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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.190 Lisboa  2009

 

Manejos da religião, da etnicidade e recursos de classe na construção de uma cultura migratória transnacional

Susana Pereira Bastos*

 

Os processos de territorialização e de reconexão transnacional desenvolvidos pelos passengers indo-britânicos em Moçambique desempenharam um papel fundamental na construção do estatuto de minorias étnicas intermediárias comerciais que lhes foi conferido durante o período colonial. Partindo de um corpus de memórias, procuraremos interrogar em que medida a religião hindu e muçulmana se revelou uma variável efectiva na consolidação de uma cultura migratória transnacional. Argumentaremos, todavia, que a compreensão destes processos exige considerar, em simultâneo, valores e recursos de classe, particularidades relacionadas com uma etnicidade diferencial, mas ainda novas estratégias de relacionamento com os restantes grupos da sociedade colonial.

Palavras-chave: transnacionalismos indianos; religião; Moçambique

 

Religion, ethnicity and class resources as building blocks of a transnational migration culture

Anglo-Indian migrants in Mozambique developed mechanisms of territoriality and transnational binding which played a fundamental role in establishing the intermediate ethnic trader minority status they acquired during the colonial period. Using a corpus of memories, this article seeks to determine to what extent the Hindu and muslim religions were effective variables in the consolidation of a transnational migration culture. In doing so, however, it argues that these processes can only be properly understood if class values and resources, specificities related to differential ethnicity, and new strategies for relating to other groups in colonial society are all taken into account at the same time.

Keywords: Indian transnationalisms; religion; Mozambique.

 

 

 

Introdução

Sem negligenciar o papel dos estados e das relações interestatais, coloniais e pós-coloniais, no reforço da mobilidade diaspórica e/ou nos processos de reterritorialização migratória (Waldinger e Fitzgerald, 2004), não podemos, contudo, escamotear que tais processos exigem aos seus autores a mobilização de múltiplos recursos. No que respeita às diásporas mercantis com origem, em particular, no subcontinente indiano, a literatura disponível tem vindo a enfatizar a importância da filiação religiosa comum, bem como a influência de algumas dimensões relacionadas com uma etnicidade diferencial (a organização em comunidades de casta, a pertença a microlocalidades específicas, determinados valores e práticas ligadas ao parentesco, etc.) na estruturação de redes transnacionais, entre um ou mais centros e diversos conjuntos de localidades, no seio das quais circulam não apenas capitais, bens, créditos, informações e pessoas, mas ainda uma cultura partilhada (Lal, 2006; Bastos, 2005; Jacobsen e Kumar, 2004; Markovits, 2000; Rudner, 1994; Gregory, 1993).

Optando pela análise intensiva de alguns grupos específicos, no âmbito de um conjunto muito mais vasto de comunidades que constituem a diáspora gujarati e, mais especificamente, de uma rede de comerciantes hindus e muçulmanos que se estabeleceu em Moçambique a partir da segunda metade do século XIX, procuraremos interrogar em que medida a pertença comunitária etno-religiosa se revelou uma variável efectiva na emergência e consolidação de uma cultura migratória transnacional1. Argumentaremos, não obstante, que para a compreensão destes processos será necessário considerar, em simultâneo, valores e recursos que remetem para um background de classe partilhado e ainda novas estratégias e recursos desenvolvidos localmente ao longo de várias décadas de relacionamento com os restantes grupos da sociedade colonial.

 

Entre a Índia e o Leste Africano: o "negócio da permuta"

Constituindo um exemplo de ligação directa entre o local e o global, não mediada de uma forma óbvia pela administração colonial britânica, certas redes de comerciantes indianos desempenharam um papel importante na economia externa indiana durante o período 1800-1850 (Markovits, 2000, p. 29). Entre eles, alguns comerciantes do Kutch, hindus de casta bhatia2, e muçulmanos ismaelitas khojas3, nomeadamente, estenderam as suas actividades à costa africana, estabelecendo-se em Zanzibar (Clarence-Smith 1989; Salvadori, 1989 e 1996).

Para além do comércio costeiro, das importações e exportações com a Índia, bem como do seu envolvimento na recolha e fiscalização de impostos, alguns destes comerciantes, sobretudo bhatias, financiaram o tráfico de escravos durante a segunda metade do século XIX. Argumentando que eram súbditos do príncipe do Kutch, tentavam escapar à legislação que proibia qualquer súbdito britânico de comprar e vender escravos, inclusive em territórios não pertencentes à coroa britânica (Morris, 1968, pp. 4-5). Reconhecendo, no entanto, que a exportação de marfim lhes poderia ser igualmente vantajosa, dado que possuíam numerosos contactos em Bombaim, destino de grande parte das exportações, rapidamente deixaram o tráfico de escravos para outros agentes.

Tal como eles, vários khojas de Zanzibar começaram também a financiar as caravanas arabo-suaílis, europeias e americanas que se aventuravam pelo interior do continente africano. Depois de ter começado como aprendiz do bhatia Jairam Sewji, Taria Topam ter-se-á envolvido neste negócio a partir de 1860; dez anos mais tarde, Sewa Haji Paroo não se limitava apenas a fornecer mercadorias aos negociantes do interior, como se ocupava de toda a organização das caravanas, chegando a enviar correspondentes para postos comerciais permanentes estabelecidos ao longo das rotas. No início de 1890, e aproveitando a experiência profissional adquirida como aprendiz numa firma de Sewa Haji em Bagamoyo, Allidina Visram montou a sua própria rede de negócios, criando e alimentando múltiplos postos de venda no interior, onde trocava mercadorias importadas por marfim e peles. Por volta de 1909 havia construído um império comercial com mais de quarenta sucursais por todo o Leste africano e várias fábricas (Penrad, 1988; Salvadori, 1989).

As inovações introduzidas por Visram, nomeadamente o recrudescimento do volume de trocas e o estímulo à oferta de novos produtos agrícolas, a sua transformação em produtos exportáveis, a dimensão transnacional dos seus negócios (sediados na Índia, no Uganda, no Quénia, no Congo, etc.), bem como o investimento na construção de fábricas que valorizavam os produtos locais (Penrad, 1988), foram rapidamente implementadas por outros comerciantes indianos. Ranchordas Odha, bhatia do Kutch, oriundo de Bombaim, comerciante de Zanzibar e exportador de marfim, foi um dos primeiros a concretizar algumas destas novidades no Norte de Moçambique durante a segunda metade do século XIX.

Não foi, contudo, o primeiro indiano a investir neste território. À epoca, uma rede de banias (comerciantes, neste contexto) de Diu, sediada na ilha de Moçambique, juntamente com um pequeno grupo de armadores portugueses não indianos, intervinha activamente no mercado transatlântico do tráfico de escravos, secundarizando o comércio a longa distância com as praças de Goa, Diu e Damão, em que se havia empenhado até meados do século XVIII. Enquanto os banias de Diu organizavam o tráfico de escravos, primeiro, a partir da ilha de Moçambique e, posteriormente, de Quelimane, reinvestindo os capitais acumulados no mesmo ramo de actividade e também em Diu, Ranchordas Odha estabeleceu-se primeiro em Ibo e, posteriormente, em Pemba, onde instalou a sede da sua empresa. Multiplicou, posteriormente, sucursais/cantinas em Mucimboa da Praia, Ibo, Necuji, Quissanga, Porto Amélia, Mahate, etc., onde empregava familiares e co-étnicos como aprendizes.

Das várias cantinas4 "recebia caju, amendoin, mapira, calumbo, gergelin, cera dos africanos em troca de alguns bens de primeira necessidade e panos". Para além de estimular a produção e a oferta de produtos agrícolas por parte do campesinato moçambicano, de os canalizar e distribuir por armazéns, exportava-os. Em simultâneo, importava e assegurava o aprovisionamento regular das suas cantinas e das dos outros comerciantes da mesma área. Nos finais do século XIX era já "o grande importador e exportador do Norte de Moçambique, o maior de todos, entre hindus, maometanos e portugueses. Fez um império esse Ranchordas. Era dono de toda a Pemba e não só." Paralelamente ao comércio geral, à importação e exportação, temos ainda notícia de que Odha se empenhou numa intensa actividade bancária: "Ele era o próprio banco, financiava muitas empresas de indianos e de portugueses5."

