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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.190 Lisboa  2009

 

O lugar do sacrifício: qurbani e circuitos transnacionais entre bangladeshis em Lisboa**

José Mapril*

Na literatura sobre as migrações e as diásporas sul-asiáticas, um dos temas mais recorrentes prende-se com as dinâmicas religiosas. A relação triangular entre a religião, os países de origem e os países onde residem tem sido um importante tema de pesquisa.

O presente artigo pretende dialogar com esta literatura através de um estudo de caso sobre o qurbani, um ritual sacrificial realizado aquando do final da peregrinação a Meca (hajj), entre muçulmanos bengalis em Lisboa. Ao longo do texto argumentarei que a realização desta cerimónia revela processos de (re)produção de lugares e espaços de pertença num contexto transnacional.

Palavras-chave: transnacionalismo; islão; lugar; bangladeshis; Lisboa

 

The place of sacrifice: qurbani and transnational circuits among Bangladeshis in Lisbon

One of the recurring themes in the literature of migration and the South Asian diasporas is the dynamics of religion. The triangular relationship between religion, countries of origin, and host countries is an important field of research. This article seeks to engage with this literature through a case study involving qurbani, a sacrificial ritual which takes place at the end of the pilgrimage to Mecca (the hajj), among Bengali muslims in Lisbon. In the article I argue that in performing this ceremony these migrants (re)produce places and spaces of belonging in a transnational context.

Keywords: Transnationalism; islam; place; Bangladeshis; Lisbon

 

Desde meados dos anos 90 que a imigração em Portugal tem sido marcada pela presença de fluxos populacionais oriundos de contextos sem qualquer laço histórico com o país. Entre muitos outros, o caso dos bangladeshis é um exemplo dessa diversificação. Esta é uma imigração que se iniciou nos finais dos anos 80 e que actualmente, de acordo com os dados disponibilizados pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, representa perto de 1600 indivíduos legalmente residentes no país, isto é, com vistos de residência, vistos de permanência e naturalização (e que, segundo os dados do consulado-Geral do Bangladesh, ronda os 4000 indivíduos). Como noutros fluxos migratórios, também neste caso, o padrão de distribuição geográfica revela uma forte presença nas cidades do litoral, com uma sobre representação em Lisboa, mais concretamente na zona do Martim Moniz e da Mouraria (Mapril, 2007a; Bastos, 2004). Foi com o intuito de conhecer esta realidade que desenvolvi entre 2003 e 2007 uma pesquisa etnográfica.

Aquando do primeiro período de trabalho de campo, mais concretamente em Fevereiro de 2003, deparei-me com as celebrações da grande festa, ou a festa do sacrifício, também conhecida por qurbani id ou id ul-Adha. Esta ocorre no décimo dia do último mês do calendário lunar islâmico — Dhu `l-Hidjdja — e é um dos momentos finais da peregrinação a Meca (hajj). Nesta ocasião, e seguindo a tradição profética (sunna), os peregrinos no vale de Mina abatem ritualmente um animal, reproduzindo a história sacrificial de Abraão (Ibrahim). Recorde-se que num teste à sua devoção, Deus terá pedido a Ibrahim para sacrificar o seu filho Ismael. No último momento, porém, um anjo tê-lo-á substituído por um carneiro e assim poupado o seu único filho (Brisebarre, 1998; Bonte et al., 2002). Simultaneamente, outros muçulmanos espalhados pelo mundo que estejam em condições (monetárias) de realizar o qurbani juntam-se aos peregrinos na realização deste acto sacrificial. Qurbani é um termo de origem árabe usado pelos meus interlocutores para designar este ritual e cuja etimologia remete para a ideia de aproximação a Deus e à umma, a comunidade dos crentes1.

Ainda que estivessem cientes do papel deste ritual nesta celebração, nenhum dos meus interlocutores realizou o qurbani. Foram à mesquita central de Lisboa fazer as orações do id (salat-al-id), que se realizaram logo pela manhã, em dois momentos distintos — o primeiro às 8 horas e o segundo às 10 —, por causa da grande afluência normalmente registada. Como a festa ocorreu num dia de semana, e uma vez que trabalham no centro de Lisboa, a maior parte participou na primeira oração. Como é frequente, durante o id ul-Adha, bem como no id ul-Fitr (a festa do fim do mês do Ramadão), visitaram amigos e familiares. A comensalidade assumiu aqui uma importância central e como tal confeccionaram-se diferentes tipos de doces (mishti), como shamai (um tipo de aletria) e rice pudding, bem como outros pratos bangladeshis. No entanto, e contrariamente a outros casos que me eram familiares da literatura antropológica sobre o tema (Brisebarre, 1998; Dassetto e Hennart, 1998; Quintino, 2004), nenhum dos meus interlocutores fez o qurbani em Lisboa.

Quando procurei uma justificação, comecei por pensar que o facto de se encontrarem num país de maioria não islâmica pudesse lançar alguma luz sobre a questão. No entanto, tal hipótese afigurava-se problemática, uma vez que existem outros muçulmanos em Portugal que o fazem, como é o caso dos guineenses (Quintino, 2004). Decidi então questionar os meus interlocutores, que me deram duas respostas: a primeira remetia para o papel dos parentes no Bangladesh na organização desta cerimónia. Argumentavam que o qurbani era realizado pelos familiares no Bangladesh, tendo em conta aqueles que estão fora, e, como tal, não precisavam de o fazer em Portugal. Simultaneamente, apresentavam outra justificação menos evidente: "não existem pobres em Portugal" — gorib manusch nai — e, portanto, esta prática cerimonial não pode aqui ser realizada. Alguns exclamavam, inclusive, que não podiam pegar numa panela com comida e ir oferecê-la para o Rossio: certamente ninguém aceitaria!

