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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.189 Lisboa out. 2008

 

Gísli Pálsson, Anthropology and the New Genetics, Cambridge, New York, Cambridge University Press, series "New Departures in Anthropology", no. 4, 2007, 268 páginas.

 

Gísli Pálsson é professor de Antropologia na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade da Islândia. Nos últimos anos tem desenvolvido investigação sobre genómica, tratando-se de um renomado especialista em impactos sociais da biotecnologia, em particular no que concerne à recolha, armazenamento e circulação de material biológico humano e informação médica. É autor, co-autor e organizador de diversos livros, nomeadamente The Textual Life of Savants: Ethnography, Iceland, and the Linguistic Turn (1995, Harwood Academic Publishers), Travelling Passions: The Hidden Life of Vilhjalmur Stefansso (2005, University of Manitoba Press and University Press of New England) e Nature and Society: Anthropological Perspectives (1996, Routledge).

Detentor de vasta experiência de trabalho de campo em contextos diversos, nomeadamente na Islândia, no Árctico canadiano e na República de Cabo Verde, o seu livro mais recente, Anthropology and the New Genetics, resulta em boa medida de aturado trabalho etnográfico num dos laboratórios da empresa multinacional deCode, uma das companhias líderes mundiais em biofarmácia e genética. Conhecida pela aplicação da investigação à genética populacional no sentido de isolar os genes responsáveis por várias doenças — desde o cancro a doenças cardiovasculares — e de desenvolver novas drogas terapêuticas, esta empresa, fundada em 1996, em resultado de um consórcio entre a Islândia e os Estados Unidos da América, ganhou notoriedade internacional pela participação no polémico projecto de construção de uma base de dados genéticos e médicos de toda a população islandesa (aprovado em 1998 pelo parlamento islandês).

Tendo em vista o desenvolvimento da investigação na área da biomedicina, geneologia e farmacêutica personalizada, os objectivos — científicos e mercantis — da deCode conjugaram-se com os interesses políticos do Ministério da Saúde islandês, formando deste modo um complexo sociotécnico que ilustra alguns dos debates mais intensos dos impactos sociais da biomedicina e da bioinformática. A perspectiva antropológica é assim convocada a analisar o desenvolvimento e implicações das práticas científicas associadas à visualização e sequenciação dos genes e a identificar os imaginários sociais e as relações que emergem da investigação sobre o genoma humano e a diversidade genética.

O fundo empírico deste livro resulta de trabalho etnográfico com base na observação directa dos cientistas que trabalhavam, em 2000, num dos laboratórios da deCode na Islândia e em entrevistas com interlocutores-chave. Contudo, o autor estende a análise a outros projectos de investigação similares, alguns dos quais com ressonâncias mundiais e que resultam de actividades de cooperação entre cientistas, indústrias farmacêuticas e governos nacionais. Tanto o projecto do genoma humano como o projecto da diversidade do genoma humano e outros estudos de âmbito regional e nacional dirigidos a grupos particulares de pacientes (ou, no caso da Islândia, a toda a população) têm como objectivo comum mapear e sequenciar o genoma humano e desenvolver meios para aplicar informação genética no estudo da biologia e da medicina na descoberta e desenvolvimento de novos fármacos. Nas palavras do autor, todos estes projectos dirigidos à compreensão da genética e evolução humanas ilustram o actual fascínio com o potencial da biologia molecular para o bem-estar humano, a curiosidade face à componente genética da história genealógica e a crescente e complexa imbricação da biotecnologia, medicina, informática, indústria e mercado farmacêuticos.

A cooperação transnacional de cientistas, as redes globais de organização e acção das indústrias farmacêuticas, ou os mecanismos internacionais de dinamização do mercado, fazem com que a governação da genética e da genómica deixe de se efectuar no âmbito exclusivo da regulação nacional. Este fenómeno surge na Islândia associado a intenso debate ético e político, objecto de amplo interesse público no que Gísli Pálsson designa por interacções "epigenéticas" — os modos pelos quais os genes se podem expressar diferentemente em resposta a distintos ambientes, embora mantendo inalterável a sequência do ADN do organismo humano.

O objectivo central do livro é, pois, explorar algumas das possíveis perspectivas antropológicas dirigidas à "nova genética", tratando-se de um fenómeno global, assente na imbricação entre a investigação científica do genoma humano e a indústria farmacêutica e biomédica. Na perspectiva do autor, constroem-se novas práticas e saberes, emergem novas infra-estruturas e desenvolvem-se redes mais extensas de interacção, ancoradas num olhar e imaginário biologizantes, que redefinem alguns conceitos centrais na compreensão da identidade humana — e, diga-se, nucleares na formação da antropologia —, tais como os sentidos de pertença, de parentesco, de propriedade, de governação, de bem-estar, de interesse público, de moral, de individualismo e de "raça".