A política colonial portuguesa implementada depois de 1885 e, em particular, a cedência de determinadas províncias a companhias, bem com a administração directa de certos territórios por parte do Estado português, não parecem ter prejudicado a actividade dos agentes indianos. O seu conhecimento comercial e os contactos locais que possuíam com a população africana eram indispensáveis à prossecução dos próprios objectivos coloniais de dominação comercial e territorial. Por acréscimo, a implementação das companhias acabou por estimular o desenvolvimento de novas estratégias comerciais. Na Zambézia, por exemplo, alguns bhatias e khojas começaram a trabalhar como intermediários comerciais entre os camponeses moçambicanos e as empresas nacionais e estrangeiras de exportação sediadas em Quelimane. Alguns chegaram mesmo a constituir-se como parceiros comerciais relativamente autonomizados (Teixeira, 2001).

Foi o caso de Damodar Anangy, bhatia do Kutch, que assinou em 1892 um contrato comercial com a Companhia da Zambézia através do qual adquiriu direitos comerciais exclusivos sobre vários prazos. Alguns anos mais tarde, o mesmo Damodar estabelecia a Haridas Damodar Ananji & filhos em Nampula e na Beira, reconhecida como uma das mais prósperas empresas de importação e exportação de Moçambique e "cujo negócio principal sempre foi o do caju". O seu prestígio continua a ser evocado por antigos empregados e conhecidos: "Havia uma grande família na Beira, eram donos da casa Damodar. O descendente mais conhecido, Gulapsin Gokaldas, também conhecido por Piripiri, era um bhatia do Kutch. Se for à Beira basta perguntar pelo Piripiri e todos se lembram dele6."

Muito embora se tenham estabelecido primeiramente no Norte do território, não raramente as firmas pioneiras na importação/exportação do caju estendiam as suas actividades a outras províncias. Foi o caso da Pradhan Babool & C.ª e da Noormahomed Rawjee & Co., recordada como uma das primeiras a estabelecer-se (Keshavjee, 1945). O testemunho de Zainu Labedin Rawjee sintetiza bem as estratégias e os percursos desenvolvidos tipicamente pelos primeiros exportadores/importadores indianos estabelecidos em Moçambique: (I) a implementação de práticas transnacionais entre Moçambique e a Índia, sobretudo viabilizadas por uma estratégia de fragmentação familiar (rotativa ou não) que permitia agilizar as importações/exportações; (II) a construção de uma cadeia regional composta por uma ou mais firmas comerciais e por armazéns sediados nas áreas urbanas que asseguravam o fornecimento regular de bens importados a uma multiplicidade de cantinas, as quais tinham a obrigação de canalizar produtos agrícolas destinados à exportação para os armazéns urbanos; (III) a manutenção de relações de interdependência entre grossistas/importadores/exportadores e cantineiros locais; (IV) o reforço das hierarquias sociais e intracomunitárias; (V) a implementação de relações positivas com a administração colonial portuguesa:

O meu dada [avô paterno] deve ter chegado por volta de 1880 e tal. Com muitas dificuldades, começou por arranjar uma cantina e depois outra, até chegar a armazenista, importador e exportador de caju. Foi um dos pioneiros, primeiro a partir da ilha de Moçambique e depois a partir de Delagoa Bay [Lourenço Marques, actual Maputo], onde se instalou antes de 1910, pelas minhas contas. Sempre trabalhou com os irmãos. As empresas eram dos cinco. Geralmente dois ou três irmãos estavam em Moçambique a gerir a Pradhan Babool & C.ª e a Noormahomed Rawjee & Co.; outros dois irmãos estavam na Índia, em Bombaim e em Una, a gerir outras empresas e a tomar conta dos pais. A firma em Bombaim era a Somjee Babool e C.ª e depois intercambiavam as mercadorias. Os meus tios que estavam em Moçambique forneciam produtos e davam crédito aos cantineiros do interior. Os cantineiros trocavam esses produtos por caju. Vendiam o caju aos meus tios e depois eles exportavam para Bombaim, para a firma que era gerida pelos outros dois tios, donde importavam várias mercadorias. Era o negócio da permuta [...] No princípio do século, o meu avô já tinha adquirido 36 a 40 cantinas em Gaza. O meu pai até contava que nessa altura, antes dele nascer, houve uma grande seca em Gaza e o meu avô ofereceu um barco cheio de cereais que tinha acabado de chegar ao porto para distribuir por Gaza. O governador-geral ficou muito agradecido e perguntou como poderia retribuir. O meu avô e tios disseram: "nós não queremos nada". Nessa altura não havia automóveis e o governador tinha uma carruagem para se transportar. Então, quando ele não a utilizava disponibilizava a carruagem para o meu avô e os meus tios se passearem7.

Nem a crise mundial de 1929-1934, nem as medidas promulgadas a partir de 1926 que visavam estabelecer novas relações de dominação económica entre as colónias portuguesas e a metrópole alteraram a prosperidade das firmas indianas ligadas ao negócio do caju. Por um lado, porque a própria crise mundial retardou e condicionou a implementação de tais medidas. Por outro lado, porque a baixa geral dos preços não atingiu o caju. Pelo contrário, o aumento da sua procura, acompanhado da subida (na ordem dos 1000%) da sua cotação no mercado externo, estimulou (sobretudo nas províncias de Nampula e Cabo Delgado) muitos camponeses a optarem pela cultura do cajueiro. Concomitantemente, o aumento da oferta camponesa ao cantineiro enriqueceu armazenistas e exportadores do litoral, ao mesmo tempo que lhes permitiu diversificar e expandir negócios.

Diversificando as conexões internacionais

A emergência das primeiras empresas indo-britânicas no Sul da colónia não pode ser dissociada dos movimentos migratórios que se realizaram a partir de 1860 entre a Índia e a África austral e, nomeadamente, da vaga de passengers gujaratis, oriundos sobretudo de Khatiawar, Surat e Porbandar, que chegavam à Africa do Sul e, posteriormente, a Delagoa Bay, a expensas próprias (Lal, 2006). Com efeito, as histórias de família recolhidas revelam que os primeiros gujaratis estabelecidos em Delagoa Bay tinham como destino idealizado a África do Sul (onde se haviam instalado vários co-étnicos), mas não esclarecem claramente por que decidiram aqueles ficar em Moçambique. Não obstante, em alguns dos relatos dos descendentes dos que chegaram depois de 1911 o aumento crescente da hostilidade por parte dos colonos de origem europeia à presença indiana na África do Sul, as restrições britânicas à sua entrada neste território (Vahed, 2002), bem como a existência de redes de apoio em Moçambique dinamizadas pelos pioneiros, poderiam ter justificado a escolha de Delagoa Bay como um destino alternativo (Leite, 1996; Carvalho, 1999):

Em Delagoa Bay, o meu avô hospedava muitos ismaelitas que vinham com aquela ideia de se estabelecerem na África do Sul. Naquela altura, na viragem do século, era um eldorado, iam todos à procura do ouro. Eles precisavam de apoio e ficavam algum tempo antes de irem. Como os obstáculos foram aumentando, muitos ismaelitas decidiram ficar em Moçambique8.

Com a excepção da Vrajdas Lalchande & Calanche Irachande C.ª9, uma parte significativa dos fundadores das primeiras grandes empresas de Lourenço Marques era indo-britânica de origem gujarati, hindu, sunita e ismaelita. Os seus fundadores começavam geralmente por trabalhar como empregados comerciais em algumas firmas indianas pioneiras (por exemplo, na Vrajdas Lalchande & Calanche Irachande C.ª, no caso dos hindus, ou na Pradhan Babool & C.ª e na Noormahomed Rawjee & Co., no caso dos khojas). Posteriormente, tantas vezes com o apoio dos antigos patrões, dedicavam-se ao comércio ambulante entre Delagoa Bay e os arredores. Compravam-lhes mercadoria a crédito, trocavam-na por produtos agrícolas que lhes eram fornecidos pela população camponesa, vendiam-nos aos importadores/exportadores, pagavam as dívidas e voltavam a abastecer-se para regressarem ao mato. Passado algum tempo, trocavam o comércio ambulante pelo comércio cantineiro. A utilização do trabalho familiar (de irmãos mais velhos e mais novos e/ou de filhos ou sobrinhos varões, que eram progressivamente "chamados") permitia-lhes multiplicar as cantinas.

Tarun Laxmidas, neto de Popatlal Haribhai, fundador de uma das maiores e mais antigas firmas lohanas de Lourenço Marques, relatou-nos como os seus antepassados conseguiram enriquecer a partir do intercâmbio de produtos locais para exportação e, sobretudo, através do endividamento de milhares de camponeses moçambicanos que migravam para as minas da África do Sul:

Tinham várias cantinas em Xai-Xai, Alvor, Ressano-Garcia e em locais próximos do caminho-de-ferro para a África do Sul. Na altura, milhares e milhares de moçambicanos iam para lá trabalhar nas minas. Então, muitos africanos, antes de partirem, combinavam com o cantineiro indiano. Diziam aos familiares para comprarem naquela cantina e quando chegavam faziam os pagamentos. O meu avô e outros indianos davam esse crédito. Ganharam bom dinheiro e depois vieram instalar-se na rua atrás do bazar em Lourenço Marques10.