Contudo, dois anos depois, em Janeiro de 2005, um grupo de bangladeshis, entre os quais estavam algumas das figuras mais proeminentes da comunidade em termos políticos e económicos, decidiu fazer o qurbani em Lisboa, ao mesmo tempo que ajudou a financiar esta cerimónia junto das suas famílias no Bangladesh.

Não posso então deixar de me perguntar por que é que uns passaram a fazer esta cerimónia em Portugal, apesar de contribuírem, simultaneamente, para a mesma no Bangladesh e outros não? O que mudou de 2003 para 2005?

Este artigo procurará dar resposta a estas questões através de um exercício etnográfico em torno do qurbani realizado em Lisboa e em Daca, partindo do argumento central de que esta cerimónia é "boa para pensar", para usar a expressão de Lévi-Strauss, a (re)produção de lugares de pertença em contextos migratórios transnacionais.

Com vista a tal exercício interpretativo procurarei, em primeiro lugar, enquadrar esta temática na literatura, enfatizando o papel do sacrifício enquanto ritual transnacional. Em seguida, apresentarei dois exemplos etnográficos que servem de esteio para a terceira secção deste texto, na qual estas práticas cerimoniais são contextualizadas através dos fluxos transnacionais que ligam o Bangladesh e Portugal. Finalmente, apresentarei algumas reflexões finais.

 

Circuitos transnacionais e o qurbani

No âmbito das pesquisas sobre migrações, a religião tem merecido um interesse crescente, nomeadamente no que diz respeito aos desenvolvimentos teóricos em torno daquele que se constitui como o paradigma dominante: o transnacionalismo. O conceito foi inicialmente proposto por Nina Schiller, Linda Basch e Cristina Blanc-Szanton num artigo publicado em 1992, e mais uma vez discutido em 1997, no famoso Nations Unboud. Para as autoras, o transnacionalismo é o processo

pelo qual os imigrantes estabelecem e mantêm múltiplas relações sociais que ligam as sociedades de origem e de acolhimento. Designamos estes processos por transnacionalismo para enfatizar o facto de muitos imigrantes construírem campos sociais que atravessam fronteiras geográficas, culturais e políticas [Schiller et al., 1997, p. 7]2.

Nesta interpretação, a tónica central é colocada nos circuitos e articulações entre os vários locais em que as redes sociais dos migrantes estão presentes (Kearney, 1986). O intuito é cartografar os fluxos e as dinâmicas sociais, políticas e económicas, os chamados espaços sociais transnacionais (Kyle, 1999)3. Tal abordagem constituiu-se como um olhar alternativo face às "tradicionais" posturas teóricas que procuravam interpretar o impacto das migrações nas "comunidades de origem" ou revelar as estratégias de adaptação dos migrantes nos "contextos de recepção" (Kearney, 1986; Brettell, 2000 e 2003).

Se inicialmente não mereceu uma atenção particular, nos últimos anos a dimensão religiosa destes transnacionalismos migrantes tem sido crescentemente abordada. A organização e institucionalização de igrejas protestantes entre brasileiros nos Estados Unidos da América e as ligações que activam com o Brasil (Levitt, 2001 e 2007), a íntima relação que os movimentos transnacionais hindus estabelecem entre os hindus nas Caraíbas e na Índia (Vertovec, 2000), a institucionalização de igrejas "africanas" e a reprodução de retóricas universalistas que ultrapassam divisões étnicas nas cidades alemãs (Schiller et al., 2006), portuguesas e angolanas (Sarró et al., 2008; Blanes, 2008) ou a produção de um culto sufi entre o Paquistão e o Reino Unido (Werbner, 2003) são alguns dos exemplos que ilustram estes trânsitos.

Outro lado desta dimensão religiosa é a ritualização destes espaços transnacionais (Grillo e Gardner, 2002). Matrimónios, funerais, rituais de iniciação e outras cerimónias associadas aos ciclos de vida são muitas vezes vividos em simultâneo entre o "país de origem" e o "país de acolhimento", ligando estes espaços em complexos circuitos rituais. O presente artigo pretende contribuir para esta literatura, mas agora a partir de outro exemplo etnográfico: o sacrifício.

Em antropologia, como, aliás, mais genericamente nos estudos religiosos, o sacrifício está presente em vários momentos da história da disciplina. Recorde-se que desde Robertson Smith (1894), passando por Henri Hubert e Marcel Mauss (1899) e terminando em Maurice Bloch (1992), muitos foram os antropólogos que se dedicaram a este tema. Os seus esforços incidem sobre um vasto conjunto de rituais, em vários contextos etnográficos, que têm sido usados para pensar diversas dimensões do religioso e do ritual. A mediação entre o profano e o sagrado (Hubert e Mauss, 1899), a comensalidade como partilha de substâncias com os deuses (Detienne e Vernant, 1981), as estruturas elementares das sociedades (de Heusch, 1985), a violência e o sagrado (Girard, 1998) e a ideia do auto-sacrifício (Bloch, 1992; Cabral, 1997) são apenas uma pequena selecção de um corpus teórico assaz difícil de sumariar.

Entre os exemplos etnográficos abordados, o sacrifício, em contextos islâmicos e entre muçulmanos, mereceu não apenas a atenção de muitos destes clássicos (Robertson Smith, entre outros), mas também de muitos autores contemporâneos.

Mais uma vez, o que sobressai desta vasta literatura é uma enorme diversidade de práticas e de discursos que importa realçar. Diferentes autores, em diversos contextos (Marrocos, Indonésia, Turquia, Etiópia, entre muitos outros), têm enfatizado as dimensões teológicas, políticas, económicas e sociais do sacrifício. Não pretendo recensear todas estas abordagens e muito menos descrever detalhadamente cada uma delas (exercício que extravasaria em muito as páginas de que disponho), mas apenas perceber quais as linhas de pesquisa e posicionar-me neste debate com uma interpretação que procurará revelar a relação desta cerimónia com a produção de lugares de pertença em contextos migratórios transnacionais.

