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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.189 Lisboa out. 2008

 

Guilherme Veiga, Ritual, Risco e Arte Circense. O homem em situações-limite, Brasília, Editora Universidade de Brasília, 2008, 314 páginas.

 

Li com emoção Ritual, Risco e Arte Circense. O homem em situações-limite. Este livro resulta de uma investigação de doutoramento em Sociologia apresentada na Universidade de Brasília. O seu autor, Guilherme Veiga, era investigador, professor, artista plástico, músico e compositor.

Trata-se de uma investigação muito rica que promove uma aproximação forte da sociologia da arte e do investigador ao seu objecto de estudo. O observador torna-se observado, sujeito e objecto da investigação através de metodologias de carácter experimental e trabalhos práticos realizados in situ.

Um dos aspectos mais originais do livro reside, pois, no trabalho de campo que o autor desenvolveu na Escola Nacional de Circo, no Brasil, e que nos proporciona um raro testemunho de todos os movimentos implicados numa "acrobacia de solo", "perna-de-pau", "malabarismo" e "cama elástica".

No entanto, a riqueza desta investigação não fica por aqui, sendo de assinalar: (i) o recurso a um quadro teórico interdisciplinar que vai da antropologia à sociologia, à história, à filosofia e à psicologia; (ii) a discussão em torno da passagem do ritual ao espectáculo ou, se quisermos, do participante ao espectador contemplador; por fim, (iii) o tributo que é feito às artes performativas, dando-nos a conhecer as especificidades do exercício — arriscado e temeroso — das artes circenses.

Inicialmente, o mote do autor foi compreender as performances como "manifestações típicas do mundo contemporâneo", os seus traços de originalidade, exotismo e liberdade infinita jamais vistos e que nunca como hoje estiveram tão profundamente ligados à arte tecnológica. Então será que a performance é ritual ou é arte?, pergunta Guilherme Veiga, para defender que, tanto do ponto de vista conceptual como do prático, uma performance é mais do que uma apresentação de um artista ao seu público.

Por isso, no capítulo 1 do seu livro descreve como é que na antiguidade se assistiu à maior inovação de sempre: a cisão entre actores e espectadores. Ou seja, o indivíduo deixou de ser um participante no ritual para se tornar num espectador contemplador. A este propósito, o autor faz uma incursão pelo teatro clássico — de Ésquilo, Sófocles e Eurípides — que nos parece muito útil para os estudantes dos cursos artísticos.

Estabelecendo uma ponte com a actualidade, Guilherme Veiga procura chamar a nossa atenção para os grandes eventos e espectáculos de música e televisão que promovem a diluição da interacção do espectador e do artista, então muito afastados física e simbolicamente. Aliás, quanto mais famoso, mais o artista se separa do seu público. Em simultâneo, assistimos cada vez mais aos chamados "espectáculos participativos", em que o público interage com os artistas. Paradoxos da criação artística contemporânea, conclui o autor.

Procurando ir sempre mais longe na pesquisa, no capítulo 2 questionam--se as consequências desta ideia de contemplação da obra para a forma ocidental de pensar a arte. De novo, recupera-se a herança da cultura clássica e mostra-se como a palavra "arte" tem múltiplos sentidos: o de criação artística e criatividade, mas também o de artifício ou habilidade, podendo a produção de um objecto de arte ser um processo que resultará improdutivo no sentido material do termo.

Em meu entender, um dos mais importantes contributos deste livro reside no debate em torno das finalidades da arte para aqueles que a criam: "A essência da arte está no ritual, naquilo que ele tem de auto-expressivo, de auto-suficiente, de não espectacular" (p. 66). A arte e a sua origem, diz ele, estão ligadas ao efeito que produzem no artista e "a possibilidade de o processo gerar uma obra e ainda a possibilidade de essa obra ser exposta para um público são duas consequências contingentes que funcionam, em parte, para explicar o espectáculo, mas que não funcionam, de forma alguma, para se compreender o ritual ou a performance" (p. 66). O que significa que quando o artista faz uso da sua criatividade sente o gozo da sua criação, incompleta e imprevisível. Este é o "nível auto-expressivo" da arte, descrito por M. Veiga neste livro.