Mesmo em alturas de crise, como durante a recessão económica mundial de 1930, que afectou o número de migrantes a trabalhar fora de Moçambique, os cantineiros indianos não eram afectados, pois a administração colonial procurava renegociar um mínino de trabalhadores nas minas. Por acréscimo, ao neutralizarem a tendência para a emigração permanente, as várias convenções assinadas pelo governo português com a África do Sul diminuíam fortemente o risco de os cantineiros indianos não serem reembolsados. O próprio sistema de trabalho imposto (implementado depois de 1930 e até ao fim da década de 50), no qual a prática mais comum era pagar uma pequena percentagem (só uma sexta parte) do salário no local de trabalho, sendo o restante (depois de descontado o imposto) pago pelo administrador nos distritos de origem, favorecia o pagamento das dívidas contraídas pelo campesinato moçambicano ao cantineiro indiano.

O passo seguinte era a aquisição de um estabelecimento comercial em pequenas vilas (Xai-Xai, Ressano Garcia, etc.) e depois em Lourenço Marques; o conhecimento comercial, no que respeita aos circuitos de importação e exportação, adquirido enquanto empregados, ou como sócios minoritários de firmas pioneiras, a combinação do comércio urbano com o comércio cantineiro nos arredores, a diversificação das relações comerciais, bem como a gratidão, a admiração, a colaboração e a subordinação política à administração colonial, favoreciam a realização do sonho indo-britânico: ser comerciante geral, grossista, importador e exportador, comerciante de moeda (cambista) autorizado pelo regime e ainda banqueiro:

O meu bisavô Ayob Vakil era advogado na Índia, na região do Kathiavar, Junagath State, Vanthali. Um dos filhos dele, Abdool Latif, foi o primeiro a chegar a Delagoa Bay em 188711. "Em 1913, fundaram a Casa Coimbra, da firma Abdool Saccor, Abdool Latif e C.ª Era uma firma de venda a retalho que importava produtos de Inglaterra e sobretudo de Portugal, porque era onde tínhamos mais ligações. Em 1938-1939, compraram um terreno na Avenida da República. A nova Casa Coimbra foi inaugurada em 1940, com a presença do governador-geral Bettencourt. Mas já antes a nossa Casa tinha sido visitada pelo ministro das Colónias e pelo general Carmona12.

Nos anos 30 e 40, a Popatlal Haribhai e C.ª chegou a ter 17 sócios, todos da família próxima. Na altura, era considerada um império. Eram importadores e também vendiam ao público. Importavam sobretudo tecidos e confecções da Índia, do Japão, da China, de Inglaterra e de Portugal. Sobretudo de Portugal porque estávamos numa colónia portuguesa. Também fomos cambistas autorizados pelo regime13.

A emergência das primeiras grandes empresas indianas no Sul de Moçambique foi viabilizada, tal como no Norte, pela implementação de laços e trocas transnacionais (de mercadorias, pessoas, capitais) que envolviam os espaços de origem. Para além das transacções comerciais, os migrantes indianos mantinham outras relações com estes espaços: regressavam para se casarem e visitarem familiares, geravam novos descendentes, compravam terras, construíam novas casas, cumpriam obrigações rituais, realizavam peregrinações, preparavam "os documentos" para chamar mais parentes e conterrâneos, exibiam o estatuto material adquirido, promoviam o respeito associado ao seu nome exercendo funções universalísticas, para usar a expressão de Cohen (1981)14; no retorno, aproveitavam também as paragens dos navios em que viajavam para "visitar e falar de negócios" com co-étnicos residentes na costa leste africana, contribuindo activamente para a circulação de informações variadas; e, quando envelhecidos, retornavam definitivamente para serem enterrados e cremados nos locais de origem e aí receberem os rituais fúnebres adequados.

Todavia, sobretudo a partir da década de 30, temos notícia de que a Índia se tornou gradualmente menos importante. A deterioração da qualidade dos produtos indianos (e, em particular, dos têxteis), concomitante com a emergência de certos espaços economicamente mais rentáveis (na relação qualidade/preço), como o Japão, a China ou a Inglaterra, e a própria inclusão da metrópole colonial nos investimentos económicos das empresas familiares indianas, na sequência da implementação de fortes medidas proteccionistas, conduziram, em grande medida, a este afastamento económico em relação às origens:

A partir dos anos 30, os têxteis japoneses passaram a dominar as nossas importações. Eram melhores e mais baratos do que os indianos15.

Na altura, o Salazar fez uma lei que dizia que só se podia importar 25% de fora, os outros 75% tinham de ser de Portugal. Era uma lei proteccionista. Consoante os preços, nós importávamos do Japão, da China, de Hong-Kong, de Inglaterra e, claro, de Portugal16.

O meu avô e os meus tios importavam e exportavam para a Índia […] Mais tarde, a irmã do meu pai casou numa família de Mombaça, então essa família funcionava como intermediária para as nossas exportações e importações para o Quénia17.

Validando o ponto de vista de James Clifford segundo o qual as conexões transnacionais que ligam as diásporas não necessitam de ser articuladas através de um espaço de origem simbólico ou real (Clifford, 1994, p. 36), as memórias recolhidas apontam para a importância e influência crescente dos núcleos diaspóricos da costa oriental africana nas práticas transnacionais indianas, quer dos hindus, quer dos muçulmanos sunitas e de uma forma mais pronunciada dos ismaelitas. Em parte, os processos de reunificação familiar que se intensificam a partir de 1920 nas comunidades indianas sediadas em territórios sob administração inglesa são convergentes com testemunhos como o de Amad: "já não tinhamos lá [na Índia] ninguém de confiança que tomasse conta do lado indiano18." Os próprios processos de diferenciação e hierarquização identitária em marcha entre "indianos da Índia", "indianos de Moçambique" e "indianos da África oriental" (Bastos, 2005) e, nomeadamente, a progressiva depreciação dos parceiros indianos, associada a quebras repetidas de acordos verbais estabelecidos com base na confiança mútua, não favoreciam o negócio com as origens (Oonk, 2004). Sobretudo quando, em contrapartida, a experiência acumulada de relaciona mento comercial com indianos da costa oriental (sobretudo com os do Quénia, percepcionados como "os mais prósperos", "os mais instruídos", "os mais british") inspirava maior confiança. Até mesmo as medidas de "desindianização" e ocidentalização desenvolvidas por Aga Khan III e, entre elas, o estímulo à completa reunificação familiar fora da Índia, bem como a desaprovação da postura "um pé cá, um pé lá", ao contribuírem para que as conexões dos khojas com os seus locais de origem se extinguissem mais precocemente, suscitavam identificações ambivalentes em hindus e sunitas. Não obstante, como veremos, foram sobretudo as políticas coloniais de "combate económico" aos indo-britânicos que os obrigaram a alterar as suas relações com as origens.

 

Reagindo às políticas coloniais de "combate económico"

Justificando-se com a "crise de desemprego" existente na colónia, o governo de Moçambique estabeleceu em 193219 determinadas regras limitativas ao emprego de estrangeiros na colónia. Nos termos do artigo 5.º deste diploma legislativo, em todas as empresas ou sociedades comerciais, agrícolas e industriais ou outras singulares ou colectivas, pelo menos, 70% do seu pessoal "não-indígena" deveria possuir nacionalidade portuguesa. Por acréscimo, e de acordo com a mesma legislação, os indo-britânicos que saíam da colónia não poderiam regressar, a não ser que provassem que vinham ocupar o emprego ou a posição que haviam deixado em Moçambique. Para além disso, eram obrigados a formalidades complicadas (requerimentos ao governador-geral, certidões) e dispendiosas. Inclusivamente, as mulheres e os filhos dos indivíduos autorizados a entrar, apesar de isentos das formalidades previstas na lei, eram frequentemente obrigados ao seu cumprimento.

Contra tais medidas reclamaram diversos governos estrangeiros, sobretudo o de Inglaterra. Num período de depressão do comércio, as firmas indo-britânicas dificilmente poderiam admitir um número tão elevado de empregados portugueses. Por exemplo, uma firma média urbana, com um dono/gerente e com quatro empregados, todos indo-britânicos, para conseguir a percentagem legal ou admitiria 11 empregados portugueses adicionais (totalizando 16 pessoas, 30% estrangeiros e 70% portugueses) ou teria de despedir alguns dos seus empregados britânicos, admitindo o número requerido de nacionais portugueses.