Um dos autores que se dedicaram a uma pesquisa sobre esta cerimónia foi Abdellah Hammoudi (1988) no seu livro La victime et ses masques. O seu intuito era o de relacionar o sacrifício (tfaska) realizado durante a "grande festa", o id-lekbir, e o carnaval que ocorre durante os dias da festa. Baseando a sua análise nos Ait Mizane, um grupo berbere das planícies de Marraquexe, argumenta que a celebração destas duas festas revela (e supera) as inerentes tensões na sociedade em que ocorre: tensões entre as normas, reforçadas e reveladas pelo sacrifício (separação de género e de geração), e a sua inversão através da actividade carnavalesca e, portanto, das máscaras.

Também em Marrocos, mas abordando a dimensão política, M. E. Combs-Schilling (1989) propõe-se analisar a relação entre a monarquia e o ritual. A autora argumenta que foi através do manuseamento do grande sacrifício, id al-Kabir, juntamente com as celebrações do aniversário do profeta e do seu primeiro casamento, que a monarquia manteve o seu poder ao longo de cinco séculos. Através destes rituais, a monarquia reinventou-se e reformulou-se, mantendo uma identidade cultural e uma integridade política intacta, perante o "assalto ocidental" à região. As inovações nas comemorações do aniversário do profeta, nas práticas associadas aos casamentos populares e no sacrifício transformaram o monarca na definição da nação, no protótipo do homem, enquanto reprodutor bem sucedido, e, finalmente, no elemento de mediação com o transcendente. Segundo Combs-Schilling, todos estes rituais seriam a garantia de estabilidade da monarquia marroquina desde a sua fundação até à contemporaneidade.

Num outro contexto, nomeadamente entre os gayo na Indonésia, John Bowen (1993) realça também a dimensão política do sacrifício, designado por reraya qurbën, ou reraya kul, mas neste caso num sentido mais alargado, ao nível da produção de ortodoxia e de ortopraxis. A mesma ocasião é celebrada de formas distintas por "tradicionalistas", da aldeia, e "modernistas", da cidade. Para os primeiros, o qurbën é pensado como uma transacção com vista a adquirir benefícios espirituais para si e para as suas famílias, enquanto para os segundos a mesma cerimónia é pensada como uma oferta desinteressada, de devoção "sincera": apenas através do sacrifício de um animal em nome de Deus é possível adquirir mérito, argumentam os "modernistas".

Esta abordagem de Bowen, nomeadamente no que respeita às concepções "modernistas" e "urbanas" do islão, realça outro ponto de vista sobre o grande sacrifício: a sua relação com a urbanidade. A questão central, para este autor, era perceber se, em contextos urbanos, as práticas ditas "tradicionais", como o sacrifício, continuariam a ser realizadas.

Touré e Konaté (1990), Gokalp (1998) e Mahdi (1998) propõem-se analisar esta problemática através de pesquisas realizadas na Costa do Marfim, na Turquia e em Marrocos, respectivamente. No primeiro caso, e depois de analisado um inquérito à escala nacional sobre populações com diversas filiações religiosas em várias cidades na Costa do Marfim, os autores concluíram que muitos muçulmanos praticavam o sacrifício como uma forma de fazer face a problemas relacionados com emprego, saúde e sucesso escolar. A realização destes sacrifícios propiciatórios face aos realizados aquando da grande festa seria um indicador do islão "animista", "africano", para usar as palavras dos próprios, que os muçulmanos da Costa do Marfim seguiam.

Altan Gokalp (1998), por sua vez, revela como esta cerimónia, apesar de vastamente praticada no mundo rural, assume também uma importância central no espaço urbano. Numa cidade como Istambul realizam-se anualmente perto de 4 milhões de actos sacrificiais, o que, argumenta Gokalp, num contexto laico e secularizado, como o turco, constitui um laboratório para pensar o lugar do islão na esfera pública.

Finalmente, Mohamed Mahdi (1998) questiona se o qurbani em meio urbano se mantém fiel às versões normativas ou se apresenta inovações, variações. Articulando as suas observações em vários contextos, a cidade é aqui encarada como um espaço onde a universalidade desta cerimónia convive com um vasto conjunto de diversidades que a tornam simultaneamente una e múltipla.

O facto de muitos destes autores trabalharem em contextos multi-confessionais levou igualmente a uma crescente preocupação e interesse pelas interpretações do grande sacrifício. Numa pesquisa levada a cabo no Líbano, em aldeias multiconfessionais, Kanafani-Zahar (1997 e 2002) mostra como o Adha, o nome localmente dado ao grande sacrifício, é um momento de união entre muçulmanos (xiitas) e cristãos. Mais recentemente, Ficquet (2006) revela como a carne resultante da morte ritual está imbuída de fé e, como tal, contrariamente ao caso anterior, é uma forma de produzir fronteiras entre cristãos e muçulmanos na Etiópia.

Assim, o que sobressai de todas estas abordagens é precisamente a grande diversidade de perspectivas e interpretações acerca de uma cerimónia que, apesar de realizada para celebrar a mesma ocasião, o final da hajj, apresenta enormes diferenças em diversos contextos islâmicos. Então, e no Bangladesh?

Historicamente, o qurbani foi uma cerimónia que assumiu uma importância central nos movimentos de reivindicação por um estado islâmico entre os muçulmanos no subcontinente indiano. As pesquisas históricas levadas a cabo por Anand Yang (1980), Sandria Freitag (1980), Rafiuddin Ahmed (1988) e Peter van der Veer (1994) apresentam vários exemplos. Num contexto marcado pela perda de poder face às autoridades coloniais, muitos movimentos reformistas islâmicos usaram o qurbani, especialmente o sacrifício da vaca, juntamente com outras cerimónias, como uma forma de reivindicarem uma maior autonomia e acesso a cargos de poder e instrução na região. Este sacrifício foi usado pelos revivalistas como uma forma de comunicar ritualmente uma identidade e construir um nacionalismo religioso através de noções reificadas e naturalizadas da umma (van der Veer, 1994).