Esta temática não nos é estranha. É a "realização de si mesmo", a "aprendizagem constante do eu" e o duplo sentido da "desmultiplicação de si", de que nos falam Pierre-Michel Menger (La profession de comédien. Formations, activités et carrières dans la démultiplication de soi, DEPS, 1997), quando analisa a profissão de actor, Janine Rannou e Ionela Roarik (Les danseurs. Un métier d'engagement, Paris, Ministère de la culture, DEPS, 2006), quando descrevem o engagement dos bailarinos no seu trabalho, ou ainda Marie Buscatto ("De la vocation artistique au travail musical: tensions, compromis et ambivalences chez les musiciens de jazz", in Sociologie de l'art, Opus 5, 2004, pp. 35-56), quando analisa as vocações artísticas dos músicos de jazz, entre muitos outros exemplos que poderia deixar aqui.

Guilherme Veiga refere-se, por um lado, ao "nível auto-expressivo" da arte e, por outro lado, à necessidade de o artista mostrar o seu trabalho, que denomina "nível expressivo da exibição" e que, na sua opinião, é, afinal, menos importante do que o primeiro (o "nível auto-expressivo" da arte). Ora isto leva-nos a recuperar aqui o binómio vocação/arte e profissão, utilizado, por exemplo, por Judith Blau (Architects and Firms: A Sociological Perspective on Architectural Practice, Cambridge, Mass., The MIT Press, 1982) para a arquitectura, e a tensão existente entre as partes deste binómio, como se verificou no exercício da profissão de arquitecto no nosso país [cf. Manuel Villaverde Cabral e Vera Borges, A arquitectura como vocação e como profissão, 2008 (no prelo)].

Como o próprio autor afirma a certa altura do seu texto, fazer um trabalho "dentro" do universo da criação, seja no atelier ou durante os ensaios de um espectáculo ou a rodagem de um filme, não é em si mesmo uma novidade. De facto, já P.-M. Menger (Retrato do Artista enquanto trabalhador, Lisboa, Ed. Roma, 2005) considerou que uma das formas de fazer o retrato sociológico dos artistas passava também pela análise dos seus processos de criação e, entre nós, alguns investigadores interessados em estudar, por exemplo, o circo e o teatro têm apresentado as suas incursões — diferenciadas — pelos processos de criação. É o caso de Joana Afonso (Os Circos não existem. Família e Trabalho no meio circense, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2002) e da observação participante que realizou no interior do circo Chen; de André Brito de Correia (Arte como Vida e Vida como Arte — Sociabilidades num contexto de criação artística, Porto, Afrontamento, 2003) e do seu estudo das sociabilidades e práticas teatrais no grupo de teatro o Acto; do trabalho que Berta Teixeira, socióloga e actriz, tem vindo a desenvolver no Centro de Estudos Sociais, em Coimbra, no âmbito do seu projecto de doutoramento; e ainda de uma pesquisa desenvolvida no interior de três grupos de teatro, os Artistas Unidos, o Pogo Teatro e o Teatro Nacional D. Maria II, durante os ensaios dos seus espectáculos (Vera Borges, Todos ao Palco. Estudos sociológicos sobre o Teatro em Portugal, Oeiras, Celta, 2001).

Mais adiante, nos capítulos 4 e 5 do livro em apreço, voltam a encontrar-se múltiplas razões de interesse no trabalho deste autor. Desde logo, pelos seus argumentos e pela escolha de um tema que, recorrentemente, tem vindo a ser discutido no âmbito da sociologia da arte (entre outros) e que se prende com o risco físico de certas actividades artísticas, como a acrobacia — o trabalho com o trapézio fixo, de balanço e o tecido — e a dança, e actividades corporais de lazer muito valorizadas na cultura urbana, como o skate, a acrobacia em bicicletas, a prancha com pára-quedas.

Ao estudar as questões subjacentes ao risco, o autor refere-se não ao risco constitutivo da nossa vida quotidiana, mas ao risco a que o indivíduo se expõe mais por prazer, por opção, por gosto, por desafio, do que por necessidade e que vulgarmente se associa ao desporto, à guerra e à arte. Para estudar este risco, G. Veiga interessou-se pelo fascinante mundo da acrobacia, onde destreza física, risco e beleza (arte) são, afinal, indissociáveis, para concluir que muitas vezes um determinado objecto artístico, como um quadro, ou uma criação artística, como um espectáculo de acrobacia, é um momento — às vezes nem é o mais importante — da actividade expressiva dos indivíduos, que é, no fundo, o cerne deste estudo.

Como se pode ver, Ritual, Risco e Arte Circense, de Guilherme Veiga, tem a potencialidade de conciliar autores e formas diferentes, mas complementares de fazer sociologia da arte. O que fica da sua investigação não é pouco.

Vera Borges

Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa

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