Dado que a pressão política não apresentava resultados, os indo-britânicos começaram a desenvolver estratégias para contornar tais medidas. Algumas das grandes empresas (como foi o caso da Popatlal Haribhai e C.ª, da Prabusdas Binji e C.ª ou da Zacarias Hagiamad e Amod Moti e C.ª) davam sociedade não apenas a parentes próximos (irmãos, primos, cunhados), mas também, com uma pequeníssima quota, a empregados de confiança geralmente da "família distante", de tal maneira que estes, como sócios, muito embora estrangeiros, não contavam para efeitos de percentagem. Largamente implementada, tal estratégia levou mesmo à publicação de um despacho, em 1948, esclarecendo que se contava como pessoal empregado os sócios das firmas que nas mesmas desempenhassem efectivamente qualquer função, incluindo a de gerência. Em simultâneo, algumas médias e grandes empresas passaram também a empregar (mas apenas em lugares intermediários) indianos de origem indo-portuguesa (oriundos de Diu e de Damão)20:

Só no bazar Moçambique tinha 40 empregados […] Havia maneiras de contornar essas leis, sim. Por um lado, havia os de Diu e Damão que eram portugueses. E como os nossos filhos, os sobrinhos, já tinham nascido em Moçambique, eram portugueses. Utilizávamos esses nomes para contarem como empregados portugueses22.

Mais difíceis de superar foram as restrições e as formalidades que envolviam as entradas e os retornos à colónia. Concomitantemente, os indo-britânicos começaram a alterar as suas práticas de circulação em relação aos territórios de origem. O próprio padrão de migração masculina (com permanência das mulheres e dos filhos pequenos na Índia, acompanhado de visitas periódicas dos chefes de família) foi progressivamente abandonado23 e o número de casamentos entre cônjuges nascidos e residentes em Moçambique começou também a aumentar.

Os processos de reunificação familiar e de reterritorialização que desenvolveram, coincidentes com uma certa desvalorização socioeconómica da posição da Índia em termos negociais, contribuíram para o recrudescimento do seu investimento material e identitário em Moçambique. Não obstante, o modo como aproveitaram as relações comerciais interétnicas que entretanto foram construindo na colónia (quer com representantes de firmas portuguesas, metropolitanas ou locais, quer com estrangeiras) para diversificarem e até ampliarem os seus circuitos de importação/exportação mostra bem como os investimentos nacionais e as conexões transnacionais podem constituir processos inextricavelmente articulados.

 

Construindo redes transnacionais a partir de microlocalidades

Markovits (2000) problematiza a influência diferencial da pertença religiosa, hindu ou muçulmana, na iniciativa migratória dos gujaratis pioneiros em direcção ao Leste africano. Todavia, não temos qualquer evidência de que o suposto tabu hindu de atravessar as kala pani23 ou de que, de um modo mais amplo, a existência de conceitos diferenciados de pureza e impureza associados à viagem e ao contacto com novas ecologias tivessem inibido os hindus bhatias do Kutch de se estabelecerem em Zanzibar no mesmo intervalo temporal dos seus conterrâneos muçulmanos ismaelitas khojas. Por outro lado, mais interessado na performance comercial dos seus colaboradores do que na sua pertença religiosa, temos notícia de que o sultão de Oman se envolvia indiferenciadamente com muçulmanos e hindus, concedendo também a estes últimos cargos de importância política, como a recolha e fiscalização dos impostos.

Não constituindo um obstáculo maior à imigração, a existência de uma filiação religiosa comum não explica, no entanto, por si só, o percurso migratório dos pioneiros. Algumas das histórias de família recolhidas sugerem, com efeito, que as variáveis mais significativas se relacionariam, sobretudo, com recursos e atributos relacionados com a sua classe social de pertença:

O meu dada era conhecido como the king of rice. Era um grande importador/exportador de arroz. Tinha muitos negócios em Burma. Ele e os quatro irmãos que trabalhavam juntos. O meu pai contava que ele passava lá 6 meses, e outros 6 meses na Índia. Com o dinheiro que ganhou ofereceu um hospital que ainda hoje existe, em Jamnagar [...] Pelos serviços que prestou à coroa Britânica, recebeu uma medalha e passou a ser chamado Sir Jamal Sodagar. Como vê, a minha família fazia parte da high society, já na Índia. O meu dada, juntamente com Adamji Hajidaud, que era um grande industrial de Jutha de Bengal, e com Abdula Harun, um fabricante e comerciante de tecidos do Sindh, fundou a 1.ª associação mémom: a Memon Welfare Education Society24.

O mesmo extracto, convergente com outros testemunhos, indicia ainda que a existência de uma tradição migratória comercial associada a recursos e projectos de classe nem sempre era sinónimo de uma vivência mais ou menos prolongada em determinados centros urbanos costeiros (como Porbandar, Surat ou Mandvi) onde se desenvolvera uma espécie de cultura cívica mercantil (Markovits, 2000) caracterizada por uma forte interacção entre actores ligados a diferentes comunidades religiosas e de casta (gnati). Localidades pequenas, inseridas em áreas predominantemente rurais (do Kutch, por exemplo), ou cidades do interior (como Quetta) são evocadas por vários entrevistados como locais de origem de importantes subdiásporas comerciais gujaratis, quer de hindus (bhatias, lohanas), quer de muçulmanos (khojas, bohras ou sunitas memons).

À cultura mercantil prévia de alguns dos migrantes gujaratis desenvolvida a partir de localidades de pequena e média escala (quer interiores, quer costeiras) é necessário articular, porém, outras dimensões, sem as quais dificilmente se poderá compreender o percurso migratório de um segmento muito significativo dos pioneiros. Nos séculos XIX e XX, um jovem gujarati pertencente a uma determinada casta (bhatia ou mémom, por exemplo) ou a uma comunidade religiosa (bhora ou ismaleita khoja, nomeadamente) com tradições migratórias, experiência internacional na importação/exportação e no manejo das relações familiares e comunitárias a longa distância, mesmo que fosse iletrado e oriundo de uma família pobre, tinha decerto uma maior probabilidade de se iniciar nas kala pani, de obter emprego numa casa comercial e, inclusive, de estabelecer a sua empresa familiar passados alguns anos.

Tal como determinadas localidades, também certas comunidades de casta e etno-religiosas de pertença funcionavam como uma importante fonte de identificação competitiva e mimética entre os seus membros, revelando uma notória capacidade no que respeita à circulação interna de experiências, conhecimentos acumulados e informações actualizadas, quer espacialmente (entre várias localidades no interior da Índia, mas também entre estas e os seus elementos sediados em vários destinos migratórios), quer temporalmente, entre várias gerações. Muito efectivas na mobilização migratória, estas redes (parcialmente reconstruídas nos locais de destino) forneciam hospitalidade inicial, um emprego por conta de outrem, iniciação num conhecimento prático (e, ao fim de alguns anos, nos próprios "segredos" do negócio) ou ainda, tantas vezes, um apoio inestimável à autonomização empresarial do migrante.

 

A difusão de um modelo empresarial familialista

O sonho do meu pai era construir algo para nós, como uma família, e queria que fosse independente. Não queria que fôssemos mandados. Sempre nos meteu na cabeça aquele lema: "Não sejas empregado de ninguém25."

Muito embora testemunhos como o anterior pareçam corroborar a explicação estrutural segundo a qual as oportunidades bloqueadas resultantes da experiência da discriminação (Phizacklea e Ram, 1996; Mulholland, 1997) constituiriam a força motriz das inciativas empresariais indo-britânicas, o negócio da família constituía uma estratégia já testada e consolidada de crescimento económico, partilhada por diferentes grupos de comerciantes, quer hindus, quer muçulmanos.

Se bem que o objectivo fosse reunir duas gerações de homens adultos ligados por laços de parentesco — pai e filhos varões, vários irmãos e respectivos filhos varões, no modelo mais habitual —, "trabalhando juntos" no mesmo negócio, o modo de o atingir comprendia várias fases. Geralmente, a experiência migratória prévia de um familiar próximo interpelava primos e irmãos a tentarem a sua sorte no mesmo ou em diferentes territórios. Movimentos de dispersão familiar (para exponenciar oportunidades e/ou para contornar barreiras legislativas à emigração em determinados territórios), movimentos de reunificação familiar parcial (sobretudo quando um dos varões montava um negócio por conta própria, chamando então irmãos e primos), movimentos de refragmentação familiar (com vista à multiplicação das sucursais da empresa-sede e à criação de uma cadeia de cantinas em zonas rurais que garantissem o negócio da permuta), pautavam frequentemente a emergência da empresa familiar.

