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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.188 Lisboa jul. 2008

 

Katherine Donahue, Slave of Allah: Zacarias Moussaoui vs. The USA, Londres, Ann Arbor, Pluto Press, 2007, 224 páginas.

 

Slave of Allah, o mais recente livro de Katherine Donahue, pretende ser, como o próprio subtítulo sugere, uma pesquisa sobre o processo judicial que opôs Zacarias Moussaoui ao estado norte-americano. Moussaoui é um cidadão francês de ascendência marroquina que, como muitos se recordarão, a seguir ao 11 de Setembro de 2001, no auge das buscas por colaboradores e cúmplices na organização e perpetração dos atentados às Torres Gémeas de Nova Iorque, foi o único indiciado e condenado (por ocultação de informação, já que nunca se provou a ligação aos atentados de 11 de Setembro).

O «vigésimo `hijacker'» (dos 19 envolvidos), como ficou conhecido, foi acusado de conspirar com Osama bin Laden e a Al-Qaeda «to murder thousands of innocent people in New York, Virginia and Pennsylvania on September the 11th» (Ashcroft, 2001, in Donahue, 2007, p. 1). Segundo o procurador-geral do departamento de Justiça norte-americano, John Ashcroft, as acusações contra Zacarias eram: «[...] one, commit acts of terrorism transcending national boundaries; two, commit aircraft piracy; three, destroy aircraft; four, use weapons of mass destruction. The other two accounts were conspiracy to: five, murder United States employees, and six, destroy property» (Donahue, 2007, p. 1).

O intuito do livro de Katherine C. Donahue é, pois, produzir uma etnografia sobre este tão mediatizado processo judicial. Através dele, procura perceber as dinâmicas por detrás da adesão e participação deste cidadão francês, com um elevado grau de instrução (um mestrado em international business), em movimentos militantes. Através de um exercício metodológico em tudo idêntico ao «clássico» estudo de caso etnográfico, a autora procura fazer uma reflexão mais geral que poderia ser resumida com as questões que coloca logo no início do livro: «why is there so much alienation and discontent among young Muslim men and women living in the West? Why do hundreds, even thousands, of people in North America and in Europe join fundamentalist islamic groups which offer them a role in the global jihad?» (Donahue, p. 6).

O argumento central aponta para a relação entre exclusão e radicalização, relação que é, aliás, frequentemente realçada em algumas das pesquisas sobre o tema. Perante a impossibilidade de concretizar as suas expectativas devido ao racismo e exclusão em França (que bloquearam o seu percurso de ascensão social), Moussaoui emigrou para Londres. Aqui completou os seus estudos e, simultaneamente, aproximou-se dos «movimentos militantes» e das suas ideologias.

A explicação para a radicalização de Moussaoui encontra-se assim, segundo Donahue, nos processos de exclusão social que o impediram de aceder aos sonhos que então acalentava. Perante uma mobilidade social bloqueada, Zacarias terá progressivamente substituído um sonho por um outro, associado a um islão «radical», «fundamentalista» e militante.

Tais ideias vão-se tornando evidentes à medida que lemos este minucioso trabalho etnográfico. Os três primeiros capítulos são uma descrição densa do processo judicial desde o seu início, em 2002, até à sentença final, em 2006. No primeiro capítulo, «The legal process begins», descrevem-se as circunstâncias que levaram à prisão de Zacarias Moussaoui, as audiências preliminares, a elaboração da acusação e documentação relativa ao processo, bem como as reacções da imprensa. Em causa estava a preparação do processo, judicial contra Zacarias Moussaoui pelo Ministério Público.

No capítulo seguinte, «Slave of Allah: Zacarias Moussaoui's struggle to represent himself», Donahue mostra como, ao longo do processo, Moussaoui procurou apresentar-se como representante da Ummah (conceito que remete para a existência de uma comunidade islâmica global), mais concretamente a parte jihadista da Ummah, perante o poder judicial americano. A forma como era representado nos países e regiões de maioria islâmica constituía a principal preocupação de Zacarias.

Em «Courtroom 700, Alexandria, Virginia», o leitor é levado a acompanhar o dia a dia do processo judicial. A escolha do júri, a audição das testemunhas de defesa e de acusação, a sentença (prisão perpétua no estabelecimento prisional federal conhecido como Administrative Maximum Facility) e as reacções dos espectadores e da imprensa são alguns dos temas abordados.

