, desenvolvê-la e explicitá-la numerosas vezes, testando ao mesmo tempo o potencial dessa hipótese central.

Filipa Subtil conduz-nos através de um emaranhado de contradições em que diferentes autores se apropriam da máxima mcluhaniana, lhe redefinem os contornos e o alcance, reforçando o enfoque da análise no aparato tecnológico, em detrimento dos conteúdos, ou então, procurando novos equilíbrios, distribuindo a atenção por ambos os termos, confirmando, em numerosos casos, que a emergência de novas tecnologias influencia a organização social, concorrem para a criação de ambientes sensivelmente diferentes dos anteriores, afectando não apenas os campos de experiência, mas, inclusivamente, os da própria percepção. Assim, curiosamente, os efeitos cognitivos que Saperas4 (entre outros) consignou à «comunicação de massas», mais preocupado com a influência ideológica, a repetição temática, a selecção e apresentação das notícias, passavam a ser atribuídos a outro factor que, associado e articulado com «todos» os conteúdos, criava, ele próprio, as condicionantes cognitivas. A rádio, a televisão, a imprensa escrita, extensões das faculdades de ouvir, ver e imaginar, acabariam por incutir transformações efectivas mais profundas e duradouras do que, supostamente, qualquer sequência de conteúdos.

A autora mune-se de uma revisão bibliográfica assinalável, revisitando autores como James Carey, Pierre Lévy, Roland Barthes, Armand Mattelart e Paul Virilio, para citar apenas alguns, e discute, igualmente, com outros autores eventualmente de afinidade electiva, como Hermínio Martins, José Luís Garcia, José Bragança de Miranda, Rui Cádima, Maria Teresa da Cruz e Serge Proulx, apoiando solidamente as suas asserções e fornecendo um quadro geral de grande clareza.

«O meio é a mensagem» surgiu, à época, como uma provocação intelectual. Não apenas McLuhan se situava, pelo ângulo de abordagem dos media, na tradição do determinismo tecnológico, como a equação que avançava implicava, para ser plenamente aceite, uma ruptura de carácter ontológico, pois, se admitirmos que uma coisa, além de ser ela própria, é ao mesmo tempo, outra, estamos não apenas a dizer que ambas se equivalem, mas, simultaneamente, que, pelo valor que lhes atribuímos, além de se equivalerem, se podem confundir.

A afirmação que, levada ao absurdo, foi por vezes entendida como «o meio é tudo», «a mensagem, nada»!, pelo que comporta de desafio interrogativo, poderia ter sido glosada, em tons diferentes, por muitos outros autores, a que Filipa Subtil, por certo, não reconheceu pertinência ou adequação que justificasse uma menção especial.

Claude Léví-Strauss, frequentemente acusado de desvalorizar contextos nas suas análises de mitos, poderia, provavelmente, reconhecer que a mensagem é o próprio meio, o que levantaria alguns problemas de compreensão, mas manteria intactos os termos da equação semântica; Bruno Latour, por outro lado, não teria dificuldade em admitir que o meio e a mensagem formam um todo que as inscrições dos actores-rede vão diferenciando, e por aí adiante.

Um último aspecto que, pela sua relevância, não deve passar em claro é o que se prende com a recepção reflectida e sistematizada de autores fundamentais na área das ciências da comunicação. Este livro de Filipa Subtil averba uma contribuição notável para a série, ainda escassa, de obras destinadas à compreensão, discussão e divulgação de ideários geralmente aludidos de forma fragmentada e superficial. As reflexões próprias acerca de autores cuja produção emergiu de contextos diferentes do nosso não são abundantes. No caso vertente da obra de McLuhan, esse trabalho de filtragem é ainda mais raro.

Da emergência quase subversiva do núcleo de conceitos mcluhanianos que Filipa Subtil passa em revista no seu livro até à banalização terminológica e ao relativo esquecimento do autor da Galáxia de Gutenberg, o livro agora dado à estampa inventaria, enumera e discute o que é fundamental para a compreensão de qualquer obra.

A autora faz justiça a Marshall McLuhan, reconhecendo o carácter discutível mas estimulante das suas galáxias.

 

Manuel Correia

Instituto Superior Técnico

 

1 A par da docência e da investigação, Filipa Subtil produziu nos últimos anos vários artigos e comunicações acerca da escola de Toronto, dedicando particular atenção aos trabalhos de Harold Innis e Marshall McLuhan.

2 Marshall McLuhan, Understanding the Media. The Extensions of Man, Cambridge, Massachusetts, The MIT Press, 1997 [1964].

3 Marshall McLuhan, The Gutenberg Galaxy. The Making Typographic Man, Toronto, University of Toronto Press, 1997 [1962].

4 Enric Saperas, Los Efectos Cognitivos de la Comunicación de Masas, Barcelona, Ariel, 1986.

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