Irmãos (e até primos) com idades similares à do(s) fundador(es) eram habitualmente considerados sócios, mas um irmão mais novo, um filho ou um sobrinho deveriam "começar por baixo": primeiramente, e tantas vezes, como aprendizes de empresas de "famílias conhecidas ou amigas", onde adquiriam conhecimentos, experiência, contactos e redes de influência valiosos; posteriormente, como empregados das empresas das suas famílias. A estratégia partilhada assente no "começar por baixo" (pelos trabalhos mais baixos e indiferenciados), a que se seguia a atribuição progressiva de lugares de responsabilidade (guarda-livros, por exemplo) até à gerência (primeiro sem sociedade e posteriormente com uma pequena quota), prendia-se quer com objectivos de aprendizagem, quer com a construção de uma identificação com o esforço do(s) fundador(es) do negócio da família, ao mesmo tempo que funcionava como uma prova de que o futuro sócio, apesar do seu laço de parentesco, merecia o privilégio de herdar e gerir. A narrativa seguinte deixa entrever como os valores de distância hierarquizante, respeito e obediência dos mais novos face às gerações parentais garantiam a eficácia de tal estratégia, viabilizando não apenas a sua continuidade, como o próprio aumento do processo de enriquecimento:

Mesmo comigo, o meu pai disse: vais começar a trabalhar por baixo de alguém. Tens de aprender a ser guarda-livros. Quem não é guarda-livros, nunca poderá ser um grande comerciante. E eu disse-lhe que não gostava de negócios, que queria ser advogado, que queria estudar Direito. Mas o meu pai nunca deixou. Ele sempre dizia: para quê, para seres empregado de outros; ser empregado tem limite de vencimento, comerciante, não. Fiz-lhe a vontade e ajudei-o a construir o império da família26.

Em paralelo, gerir uma empresa familiar implicava entrosar uma dose indispensável de racionalidade económica com várias estratégias de relação entre os familiares envolvidos: entre irmãos, mas também entre pai e tios, filhos e sobrinhos, sócios com a mesma ou com diferentes quotas na sociedade, usufrutuários ou não dos mesmos lucros, diferenciados no imaginário hierárquico microfamiliar, bem como na sua performance, grau de autonomia e proeminência empresarial. Com efeito, a divisão em proporções iguais do capital e dos lucros pelos vários sócios, quando ocorria, não invalidava o desenvolvimento de processos de diferenciação interna em função do grau de participação de cada sócio (sócios gerentes com vencimento proporcional versus sócios sem actividade, por exemplo), das competências empresariais reconhecidas, bem como de critérios de distribuição de tarefas, ramos e responsabilidades de negócio, sobretudo quando a empresa atingia um grau significativo de crescimento, diversificação e transnacionalismo. Não obstante, o respeito intergeracional determinava, muito frequentemente, que fosse pedido ao pai (mesmo quando envelhecido) ou ao irmão mais velho (independentemente da sua centralidade empresarial) o "consentimento final" para os negócios:

O big boss era o meu tio Esmael, o mais velho, era ele que dava o consentimento final mas a cabeça era o meu tio Bashir. Cada irmão tinha as suas responsabilidades nos negócios, cada um tinha o seu ramo. O outro meu tio era o bon-vivant da família [...] Quando eu nasci, o meu dada já não queria saber dos negócios, toda a sua vida era para ajudar os mais desfavorecidos. Ele obrigava todos os netos a comerem com os pobres27.

Uma das dimensões de maior vulnerabilidade deste projecto manifestava-se quando morria o pai ou um dos irmãos fundadores. Associada à multiplicação de herdeiros, esta situação despoletava muito frequentemente conflitos, decorrentes da saída e/ou da introdução de novos sócios, da compra, venda e redistribuição de quotas (tantas vezes em proporções desiguais), da implementação de novos critérios de gestão (como o da hierarquização de vencimentos e dos lucros em função da participação e responsabilidade dos herdeiros). Em muitos casos culminava na própria dissolução das sociedades, mas dava origem à fundação de novas empresas familiares. Apesar desta vulnerabilidade cíclica, reconhecida pelos próprios agentes, o modelo do negócio da família reproduzia-se, renovado, geração após geração.

Noutras situações, nomeadamente quando os futuros empresários não possuíam uma experiência e cultura empresarial prévia à migração, passavam geralmente mais anos a trabalhar para estes e a identificar-se com eles antes de iniciarem o seu negócio de família. Os primeiros cinco a sete anos, consoante os casos, serviam para poupar algum dinheiro (inclusive para enviar para Índia), para angariar conhecimentos e experiência no negócio, para obter a confiança dos patrões (nem sempre da mesma casta e religião) e de muitos dos seus fornecedores e clientes, aos quais, na fase seguinte, já como cantineiro ou como pequeno comerciante urbano, pediria crédito (em mercadoria e em dinheiro), e ainda para aprender (e, mais tarde, recriar) uma mesma cultura empresarial.

Se um filho ou um sobrinho deveriam começar por baixo, por maioria de razão, aos empregados eram atribuídos os trabalhos mais duros (carregar e descarregar mercadorias, transportar produtos agrícolas num burro, negociar o preço do caju em locais inóspitos), bem como tarefas muito polivalentes (vender produtos, cozinhar para o patrão, tratar da limpeza dos armazéns e das lojas), em troca de um salário mínimo e de um alojamento nas traseiras ou em barracões construídos nos quintais das casas dos patrões. Por outras palavras, exigia-se-lhes uma dedicação quase total ao patrão, ao seu negócio e às suas necessidades pessoais. Começar "por baixo" significava, deste modo, começar por baixo de alguém. E isto incluía múltiplas práticas que visavam "rebaixar" e "humilhar" propositamente o empregado (acusações de roubo e de faltas não cometidas, castigos sob a forma de cortes no salário, etc.) para lhe relembrar a sua posição subordinada28:

Um dia, o patrão ralhou muito com o meu avô, porque ele não tinha cozinhado como ele queria. Veio-se embora sem fazer contas e com vários salários em atraso. Nunca mais quis saber dele, nem das lojas dele. Os vania, sobretudo os de antigamente, gostavam muito de rebaixar os empregados.29

Nos anos 30, o meu pai teve muito prejuízo, dívidas de várias lojas. Problemas com os empregados. Eu sempre dizia a ele: temos de tratar bem os empregados, para que eles não tenham aquela vontade de abusar e para evitar a competição. Mas o meu pai não pensava assim. Rebaixava muito a eles30.

Não obstante, depois de demonstrada a honestidade, fidelidade e a gratidão do empregado, o patrão poderia tratá-lo "como se fosse um filho", ajudando-o a montar o seu negócio (através de um empréstimo inicial, de um crédito em mercadorias, da utilização do seu nome e de conhecimentos para que lhe fosse concedida uma licença comercial). Em simultâneo, a recriação progressiva de padrões familialistas entre patrões e empregados contribuía para a reputação da empresa, como promovia, nos empregados e potenciais competidores sentimentos de dívida e gratidão que garantiriam o respeito de certas regras deontológicas entre empresas rivais.

 

O contributo das mulheres migrantes na construção de uma cultura transnacional

The veil of dishonour foisted on Indian indentured women has been lifted [Lal, 1998, p. 231].

Apesar de terem sido poupadas às acusações de más mães e de conduta imoral enquanto esposas, veiculadas por múltiplas fontes coloniais acerca das mulheres indianas que migravam através de um contrato de trabalho, a agencialidade daquelas que concretizaram projectos migratórios no contexto do crescimento capitalista e urbano dos territórios da costa oriental de África com o intuito de se reunirem aos maridos não assalariados nem sempre é devidamente contemplada na investigação disponível. Tantas vezes concebidas como isoladas (profissional, linguística e culturalmente) dos respectivos contextos migratórios, são apenas responsabilizadas pela manutenção das ligações com os espaços de origem, pela conservação da referência do jati31 e pela reprodução de tradições religiosas e culturais de referência.

Todavia, e apesar de não participarem activamente no negócio da família, o seu desempenho nas empresas familiares não é, contudo, negligenciado nas memórias recolhidas. As estratégias de contenção e a resolução dos conflitos (reais ou potenciais) entre mulheres da mesma família de aliança (coabitantes ou não) sem contaminação das relações de consaguinidade masculinas, a transmissão aos filhos varões da acção empreendedora dos seus pais e tios, bem como da importância de darem continuidade aos seus projectos, o incutir constante de valores de esforço, trabalho e sacríficio aos descendentes, o seu papel como mediadoras privilegiadas nos casamentos das gerações emergentes, ou até o modo como algumas estimularam a educação das novas gerações e, por consequência, contribuíram para modernizar algumas empresas familiares, são aspectos repetidamente evocados (Bastos e Bastos, 2006).