Depois da partição da Índia com o Paquistão, o qurbani passou a figurar nas celebrações nacionais com a participação das autoridades centrais, o que ocorre, aliás, ainda hoje no Bangladesh. A grande festa é uma ocasião usada por todas as forças políticas para se dirigirem à população, o que apenas começou a ocorrer a partir dos anos 80 do século xx. Recorde-se que depois da independência, em 1971, o Bangladesh, dentro da matriz marxista nehruviana que inspirava o pai da nação, começou por adoptar uma posição de neutralidade face às celebrações públicas das principais festas religiosas (muçulmanas, cristãs, hindus ou budistas). Eram celebradas, mas não tinham a importância política central que hoje apresentam. Porém, foi logo no final dos anos 70, e especialmente em meados dos anos 80, aquando do início dos processos de extensa islamização do Estado e dos aparelhos políticos, que o qurbani id passou a assumir uma importância central (Huque e Akhter, 1987; Maniruzzaman, 2001).

Mas a grande festa não é apenas importante ao nível da política nacional. Esta aponta também para aspectos aparentemente paradoxais, como as relações hierárquicas na sociedade, os ideais de igualdade ou o reforço das formas de organização social.

Jitka Kotalová (1993), por exemplo, faz uma excelente descrição etnográfica desta cerimónia na aldeia de Gameranga, na região de Faridpur. A autora adopta o ponto de vista da circulação e das ofertas da carne resultantes desta cerimónia, argumentando que o qurbani é um dos elementos que, juntamente com as orações e os funerais, promovem uma imagem da samaj4 enquanto comunidade indivisa. O acto sacrificial e a comensalidade que se segue demonstram não só a ligação com Deus, mas também a ligação entre os membros da samaj, revelando, através das trocas de carne e da partilha de refeições, a igualdade entre os membros da comunidade de pertença. Aliás, semelhante observação foi feita por John Thorp (1978) na sua etnografia em Daripalla, na região de Comilla. Neste contexto ainda, esta igualdade expande-se para além das próprias fronteiras da "comunidade" através das dádivas (lilla) aos pobres, da parte dos quais, e contrariamente aos membros da samaj, não se espera qualquer reciprocidade, mas sim de Alá. Desta forma, e de acordo com a leitura de Kotalová (1993), esta ideologia de igualdade expande-se muito para além dos limites simbólicos e territoriais da comunidade, reforçando a ideia de umma, a comunidade dos crentes.

Simultaneamente, revela a hierarquização na sociedade não apenas através do animal imolado — matar uma vaca é mais dispendioso do que matar uma cabra e representa, portanto, um sinal de prosperidade (Ellickson, 1972) —, mas também através das lillas, as doações aos pobres. Estas representam algo que se dá a alguém que pouco ou nada possui, mas a forma como são realizadas, bem como o facto de não se esperar reciprocidade, são um evidente sinal de uma forte separação entre lugares sociais.

Mas o que acontece a esta cerimónia quando praticada num contexto migratório transnacional, como aquele que envolve os meus interlocutores?

Numa obra dirigida por Anne-Marie Brisebarre (1998) analisa-se a realização desta cerimónia em vários países da Europa, entre os quais se encontram a França, a Bélgica e o Reino Unido. No primeiro caso, Brisebarre debate as estratégias levadas a cabo por várias populações muçulmanas para realizarem esta cerimónia num contexto em que esta é contestada por vários actores (organizações de defesa dos animais, agentes sanitários e autoridades estatais e regionais). A ilegalização das práticas, a "invisibilidade" e a sua institucionalização numa região suburbana de Paris são alguns dos temas abordados. O estudo de Brisebarre procura ver de que forma os vários muçulmanos inquiridos gerem este ambíguo contexto e as estratégias que desenvolvem para poderem continuar a realizar esta cerimónia em França.

Outro exemplo chega-nos através do texto de Felice Dassetto e Marie-Noëlle Hennart (1998). Neste caso, os autores preocupam-se em compreender a posição do qurbani no quadro legal belga e quais as práticas desenvolvidas pelos sujeitos, realçando a existência de três situações distintas: (i) aqueles que se dirigem aos matadouros legalmente preparados para esta ocasião — uma minoria; (ii) aqueles que praticam o sacrifício nas quintas localizadas nas imediações de Bruxelas, que, nestas ocasiões, se transformam em matadouros informais; (iii) por fim, a larga maioria, que pratica o sacrifício nas próprias habitações.

Finalmente, na mesma obra, Maamar (1998) desenvolve um exercício semelhante ao realizado por Werner Schiffauer (1988) ao procurar comparar a prática da cerimónia do ayd al-Kabir em dois contextos distintos: o de uma família argelina a residir na aldeia de Ait-Benian e o de outra família que se encontra nos arredores de Paris.

Nas três pesquisas anteriores a tónica é colocada naquilo que foi designado como o "islão transplantado" (Dassetto e Bastenier, 1984), ou seja, nas manifestações do islão depois de ter sido "transportado" pelos sujeitos aquando das suas experiências migratórias. Estes exercícios estão intima mente associados àquilo a que se poderia chamar uma perspectiva institucionalista do islão em contextos migratórios, a qual procura ver de que forma os migrantes adaptam a sua religiosidade aos novos contextos sociais, políticos e culturais em que se encontram. Tais exercícios, no entanto, subentendem uma ruptura com os lugares de origem. Ao não atribuírem visibilidade às articulações religiosas com as várias redes de sociabilidade que mantêm em diferentes lugares, assumem que os rituais têm de ser transplantados. Mas será de facto assim?

Assumindo, como John Beattie (1980) propôs, que os sacrifícios são uma linguagem e, nessa medida, uma forma de dizer e fazer algo, o caso dos bangladeshis em Lisboa faz-me pensar que o qurbani pode igualmente ser visto como uma metáfora ou um tropo para interpretar as concepções e ideologias acerca do lugar, mais concretamente acerca do território de pertença no contexto das experiências migratórias.