Gísli Pálsson apresenta-nos uma proposta de "antropologia genómica" (p. 208) que envereda por estudos empíricos de cariz etnográfico, orientados para a compreensão do modo como a "nova genética" causa impactos sociais e, simultaneamente, potencia a emergência de novas relações sociais — que, de um modo geral, se podem designar como formas de "biossociabilidade" (p. 212) — sustentadas em inscrições corpóreas pelas quais as identidades étnicas estão contidas em identidades biológicas conferidas pelos genes. Propõe-se, assim, analisar algumas das profundas implicações nas reconfigurações das noções de bem-estar e de condição humana, provocando mudanças nos modos de pensar o corpo, a saúde, a responsabilidade individual e as relações entre peritos e leigos.

Torna-se central para a antropologia da genómica perceber quem são os actores envolvidos, em que circunstâncias os indivíduos e as populações são governados pela ciência genómica e pela biotecnologia e como se constroem conceitos regionais de identidade e de normatividade e moralidade da acção — política e científica. Essa ideia consolida a necessidade, desde há muito sentida pela antropologia e pelas ciências sociais em geral, de questionar criticamente o dualismo natureza/sociedade e físico-biológico/sociocultural. Reclama-se a urgência em ultrapassar a convencional divisão académica do trabalho, em expandir fronteiras disciplinares e em reimaginar o corpo e identidade humanos, possibilitando a enunciação de novas questões relativas ao "sobre quem somos" (p. 12), que comunidades e populações genéticas podemos construir, como é que podemos pensar e construir as relações sociais e as identidades com base na assunção da herança biológica partilhada.

As possibilidades em aberto para a extracção, armazenamento e circulação de amostras biológicas ganham hoje novos contornos com o crescente desenvolvimento de aplicações informáticas que permitem a construção de maiores e mais complexas bases de dados. Isto a par de um contexto social e de uma concepção do corpo favorável ao conceito foucaltiano de biopoder, tornando-se criticável sobretudo o controlo e os usos da informação obtida sobre o corpo humano. Este fenómeno da governação genética ganha particular relevo no caso da base de dados islandesa, que unifica numa só plataforma de informação as bases de dados de informação médica, genética e genealógica (contendo dados de toda a população islandesa desde 1915, reunidos sem o consentimento prévio, expresso e informado das pessoas). O escrutínio do capital genético das populações torna-se inevitável e é apresentado politicamente não só como necessário, mas também como desejável, na medida em que surge sob a égide da responsabilidade do Estado para o bem colectivo. De facto, a base de dados médico-genéticos está sob a custódia do Serviço Nacional de Saúde e foi reconfigurada pelo governo islandês como instrumento essencial para tornar o sistema de saúde mais eficiente e para permitir uma mais extensa monitorização dos cuidados de saúde, do impacto dos medicamentos e do papel dos estilos de vida na construção do bem-estar humano. Essa monitorização é apresentada ao público como suporte fundamental para produzir informação que sirva de base ao estabelecimento de práticas de investigação médico-farmacêutica e políticas de prevenção de doenças.

Uma base de dados universal, com acesso privilegiado a informação médica da parte de uma empresa multinacional, tem sido encarada pelos críticos como um dos primeiros e mais visíveis passos para um eugenismo e regime totalitário do século xxi. A compreensão da complexa intersecção da biomedicina, mercado e política, acompanhada daquilo que o autor considera ser uma crescente mercantilização do corpo (p. 123), projecta consumos de biotecnologia e atitudes perante o corpo constituintes de novas moralidades, que potenciam desigualdades sociais assentes em características genéticas e estilos de vida considerados adequados. Alguns dos grandes desafios colocados ao antropólogo consistem, neste contexto, em mapear os factores legais, éticos e sociais que influenciam a tradução e conversão de informação genética em contributos para a saúde humana, as implicações para os indivíduos e sociedade da crença na influência dos genes na formação de comportamentos e características humanas, e como indivíduos, culturas e religiões diferentes se posicionam face ao debate das fronteiras éticas no uso da genómica (p. 125).

Trata-se, indubitavelmente, de um livro que convoca o saber antropológico para a compreensão mais profunda dos impactos sociais dos processos de celebrização da ciência e da tecnologia e das esperanças projectadas pela retórica da qualidade e excepcionalidade dos genes. Ao longo de oito capítulos, o autor explora várias vertentes do projecto sociotécnico islandês de construção da "cidadania genética" enquanto conceito que descreve os processos múltiplos e complexos, globais e regionais, pelos quais indivíduos e grupos se envolvem e reconstroem as suas identidades pelos encontros com a biotecnologia enquanto tecnologia, mas também como fonte de informação e poder (p. 139). As complexidades inerentes ao que podemos também designar como biocidadania e à moralização do manuseamento e classificação do material biológico surgem articuladas com a mobilização de um conjunto de expectativas e de imaginários sociais em torno do impacto futuro da investigação genética e do uso do material biológico.

Helena Machado

Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho

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