Outras memórias vão ainda mais longe, sublinhando o seu desempenho como gestoras de relações com familiares de referência estabelecidos no mesmo ou noutros territórios migratórios. Muito embora, de acordo com o sistema de valores reconstruído, a posição de sócio num negócio de família só pudesse ser ocupada por um número limitado de parentes (pai, tios paternos, irmãos, filhos e filhos de irmãos), o sogro e os irmãos e primos da mulher ou outros parentes das esposas constituíam um recurso empresarial não desprezível. A ajuda financeira directa numa altura de crise, os empréstimos de capital numa fase inicial ou de ampliação do negócio, informações e aconselhamento sobre novas oportunidades de investimento, utilização do nome, prestígio empresarial e rede de influências de tal familiar para obter uma licença, um empréstimo bancário ou a confiança de um fornecedor ou cliente, as possibilidades de transnacionalização através de importações/exportações vantajosas para ambas as partes ou até pedidos de emprego para membros da família "próxima" e "distante" nas empresas de familiares das mães, noras, irmãs e filhas constituíam situações frequentes. Também nestes momentos, a diplomacia feminina era fundamental para que nenhum dos seus familiares masculinos, de aliança ou de referência, se sentisse "humilhado".

Gestoras, locais e à distância, de relações familiares que indirectamente interferiam com as empresas das suas famílias, as mulheres dos pioneiros exerceram também um papel determinante na implementação de mecanismos de controlo social e na própria construção e reprodução das comunidades etno-religiosas de pertença. Deste modo, para além de reforçarem o projecto de pessoa familiar (Lima, 2003) no qual sujeito, família e empresa se sobrepunham e confundiam, aumentavam um capital único, o "respeito" associado ao nome da família, aquela reputação que persistia mesmo em momentos de crise e constituía um ingrediente indispensável nas transacções comerciais baseadas na confiança mútua.

 

Estratégias de abertura e confiança interétnicas

Ao contrário de algumas teorizações sobre enclaves e minorias intermediárias segundo as quais as empresas familiares étnicas estariam forçadas a uma posição marginal e periférica, porque voltadas sobretudo para co-étnicos, a cultura empresarial indiana implementada em Moçambique pode ser também caracterizada pela emergência e reprodução de um conjunto partilhado de estratégias de abertura interétnica que constituíam, aliás, a força motriz da sua vitalidade económica:

O cliente negro mandava tirar tudo, para ver, e depois não levava. E o indiano tinha mais paciência, desarrumava, voltava a arrumar, porque queria clientes. Muitos também davam crédito e até faziam trocas. O branco, o português, não tinha paciência. Por isso, a maioria dos negros preferia comprar nos estabelecimentos indianos. Depois, o branco insultava, chamava nomes, ralhava ou batia ao empregado negro. O indiano raramente32.

O tratamento também variava em função da posição social e do grau de educação do negro. Por exemplo, se o negro era régulo, se era chefe tradicional ou se era nduma, o indiano tratava-o de uma maneira diferente, dava-lhe um tratamento de marketing, porque o hindu sempre coloca os seus interesses comerciais em primeiro plano. Como alguns chefes tribais e régulos influenciavam os nativos sob a sua jurisdição, podiam encaminhá-los para a cantina de determinado indiano e afastá-los da cantina de outro comerciante33.

O número de africanos que o iam visitar impressionou-me. Eles falavam entre si e depois cada um deixava dinheiro em cima do baú. No fim, perguntei-lhe: dada, o que é que estão a fazer? E ele disse: todos estes homens que aqui vêm são doutores em feitiçaria. Vêm pedir-me que os proteja dos outros feitiçeiros. Eles acreditam que só eu os posso proteger. E por isso pagam-me. Se não me pagassem, não se iam sentir protegidos34.

Independentemente da sua filiação religiosa, os migrantes indianos aproveitavam-se da reduzida familariedade dos nativos na execução das transacções comerciais. Utilizavam, nas suas próprias palavras, "estratégias de marketing", agindo como fornecedores de créditos e depositários das suas economias ou quando visavam ganhos comerciais face à concorrência crescente. Alguns mobilizavam ainda o seu "poder" de compreensão, comunicação e acção sobre as linguagens nativas em benefício pessoal. Não obstante, as memórias recolhidas obrigam a complexificar a posição do "estrangeiro", desafectado e movido exclusivamente por estratégias de objectividade e oportunismo mercantil, atribuída por vários cientistas sociais aos elementos das minorias étnicas intermediárias (Turner e Bonachi, 1980):

Vivi sessenta anos em Moçambique. Fartei-me de ver ricos que se afundaram e pobres que enriquecerem de um dia para o outro […] O que fica é o nome, o respeito que uma pessoa merece, que também é uma dádiva de Deus. Mas que também se ganha a ajudar os pobres, os indígenas, os mistos, sem fazer distinção de raça35. Os pretos ou os mistos não eram equiparados a nós, mesmo dentro da comunidade. Só que os bons muçulmanos sabem que o orgulho é muito mau, eu sou rico, você não é ninguém, você não sabe, você não presta porque é preto, isso é muito mau36.

Isto passou-se em 1890 e tal. O meu nana (avô materno) era um homem rico e, por isso, tornou-se muito orgulhoso. Um dia, quando voltava do rio, encontrou um homem com pele escura. Mas foi muito orgulhoso na maneira de falar. E aquele senhor disse-lhe: eu sou uma pessoa especial. Isso é que tu não sabes. Em vez de o respeitar, o nana pediu provas. Logo, logo, Mahatma Bapa abanou uma árvore e caiu ouro. Depois de várias provas, o nana ajoelhou-se aos seus pés e disse: não vou ser mais orgulhoso. Não quero mais dinheiro. Quero ajudar as outras pessoas37.

Como temos vindo a argumentar, o islão indiano, tal como o hinduísmo, reconstruídos e vividos em Moçambique, constituíram um mecanismo de controlo e de reforço das exigências míninas de reciprocidade no plano interétnico (Bastos, 2007), nomeadamente quando difundiam visões do mundo de acordo com as quais a própria abertura não arrogante e generosa face ao "inferior" era concebida como uma fonte cumulativa de poder tanto no plano material como em termos de reputação identitária. Não obstante, outras razões justificavam, complementarmente, que o camponês ou o mineiro moçambicano merecessem a hindus e muçulmanos um tratamento "diferente", ainda que assimétrico.

Assente num conjunto de pressupostos ontológicos partilhados por nativos38 e indianos, a explicação do sofrimento, inexplicável como uma agressão mágica causada por acções desencadeadas pelos próprios sofredores (por excessos desqualificantes e/ou humilhantes na relação com o "inferior", nomeadamente), reforçada pela atribuição aos especialistas autóctones de um sobrepoder de interferência nos processos de influência mágica, parece ter exponenciado a preocupação gujarati com o cumprimento de certas exigências mínimas de reciprocidade:

Não se podia tratar mal o preto, porque eles sabem fazer feitiço para matar39.

O preto só disse: tu vai ver… Pouco tempo depois, a filha desse indiano morreu. Só tinha 13 ou 14 anos40.

É sempre a inveja. Ainda hoje estou a sofrer por causa da inveja dos pretos. Não se pode causar inveja nos outros41.

Esta preocupação quase obsidiante com o "outro" maximizava-se, contudo, na relação com o "domínio branco". Conscientes de que a sua segurança identitária e prosperidade económica em Moçambique dependiam de serem considerados estreitos colaboradores do regime, os indo-britânicos, em particular as suas elites, forneciam continuadamente ao Estado português "provas" de abertura interétnica, gratidão e subordinação política. Entre as mais insistentes destacavam-se: a confirmação da tolerância económica, racial e religiosa como traço distintivo (e superiorizante) do império colonial português; a ênfase "na amizade e na colaboração fraternas, que ligavam indianos e portugueses, em prol de uma mesma pátria lusitana"42; a utilização frequente (quer por hindus, quer por sunitas e ismaelitas) de vocábulos e de estilos discursivos prevalecentes na ecologia religiosa dominante e o recurso insistente à própria tradução de crenças, cerimónias, figuras divinas muçulmanas e hindus em equivalentes católicos; uma postura ambivalente que combinava, em graus diferentes, mimetismo exterior (Bhabha, 1994) e identificação incorporativa em relação à "cultura portuguesa"; sobretudo, a negação de qualquer projecto político organizado de luta anticolonial.