Neste artigo proponho-me realizar um exercício semelhante àquele que Pnina Werbner (1990 e 1998) efectuou em Manchester sobre os paquistaneses. Através de uma etnografia da recitação colectiva do Corão, Werbner revela como os seus interlocutores produzem dois espaços morais de referência _ o Reino Unido (com as suas novas redes de relações sociais) e o Paquistão (onde se encontra parte das redes familiares e de amizade). No primeiro "ritualizam-se" os laços sociais construídos na migração; no segundo "naturaliza-se" o ritual e outras sociabilidades num outro lugar.

Inspirando-se nos argumentos de Werbner, este artigo pretende, pois, perceber de que forma o qurbani se produz transnacionalmente, articulando o Bangladesh e Portugal. E como essa articulação, esta divisão transnacional do espaço ritual, para usar o conceito de Ruba Salih (2002), revela que existem outras articulações entre a "origem" e o "acolhimento", para além das remessas em capital e os constantes contactos através do telefone e das viagens. O qurbani é uma cerimónia que permite pensar nos trânsitos religiosos e no papel que estes desempenham na (re)produção de lugares de pertença. Por lugares de pertença refiro-me a espaços cosmeticamente transformados através de idiomas, como a linguagem, a religião, a etnicidade, o nacionalismo, entre muitos outros, e que, como tal, se tornam social e simbolicamente próximos (Sarró, 2008).

Com esta abordagem pretende-se acrescentar outra dimensão de análise à literatura existente sobre os muçulmanos e o islão em Portugal. Esta tem-se debruçado sobre várias dimensões, tais como "o sentido dos árabes no nosso sentido", para usar as palavras de Cardeira da Silva (2005, p. 781), a (histórica) islamização de Beja (Macias, 2005), a institucionalização da nova presença islâmica em Portugal (Tiesler, 2000) ou a persistência do imaginário colonial nas representações dos muçulmanos em Portugal (Vakil, 2003).

No conjunto, a literatura existente tem abordado diversas populações — guineenses, indianos de Moçambique, bangladeshis, marroquinos, jovens e mulheres — e correntes religiosas, e os temas centrais incluem a produção das identidades, a construção de "comunidade", as inter-relações entre muçulmanos com diversas origens e histórias coloniais, os valores dos jovens e a dialéctica entre diferentes gerações migratórias (Keshavjee, 1994; Dias, 2007; Faria, 2007; Tiesler e Cairns, 2007; Abranches 2007; Mapril, 2007b; Bastos e Bastos, 2007). No entanto, a relação que os migrantes estabelecem com vários lugares de pertença (e sociabilidades que aí se encontram), através de determinadas cerimónias e rituais, parece ser uma dimensão que não tem merecido um olhar aprofundado. Nesse sentido, conhecer estas dinâmicas e processos é também abordar outras facetas da nova presença islâmica em Portugal.

Façamos então duas pequenas incursões etnográficas a Daca, e depois a Lisboa, para revelar esta relação.

 

Qurbani em Daca...

Entre Janeiro e Fevereiro de 2004 encontrava-me a fazer trabalho de campo no Bangladesh. Estava a residir em casa de Anwar, em Daca, um dos interlocutores que tinha conhecido em Lisboa havia mais de um ano. Anwar tinha chegado um mês antes, no início de Dezembro. Queria visitar a mãe e as irmãs, que não via há mais de cinco anos, a última vez que tinha estado no Bangladesh. De acordo com a vontade da mãe, a viagem deveria ocorrer aquando do id ul-Fitr, a festa do fim do jejum, no final de Outubro de 2003; porém, Anwar não tinha tido essa possibilidade. Este tinha sido um período particularmente problemático, uma vez que estava a ultimar os pormenores da mudança de casa da irmã e dos sobrinhos. Desde Agosto, altura em tinha comprado a casa, que andava a adiar sucessivamente as datas da partida, apesar da crescente pressão da mãe e das outras irmãs. Era preciso começar a preparar o casamento do irmão mais velho, que estava em Londres, e, portanto, quanto mais depressa ele fosse melhor.

A casa de Anwar fica em Mohammadpur, um pouco a sul do parlamento nacional e, portanto, numa zona relativamente central da capital. Esta é uma área residencial composta por estratos sociais intermédios de empresários, funcionários de organizações não governamentais, funcionários públicos, entre outros.

O prédio onde a mãe reside tem três pisos e é propriedade da família. Foi construído por Mansur, o pai de Anwar (que faleceu em 1986), com o dinheiro que poupou em Inglaterra. O prédio já esteve totalmente ocupado pela família, mas actualmente dois dos andares estão arrendados. Desde a sua chegada — em meados de Dezembro — que percebeu que teria de fazer alguns melhoramentos. Tudo deveria estar arranjado não só por causa do qurbani id, mas também para o casamento do irmão, Nazrul. Assim, mandou pintar todo o prédio por dentro e por fora e comprou novos sofás e electrodomésticos.

Enquanto a renovação da casa decorria, a festa do sacrifício aproximava--se e, portanto, começava a fazer planos para as celebrações. No que dependesse dele, Nazrul, o irmão mais velho, e Hasina, a irmã mais velha, deveriam estar presentes nas celebrações do id. Infelizmente, Nazrul estava com alguns problemas no seu trabalho em Londres e era pouco provável que pudesse vir; Hasina, por seu turno, não deveria conseguir vir da aldeia de Mandargao, em Comilla, uma vez que Azan, o marido, político local eleito pelas listas do Bangladesh Nationalist Party, tinha de permanecer na aldeia durante esta importante ocasião política. Para Azan, como, aliás, para os principais representantes políticos do país, este evento é uma excelente ocasião para se dirigirem à população e transmitirem mensagens políticas5. Embora reconhecendo as razões do seu dulabhai6, Anwar não deixou de ficar irritado: se a sua irmã mais nova não poderia estar presente porque estava "indocumentada" em Portugal, os seus irmãos mais velhos podiam e deveriam estar juntos. A última vez que celebraram um id em conjunto tinha sido antes da morte do pai, em 1986. Se Azan queria ficar na gram (aldeia), que ficasse, mas Hasina, a irmã mais velha, poderia certamente passar uns dias em Daca. Quando visitámos a aldeia, uma semana antes, ainda se colocou a hipótese de Hasina vir para a capital, mas à última hora os planos alteraram-se e acabámos por partir sem ela. Com Aisha, a irmã do meio, não haveria problemas, pois esta vive na capital, em Shukrabad, também em Mohammadpur.