Uma vez terminada a descrição de todo o processo, a autora propõe-se então fazer uma história de vida do «vigésimo `hijacker'». Para tal, recorreu sobretudo aos materiais produzidos em tribunal, onde a história de vida do acusado foi pormenorizadamente dissecada, e à anterior experiência de trabalho de campo em França no final dos anos 80 (foi o facto de Zacarias ser oriundo da região onde tinha trabalhado anteriormente que motivou a autora a realizar esta pesquisa). Tal exercício começa no quarto capítulo, «Zacarias my brother: the making of a terrorist», através de uma viagem ao passado de Moussaoui e das circunstâncias que o levaram da França ao Afeganistão e, finalmente, aos EUA. As questões centrais são os desapontamentos e as desilusões que o levaram a uma progressiva islamização e mais tarde a aderir a movimentos militantes.

No quinto capítulo, «Why can't they be more french?», todo este trajecto (de vida e viagens) é pensado por relação aos processos de marginalização a que o acusado esteve sujeito em França. Analisando as políticas francesas de cidadania, torna-se evidente a exclusão que sofrem os jovens franceses de ascendência marroquina e, no geral, «magrebina». É neste contexto que o leitor é levado a interpretar a história de vida de Moussaoui e a sua frágil posição estrutural.

A sua adesão a um islão sem fronteiras nacionais, descrito no sexto capítulo, «Islam without borders», é vista, precisamente, como uma reacção àqueles entraves. Ao renegar a cidadania francesa e aderir a uma ideologia religiosa transnacional, Zacarias estava a reflectir os próprios debates sobre a existência de um islão francês ou um islão em França. Aqui confrontam-se dois universalismos: o republicanismo e um islão sem fronteiras. Este último questiona os limites do Estado-nação e, como tal, é demonizado e classificado como um «perigo».

O capítulo seguinte, «By word and bullet: language and symbolic violence», pretende ser uma reflexão sobre a eficácia das retóricas de muitos destes movimentos «radicais». Para Donahue, para além da exclusão e marginalização social e racial a que Moussaoui tinha sido sujeito ao longo da vida, é necessário também levar em linha de conta a atracção que estes movimentos exercem sobre os jovens muçulmanos europeus que se encontram em circunstâncias semelhantes. Para tal, a autora recorre à noção de violência simbólica de Pierre Bourdieu com o intuito de mostrar o quão «eficazes» muitos destes movimentos conseguem ser.

Finalmente, no último capítulo, intitulado «What the west should learn from the case of Zacarias Moussaoui», a autora chama a atenção do leitor para aquilo que o «Ocidente» deveria aprender com este caso. Mais concretamente, a decisão de estes jovens, os «novos mártires de Allah», se tornarem militantes religiosos e as medidas políticas necessárias para impedir tais decisões. Uma das conclusões fundamentais é a necessidade de reconhecer que estes jovens são europeus e, neste sentido, a possibilidade de acção sobre estes universos não passa pela criminalização da imigração. O que importa perceber são as causas de tão grandes ressentimentos, argumenta Donahue.

Chegados ao fim desta obra, não é possível deixar de pensar nas inúmeras publicações que se propõem abordar tais problemáticas, especialmente sobre os muçulmanos e o islão, algumas das quais têm contribuído para o reforço das ideias hegemónicas (e islamófobas!) acerca dos muçulmanos enquanto alteridade e o «irredutivelmente» outro (retratos, aliás, formatados por discursos de inspiração orientalista e colonial). Para alguns, teremos de procurar no islão a explicação primeira para as acções violentas e actos hediondos perpetrados por muitos. Para outros, tais actos serão apenas o reflexo de um «choque de civilizações».

O livro de Donahue distancia-se destas abordagens e aproxima-se de discussões e argumentos um pouco mais sérios. De facto, o que a autora mostra é que, se queremos perceber por que é que há jovens que aderem a movimentos políticos militantes (movimentos esses que recorrem a argumentos religiosos como forma de inspiração), não devemos procurar na religião o factor explicativo, mas sim nas circunstâncias (marginalização, racismo, mobilidade social bloqueada, etc.) que rodeiam muitos destes jovens. Dito isto, é importante reter que não são os mais desprovidos e excluídos que aderem a estes movimentos, mas sim aqueles que cresceram em meios educacional e economicamente capitalizados — Zacarias é oriundo de uma família de classe média — e que se confrontam com barreiras (exclusão e marginalização) que bloqueiam o acesso às suas expectativas.

Embora não seja teoricamente inovador (de resto, a autora poupa-nos a grandes extrapolações teóricas), o interesse desta obra é precisamente o excepcional trabalho etnográfico realizado e revela como alguns métodos clássicos da antropologia, como o extended case method de Max Gluckman, mantêm toda a sua actualidade para interpretar e descrever os mundos contemporâneos.

José Mapril

Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa

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