Contestando o que Gosden e Knowles têm vindo a definir como "cultura colonial em denegação" (2001, p. 10), isto é, um modo dominante de representação de sociedades coloniais pautado pela existência de interacções e trocas entre diferentes grupos sociais (raciais, socioeconómicos, etno-religiosos), mas, em simultâneo, caracterizado pela ausência de uma representação conjunta que reconheça estas mesmas interacções e trocas, múltiplas memórias de indianos de Moçambique enfatizam, pelo contrário, o relacionamento quotidiano com os baglás (à letra "brancos"), tanto nos centros urbanos como nas zonas rurais, patente nas relações comerciais "com base na confiança mútua, porque não havia nada escrito", nas relações na escola colonial (onde alguns entrevistados se sentiram discriminados), mas da qual retêm memórias do "convívio entre garotos indianos, portugueses, negros e mulatos", inexistente "fora da escola, onde cada um se fechava na sua raça"); relações de cumplicidade com sócios portugueses para contornar algumas restrições colocadas ao investimento indiano (no sector industrial, nomeadamente); mas ainda relações interpessoais de "amizade", que "não eram possíveis no Uganda, no Quénia e muito menos na Rodésia e na África do Sul".

 

Constrangimentos coloniais: reterritorialização e transnacionalismo

Descendentes e antigos empregados da Ranchordas Oddha & Co., da Haridas Damodar Ananji & Co. ou da Gorbandas Vallabdas & Co., da Damodar Manglagy & Co. mas também da Gulamhusem & Co. e da Tharani & Co. recordam como o período da guerra interrompeu alguns dos circuitos de importação e exportação, afectando nomeadamente o negócio do caju. Não obstante, logo no início dos anos 50 registou-se no mercado mundial um aumento da sua procura (acompanhado da subida de preço), o que reactivou a permuta entre cantineiros, armazenistas e exportadores. Por acréscimo, para as firmas que importavam sobretudo a partir de Portugal, bem como para os principais cambistas indianos de Lourenço Marques, o período da segunda guerra correspondeu a uma fase de acentuado enriquecimento. A posição neutral assumida pelo governo português e, por corolário, a manutenção das rotas de navegação de muitos navios portugueses, o aumento da procura de certos bens pelos países envolvidos na guerra e a subsequente subida dos preços, bem como o afluxo de moeda estrangeira aos portos moçambicanos, não só reforçaram o capital económico e o prestígio de algumas das grandes firmas e famílias indianas pioneiras, como viabilizaram a expansão de novas empresas familiares:

Portugal era neutral e os navios portugueses podiam circular à vontade, eram livres. O que acontecia é que com a guerra houve um grande aumento da procura de mercadorias pelos países envolvidos. Como faltava mercadoria, os preços subiam43.

Na altura da guerra, Portugal era neutral e por isso muitos barcos paravam no porto de Lourenço Marques. Por isso havia muita moeda e muito câmbio44.

Caracterizado pela prosperidade, o pós-segunda guerra foi, contudo, marcado pela independência da Índia, pela partição Índia/Paquistão, bem como por um agravamento progressivo das relações entre Portugal e a União Indiana, que culminou na invasão da Índia portuguesa em 1961. Pressionado pelo poder político, bem como por determinados sectores da população portuguesa, o então governador de Moçambique determinou o "internamento" dos súbditos de nacionalidade hindustânica, o "encerramento das suas firmas comerciais e residências" e, posteriormente, a sua "expulsão".

Na prática, tais medidas atingiram sobretudo as comunidades hindus, em que predominava a nacionalidade indiana. Com efeito, até à independência da Índia, os indianos não portugueses eram considerados súbditos ingleses e possuíam documentos comprovativos dessa condição. A partir da criação da União Indiana e do Paquistão, foram pressionados a documentarem-se ou como indianos ou como paquistaneses. Uma parte importante dos muçulmanos escolheu a nacionalidade paquistanesa e a maioria dos hindus a nacionalidade indiana, muito embora um número significativo dos seus descendentes, já nascidos em Moçambique, tenha sido registado como portugueses. Em virtude da aliança política entre o Paquistão e Portugal, a maioria da população muçulmana sunita, tal como a ismaelita (protegida pelas relações existentes entre o seu líder Aga Khan e os governantes portugueses), não foram fustigadas pelas medidas de internamento, liquidação de bens e expulsão.

Pelo contrário, um número muito significativo de hindus foi realmente expulso, muito embora importantes firmas hindus de exportação e importação não tenham sido encerradas (nomeadamente as de Haridas Damodar Anandji, Dayaram Gopaldas, K. B. Kakobhai ou Prabusdas Binji). Por acréscimo, entre 1961 e 1963, dezenas de gerentes e subgerentes das firmas pertencentes às elites hindustânicas (em Porto Amélia, Quelimane, Nampula, António Enes, Nacala, Lourenço Marques, Beira, etc.) viram esta ordem anulada, em virtude de a sua saída inviabilizar "o funcionamento de firmas fundamentais para os interesses da província"45.

A ambivalência demonstrada pelas autoridades coloniais portuguesas em relação aos indianos, ora fornecendo-lhes protecção quando daí retiravam vantagens económicas e até políticas, ora utilizando-os como bodes expiatórios em períodos de crise e de exarcebação do nacionalismo, acabou por reforçar nas comunidades de origem indiana a importância dos investimentos e . Também por isso, e não obstante politicamente resguardadas, muitas das empresas familiares incrementaram as suas práticas de transnacionalismo a partir dos anos 60, investindo em Goa e no Paquistão, em territórios africanos vizinhos, como o Quénia, a União Sul-Africana, o Tanganica, bem como na Europa, apoiadas, tal como no passado, por redes de familiares que forneciam informações sobre as melhores oportunidades de negócio, ou se constituíam como intermediários, sócios ou gerentes locais dos negócios sediados no estrangeiro. Contudo, ao mesmo tempo que funcionavam como uma precaução (face a um aumento da conflitualidade racial, a conjunturas políticas desfavoráveis), os investimentos transnacionais representavam sempre algum risco, sobretudo no contexto dos processos de independência e africanização que caracterizaram o Leste africano a partir da década de 60.

 

Notas conclusivas

Como sublinha Tololyan, "as diásporas têm vindo a ser idealizadas como comunidades transnacionais exemplares, abertas, porosas, cosmopolitas […] desterritorializadas e, deste modo, capazes de fornecer — mas não de impor, como fazem os Estados-nações, aos seus cidadãos/súbditos — identidades flexíveis e múltiplas" (2000, p. 112). Distanciando-nos em parte desta idealização (e das antinomias conceptuais que lhe subjazem), procurámos analisar as práticas transnacionais dos indo-britânicos que se estabeleceram em Moçambique, bem como os seus investimentos e estratégias de reterritorialização enquanto processos estreitamente relacionados. Enfatizámos, em paralelo, que a compreensão de tais processos exige uma articulação sistemática entre as agencialidades e os recursos dos actores migrantes envolvidos com as políticas nacionais (e suas variações), bem como com as próprias circunstâncias internacionais. Nem os actores (apoiados nos seus múltiplos recursos) constroem e reconstroem autonomamente experiências transnacionais nem os Estados e as relações internacionais produzem automaticamente processos de ressedentarização ou de transnacionalização (Waldinger e Fitzgerald, 2004).

Problematizando, sobretudo, a influência da filiação religiosa, da etnicidade e dos recursos de classe quer na reconfiguração das práticas transnacionais desenvolvidas pelos pioneiros indo-britânicos em Moçambique, quer nas suas estratégias de integração nacional, destacámos a existência de uma cultura migratória e mercantil prévia centrada em certas microlocalidades, a qual atravessava diferentes comunidades de casta e várias identidades étnico-religiosas, uma cultura caracterizada por uma notável capacidade de circulação (de informações, bens, créditos, homens e até, posteriormente, mulheres) no interior de redes que combinavam um grau de fechamento (assente em laços de parentesco, de casta e/ou de comunidade) com uma dose significativa de abertura interétnica.