No dia 2 de Fevereiro, na véspera do dia do id, Anwar quis acompanhar Anis, o seu outro dulabhai, marido de Aisha, na compra do animal. Este pode ser adquirido em vários mercados existentes na capital e os animais disponíveis vão desde a ovelha ou borrego, passando por vacas ou por camelos importados do Rajastão, na Índia. Os valores envolvidos na compra aumentam na proporção do porte dos animais e, portanto, um camelo é muito mais caro do que uma ovelha. O tipo de animal que se sacrifica é uma afirmação pública de estatuto e uma demonstração da "riqueza" da casa. Apesar disso, Anwar tinha como objectivo comprar uma vaca de tamanho médio, pois não queria ser demasiado ostensivo na demonstração de riqueza nem gastar muito dinheiro.

Tais preparativos estavam, no entanto, a deixá-lo um pouco nervoso e ansioso. Era a primeira vez que tratava do assunto e precisava, por isso, do aconselhamento de alguém mais experiente. Recorrer a Anis, o marido da irmã do meio, era certamente a solução mais fácil e mais óbvia. Afinal, tem sido com a sua ajuda que tem tratado de vários assuntos relativos a esta viagem.

Ainda antes das 8 da manhã, Anwar, eu, Assan e Mukitur (os primos paternos que tinham ido para casa de Anwar durante a sua estada) fomos ter a casa de Anis. Anis, o seu filho mais novo, Bablou, Mutiur e o irmão mais velho (que tinha acabado de chegar do Dubai), sobrinhos paternos de Anis, juntaram-se a nós e fomos em dois minitáxis para um dos muitos goru-hut (mercados de animais) espalhados pela cidade. Desde a sexta-feira anterior que muitos dos habitantes de Daca tinham deixado a capital para se juntarem às famílias nas suas aldeias de origem e as ruas apresentavam, assim, um calma rara para uma cidade com uma população de 14 milhões de habitantes. As semanas que antecederam este último fim-de-semana foram de absoluto frenesim consumista. Diz-se que no dia do id se deve usar uma peça de roupa nova e, como tal, as pessoas acorrem aos centros comerciais e aos mercados para comprarem prendas. Depois desta azáfama, a cidade respirava uma calma invulgar e foi por isso relativamente fácil apanhar dois táxis para nos dirigirmos ao mercado a noroeste da capital.

Este ficava localizado num arrabalde nas imediações de Mirpur Road, não muito longe de um aterro de lixos urbanos. A afluência era considerável, pois estávamos na véspera da celebração. Era possível comprar todo o tipo de animais: desde camelos a pequenas cabras, passando por impressionantes bois brancos decorados com grinaldas e flores coloridas feitas de papel brilhante. Havia pequenos vendedores com dois ou três animais, mas também grandes comerciantes, com várias dezenas de cabeças de gado instaladas em estruturas de madeira montadas para o efeito. Uma vez feita a transacção, os animais passavam para as mãos dos compradores, que os levavam até à porta principal, onde pagavam uma autorização de transporte através da cidade. As pessoas tinham então de abrir caminho pelo meio da multidão, transportando consigo o animal que haviam comprado.

Quando chegámos, os preços estavam muito inflacionados e Anwar e Anis quiseram esperar para ver se conseguiam fazer um negócio melhor. Diz a experiência que, quanto mais próximos nos encontramos do fim do dia, mais baixos se tornam os preços, porque, no dizer de Anwar, "ninguém quer regressar a casa com os animais e ainda por cima de mãos a abanar". Só perto das 2 horas da tarde, quando ele, eu e Bablou já estávamos exaustos, é que Anwar decidiu fazer o negócio. Depois de muito regatear lá chegou a um acordo e comprou uma vaca por 16 000 takas (cerca de 220 euros) e, portanto, decidimos regressar a casa, apesar de Anis querer esperar mais um pouco para comprar mais barato.

Depois de pagar a taxa de transporte à Dhaka City Corporation, Mukitur e Assan encarregaram-se de trazer a vaca para casa, enquanto eu e Anwar regressámos a casa de CNG (auto-rickshaws que funcionam com compressed natural gaz, e daí a designação, triciclos verdes cobertos por uma lona com capacidade para três passageiros). No caminho perguntei-lhe se estava contente com a compra. Respondeu-me que sim, mas que esta não se comparava em nada àquela que o pai fizera a última vez que passaram esta festa todos juntos. "A vaca era enorme e malhada, preta com grandes manchas brancas. Havia pessoas sentadas à porta de casa só para a ver", relembrou. Quando, finalmente, chegaram, guardaram a vaca na garagem e Anwar foi buscar a mãe para lhe mostrar o animal. Doente, com problemas renais, foi a única vez que veio à rua durante a minha estada.

Estávamos exaustos e passámos o resto do dia em frente à televisão, enquanto um canal transmitia, em directo, as imagens da hajj, a peregrinação a Meca, intercaladas pelas orações recitadas pelo imã da mesquita de Meca. A certa altura aproveitei para perguntar a Anwar e aos sobrinhos, Mirza e Syed, por que é que as pessoas faziam o qurbani. Quais eram as suas intenções? Depois de falarem entre eles, como se estivessem a chegar a um acordo sobre a resposta a dar, explicaram-me que ao realizar o qurbani as pessoas recebem uma reward — referiam-se mais concretamente ao termo sowab. É uma prática ritual que reverte em mérito para as pessoas que nela participam.

No dia seguinte, de manhã, Anwar, Mirza, Syed e Assan foram à mesquita em Mohammadpur fazer as orações do id juntamente com Anis e os restantes membros masculinos da família. Acabei por ficar em casa porque estava exausto. No regresso, Anwar e Mirza passaram em casa de Anis para assistir à morte das duas vacas que tinha comprado na véspera, enquanto Syed e Assan regressaram a casa para começar a preparar a cerimónia. Várias facas foram trazidas para o pátio de casa juntamente com uma tábua, onde a carne viria a ser cortada mais tarde, e uma daripalla, uma balança. Assan, por sua vez, esteve a lavar o chão da rua em frente à casa.

Entretanto, vários vizinhos estavam já a realizar os seus qurbani. Em frente dos vários prédios vizinhos, na rua, faziam-se sacrifícios, uns matando vacas e outros apenas carneiros e cabras. Só um animal era morto em frente a cada edifício, o que quer dizer que apenas os proprietários do edifício o fazem naquele local. Os locatários realizam a cerimónia um pouco ao lado, ou vão fazê-la noutros recintos preparados para o efeito ou em casa de familiares, trazendo a carne para casa já ensacada. Um dos vizinhos ia sacrificar dois bois, mas quase todos sacrificavam vacas, enquanto apenas um sacrificou uma ovelha. Este é um espaço exclusivamente masculino e todos envergam roupas adequadas para a ocasião — punjabis brancas, frequentemente bordadas a dourado, com um tupi (um chapéu de oração).

Simultaneamente, grupos de pedintes, gorib manusch, entre os quais mulheres, crianças e idosos, estavam já encostados aos muros dos vários edifícios à espera que a carne fosse distribuída, as lillas.

Anwar e Mirza chegaram pouco depois e imediatamente começaram os preparativos para o qurbani. Mais tarde, o sobrinho mais novo, Bablou, juntou-se a nós.

Para segurar e desossar a vaca contrataram um dos muitos grupos de homens que nesta altura do ano percorrem as ruas de Daca oferecendo os seus serviços7. A vaca foi levada para o meio da rua, mesmo em frente à porta de casa, deitada com a cabeça na direcção da qibla, Meca, e, depois de absolutamente imóvel, Mutiur, que entretanto tinha chegado com Bablou, imolou-a enquanto recitava a basmallahbismillah ul rahman ul rahim8.

Uma vez sangrada, começou-se por retirar a pele, que foi guardada e posteriormente oferecida e recolhida pelas autoridades religiosas, que a vendem aos produtores de artigos de pele — a principal fonte de financiamento destas instituições.

Desfez-se a peça e a carne foi disposta num monte único no pátio interior da casa. Syed encarregou-se de a dividir em sete porções. Com a daripalla e as mãos polvilhadas de farinha, pesou e dividiu sete porções de peso igual. A cada uma das seis fracções foi atribuído o nome de um membro da unidade doméstica (a mãe, as três irmãs e os dois irmãos) — "assim, todos recebem sowab", dizia-me Anwar —, sendo em seguida transportadas para casa.

A sétima parte foi então distribuída aos gorib manuch, que se acumulavam no exterior para receber as lillas. Syed entregava, literalmente, uma mão-cheia de carne a cada um dos presentes, e, quando a carne estava a acabar, o próprio Anwar foi a casa buscar mais uma travessa, que colocou no monte, que rapidamente diminuía. Quando o último gorib saiu, fecharam o portão da casa e regressaram ao interior.

No intervalo de tempo entre a imolação da vaca e o transporte de toda a carne para o interior da casa, o fígado esteve a ser cozinhado pela mãe de Anwar e pelo empregado, juntamente com uma enorme quantidade de rotis (pão "indiano"). Este foi posteriormente consumido por todos nós, incluindo os membros da família e os empregados (foi a única vez que todos partilharam uma refeição sentados à mesma mesa). Entretanto, um dos empregados foi entregar uma travessa da carne a casa da irmã de Anwar, em Shukrabad.

Descansámos um pouco e saímos para ir visitar a irmã. Mais uma vez estivemos também a comer o fígado das duas vacas sacrificadas no início do dia e alguns doces preparados para a ocasião.

Nos dias seguintes fomos comer a casa do irmão de Anis e, posteriormente, a casa dos pais do marido da sobrinha mais nova de Anwar. A sobrinha e o marido estavam a ter alguns problemas, o que estava a causar um enorme mal-estar, e, como tal, a irmã de Anwar pediu-lhe para realizar uma visita conciliatória.

 

… e em Lisboa

Um ano depois, em Janeiro de 2005, tive o privilégio de acompanhar o qurbani id em Lisboa. Tinha combinado encontrar-me com Mukitur à porta da mesquita Baitul Mukarram — montada e gerida por bangladeshis — em pleno centro da cidade de Lisboa. No dia anterior tinha-me dito que este ano, e pela primeira vez, iria fazer o qurbani.

Combinámos ir à segunda oração do id, a salat-al-id, que teria início cerca das 10 horas da manhã (a primeira tinha ocorrido às 8 horas). Como sempre acontece nesta ocasião, era de esperar uma grande afluência e combinámos, por isso, o encontro às 9 e meia para garantir um bom lugar no piso onde estava o imã (o líder das orações). Chegou ao pé de mim acompanhado por Rafael, o filho, e entrámos juntos na sala de orações. Como é habitual, Mukitur ficou mesmo ao lado da porta e, portanto, mesmo ao lado do imã. Este lugar é normalmente ocupado pelos primeiros bangladeshis a chegar a Portugal ou por aqueles que se consideram mais devotos. Separámo-nos para que eu filmasse o sermão. Acabei por ficar junto à entrada da sala de wuzu, as abluções, pois não havia espaço em mais lado nenhum. Os três andares da mesquita estavam lotados.