Como argumentámos, foi sobretudo ao nível das relações interétnicas que os repertórios religiosos de orientação ofereceram recursos indispensáveis aos processos de reterritorialização, os quais, por extensão, não só não funcionaram como uma tendência antagónica, como potenciaram as ambições e opções transnacionais dos passengers gujaratis. Com efeito, ao questionarem a existência de relações de poder estanques e irreversíveis (em particular, as baseadas na cor da pele e no poder económico) e condenarem processos de fechamento e de hierarquização excessivos, quer o islão indiano, quer o hinduísmo vividos em Moçambique viabilizaram (legitimando também no plano religioso) as múltiplas interacções e trocas quotidianas entre indianos e africanos, indispensáveis ao negócio da permuta, fonte principal da prosperidade indiana.46

De outro ângulo, e apesar de a filiação religiosa, hindu ou muçulmana, não constituir uma influência significativa na cultura empresarial indiana, a relação diferencial que as autoridades coloniais portuguesas mantinham com hindus, sunitas e ismaelitas desempenhou um papel importante nas práticas de transnacionalismo que se desenvolveram, em particular, a partir da década de 60. Embora os sunitas de origem indiana tenham sido perioridicamente encarados como uma fonte potencial de transmissão de "ideias subversivas", a obsessão com o suposto nacionalismo hindu, enquanto "inimigo" do sonho imperial a partir de 1961, confirmou (sobretudo a estes últimos e aos seus descendentes) a importância das conexões e dos investimentos multilocais. Neste sentido, a própria ambivalência colonial em relação à presença indiana acabou por contribuir para a renovação de saberes e estratégias de circulação e de relacionamento interétnico que voltariam a ser cruciais nas decisões e nos investimentos pós-coloniais dos indo-moçambicanos.

 

 

Fontes e Bibliografia

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Notas

1 O conceito de transnacionalismo imigrante emergiu nas ciências sociais através do trabalho Towards a Transnational Perspective on Migration (1992), de Schiller, Basch e Blanc-Szanton. Apesar da variedade de perspectivas em que tem vindo a ser utilizado (forma de "organização social", "tipo de consciência", "modo de produção cultural", reconstrução da "localidade", etc.), uma parte significativa dos cientistas sociais concorda que o conceito de transnacionalismo se refere às múltiplas interaccções e trocas que atravessam as fronteiras dos Estados-nações, ligando pessoas e instituições (Vertovec, 1999).

2 Os bhatias constituem uma casta hindu do Gujarat. No século XVIII começaram a deixar Jamnagar e sobretudo o porto de Mandvi, no Kutch, em direccção a Bombaim para participarem no comércio do oceano Índico. Segundo Salvadori (1989), foram provavelmente os primeiros comerciantes hindus a estabelecerem-se (com as respectivas mulheres) em Zanzibar.

3 Existe alguma evidência de que terá sido o Pir Sadardin (Sadr-al-Din) quem converteu muitos comerciantes hindus, de casta lohana, do Sindh e do Gujarat, ao ismaelismo nizari durante o século XIV. Ao longo do século XIX, os ismaelitas de origem indiana, também conhecidos por khojas, tornaram-se uma das mais poderosas comunidades mercantis do Leste africano. É geralmente reconhecido que a sua expansão e sucesso derivaram de um investimento empresarial no seio de uma comunidade diaspórica organizada orientado por um imã "presente e vivo".

4 O negócio do cantineiro incluía a aquisição e transporte de vários tipos de produtos (caju, amendoim, algodão, milho, etc.) cultivados pela população nativa em direcção aos centros urbanos. Os cantineiros também vendiam aos nativos capulanas (roupas tradicionais) e outros têxteis, bens de primeira necessidade (querosene, facas, martelos) e o chamado "vinho colonial", que compravam, tantas vezes a crédito, aos comerciantes urbanos.

5 Santilal Jatha, hindu, de casta khania, comerciante, entrevistado em Maputo.

6 Mahendra, hindu, de casta brâmane, empresário, entrevistado em Maputo.

7 Zainu Labedin Rawjee, ismaelita, director da Delta Trading Corporation e sócio maioritário do ISCTEM (Instituto Superior de Ciências do Trabalho e Empresa de Mozambique), entrevistado em Maputo.

8 Zainu Labedin Rawjee — v. nota 7.

9 Uma das mais antigas empresas sediadas em Delagoa Bay, pertencente a dois irmãos vania de Diu.

10 Tarun Laxmidas, hindu, de casta lohana, neto de Popatlal Haribhai, sócio da Popatlal Haribhai & C.ª, bem como da Lacxmi Newshy & C.ª, entrevistado em Lisboa e Maputo.

11 Rafik Hajee, muçulmano sunita, bisneto de Abdool Rehman Ayob Vakil, fundador da Abdool Saccor, Abdool Latif and Co.; actualmente, sócio gerente da Casa Coimbra, entrevistado em Maputo.

12 Abdool Suleman, muçulmano sunita, bisneto de Abdool Sacoor Ayob Vakil, fundador da Abdool Saccor, Abdool Latif and Co.; actualmente, sócio gerente da Casa Coimbra, entrevistado em Maputo.

13 Tarun Laxmidas — v. nota 10.

14 Através de ajudas materiais a familiares, mas ainda de contribuições destinadas às comunidades de casta, ao financiamento de templos e mesquitas, e das doações às localidades sob a forma de hospitais, orfanatos, etc.

15 Sunderji Nanji, hindu, de casta lohana, empresário, entrevistado em Lisboa.

16 Jamal, muçulmano sunita, empresário reformado, residente em Inglaterra desde 1992, entrevistado em Leicester e em Lisboa.

17 Tarun Laxmidas — v. nota 10.

18 Amad, muçulmano sunita, contabilista reformado, residente em Inglaterra desde 2002, entrevistado em Leicester e em Lisboa.

19 Cf. diploma legislativo n.º 352 de 23 de Julho de 1932.

20 A partir da segunda metade do século xix assistimos também a um fluxo de indo-portugueses em direcção a Moçambique, nomeadamente de hindus oriundos de Diu e de sunitas de Damão. A maioria veio para trabalhar como pedreiros nas infraestruturas coloniais.

22 Os indo-portugueses (quer hindus, quer sunitas) mantiveram um contacto mais duradouro com os seus territórios de origem e o padrão de migração masculina, uma vez que estavam imunes a tais medidas.

23 Literalmente, "águas escuras"; trata-se de uma expressão muito utilizada para referir a viagem marítima.

24 Babu — v. nota 21.

25 Mahendra — v. nota 6.

26 Babu — v. nota 21.

27 Moshin, muçulmano sunita, neto de Aboobbakar Bava, residente em Inglaterra, entrevistado em Leicester e em Lisboa.

28 Para estes, o trabalhar por conta própria numa unidade económica familiar independente era concebido como uma alternativa à experiência de discriminação intra-étnica.

29 Kumar Premgi, hindu, de casta khania, comerciante, entrevistado em Lisboa.

30 Babu — v. nota 21.

31 Jati ou gnati são os termos gujaratis para casta.

32 Chagan Lala, hindu, de casta fudamiá, consultor jurídico, residente em Moçambique, entrevistado em Maputo.

33 Latichandra, hindu, de casta surti, industrial, residente em Moçambique, entrevistado na Matola.

34 Jassat, muçulmano sunita, advogado, residente em Inglaterra, entrevistado em Leicester.

35 Gulamo, muçulmano sunita, empresário reformado, entrevistado em Lisboa.

36 Bashir, muçulmano sunita, empresário reformado, entrevistado em Lisboa.

37 Laxmi Premgi, hindu, de casta fudamiá, entrevistada em Lisboa. Trata-se de uma versão resumida sobre a criação do santuário hindu de Salamanga em 1908 no Sul de Moçambique.

38 A hipótese de que também os autóctones utilizavam os mesmos pressupostos ontológicos para desenvolverem estratégias de resistência simbólica contra os indianos que se estabeleciam no sertão foi explorada em Bastos (2007).

39 Sithala, hindu, de casta lohana, proprietária de supermercado, residente em Moçambique, entrevistada em Sommerchield e em Maputo.

40 Motiben, hindu, de casta vanja, comerciante, residente em Inhambane, entrevistada em Lisboa.

41 Kumar, hindu, de casta fudamiá, assalariado da construção civil, residente em Inglaterra, entrevistado em Alperton.

42 Extracto do discurso proferido por Jossub Jajee Suleman Ebrahim e Abdool Dada Osman, líderes da comunidade maometana laurentina, perante mais de 150 convidados ligados a firmas indianas, portuguesas e europeias, e à própria administração colonial (Lourenço Marques, Guardian, 2 de Outubro de 1946).

43 Abdool Suleman — v. nota 12.

44 Sobrinho de B. Kakoobhai (conhecido cambista de Lourenço Marques), entrevistado em Lisboa.

45 Cf. IAN/TT, Correspondência da comissão coordenadora dos assuntos relativos a pessoas e bens dos súbditos da União Indiana à PIDE.

46 Interacções ainda mais intensas, no caso dos muçulmanos sunitas, que (ao contrário dos hindus) integravam os seus filhos mistos nas respectivas comunidades e encorajavam a conversão da população nativa.

 

* Departamento de Antropologia, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Av. de Berna, 26-C, 1069-061, Lisboa, Portugal. e-mail: sus.bastos@fcsh.unl.pt

 

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