O sermão descrevia a história de Ibrahim. Segundo Kari, o imã, Ibrahim teria sonhado com Alá e este ter-lhe-ia pedido para sacrificar o que mais amasse, em sinal de devoção. Durante dias teve o mesmo sonho, até que, atormentado, falou com Ismael, o seu filho, explicando-lhe a situação; afinal, era ele quem mais amava. Ismael compreendeu e dispôs-se a ser sacrificado em nome do pai. Perante o sofrimento resignado da mãe, e no momento em que Ibrahim estava prestes a imolar o filho, Alá substituiu-o por um cordeiro.

Esta história serviu de pretexto a Kari para relembrar a importância da realização do qurbani, em particular por todos aqueles com possibilidades financeiras, apesar de viverem em Portugal. Seguiu-se a oração. Trinta minutos após o início da cerimónia toda a congregação estava na rua. Envergando punjabis, tupis e outras roupas próprias para a ocasião, as pessoas cumprimentavam-se e desejavam um dia feliz (id mubarak). A confusão era imensa, mas pouco depois as pessoas dispersaram para fazerem as habituais visitas a casa de amigos e familiares.

Eu, Mukitur e o filho fomos a casa de um conhecido comum (Faisal), na Rua das Olarias, onde, juntamente com a esposa e o irmão, Faisal tinha estado a preparar alguns pratos bengalis. Tínhamos sido convidados para comer chowtpuri, uma salada de grão com cebola, malaguetas, ovo cozido e molho de tamarindo, que raramente é confeccionada em Portugal e que no Bangladesh é comummente vendida na rua. "Até parece o Bangladesh", dizia Mukitur.

Pouco depois encontrámo-nos com outros pioneiros em frente ao centro Comercial Martim Moniz para nos dirigirmos ao matadouro. No meu carro veio Fazlur, que entretanto se tinha juntado a nós, Mukitur, Faisal e os filhos de ambos; nos outros dois carros seguiam os restantes. Nos dias anteriores tinham encomendado uma vaca num matadouro nos arredores de Lisboa, lugar onde se encontra também um ferro-velho. Quando chegámos, outros muçulmanos, alguns dos quais guineenses, estavam a terminar a divisão da carne de outro animal que tinha sido imolado. A carne era colocada em sacos pretos de plástico (normalmente usados para recolher lixo) para depois ser transportada. Enquanto esperavam, Rashid, Baboul e os restantes foram ao curral ver o animal encomendado, aproveitando para o mostrar aos filhos. Registava tudo isto com a ajuda da máquina de filmar quando Mukitur afirmou: "Grava, grava, e depois faz-me um DVD! Quero mostrar à minha mãe [no Bangladesh]."

Pouco depois, o dono do matadouro/ferro-velho foi buscá-lo e prendeu-o às grades no interior do barracão. A vaca foi então deitada e devidamente atada para que ficasse imóvel. Nesta altura, Mukitur e os restantes despiram os casacos, arregaçaram as mangas das camisas e foram para a zona onde a imolação iria ter lugar. A principal preocupação era impedir movimentos imprevistos. Naquela zona encontravam-se apenas o filho do proprietário e os bangladeshis que estavam a fazer a cerimónia. Eu, Fazlur e os filhos ficámos atrás do balcão que separava as zonas, enquanto se iam juntando outras pessoas com o objectivo de realizarem a mesma celebração.

Quando todos estavam a postos, Kamal, a quem tinha sido pedido para imolar a vítima sacrificial, porque há dezassete anos que estudava o islão — primeiro numa madrassa, depois na universidade em Chittagong e mais tarde na Arábia Saudita, onde viveu nove anos —, sussurrou os nomes das pessoas que faziam aquela "oferta" (anteriormente escritos numa folha de papel), recitou uma du'a, uma súplica, seguida da basmallahbismillah ul rahman ul rahim —, e, por fim, imolou a vítima. A cabeça foi colocada de forma a salientar a veia jugular, que foi cortada através de um golpe vigoroso. O sangue escorria abundantemente em direcção ao ralo.

Inicialmente foi necessário segurar a vítima, pois esboçava alguns movimentos bruscos, mas, passados poucos minutos, os espasmos tornaram-se cada vez mais espaçados, até cessarem completamente. Estava sangrada.

O ambiente na audiência começou por ser de excitação e entusiasmo para depois se tornar tenso e, à medida que a vítima ficava imóvel, se desanuviar. Nesta altura, os meus interlocutores largaram a vaca e dirigiram-se para o exterior para serenar os ânimos e comentar a acção.

No interior, a vítima era erguida numa estrutura por meio de correntes para se lhe retirar a pele e ser devidamente desossada. Em seguida, Chowdury, Aktar e Faisal distribuíram a carne por vários sacos. A divisão era criteriosa, pois queriam que a carne ficasse igualmente repartida entre todos: nem muita carne gordurosa, nem muitos intestinos, mas um pouco de tudo.

Aproveitei então, num momento propício, para conversar com Rashid. Disse-me que estava a fazer o qurbani aqui, mas que não tinha deixado de mandar dinheiro para o irmão, em Daca, e para o tio paterno (chacha, ou kaka), em Noakhali, a sua região de origem, para ajudar a pagar as despesas do qurbani. Este qurbani era em nome da esposa porque ela não tinha ninguém que o fizesse por ela no Bangladesh, já que, a seguir ao casamento, se tinha transferido da unidade doméstica dos pais, em Daca, para a do marido, em Lisboa.

Uma vez dividida entre todos, a carne crua foi parcialmente distribuída ao longo do dia entre as redes de relações das várias famílias em várias partes de Lisboa (Praça do Chile, Mouraria, Martim Moniz, etc.). Em troca recebiam doces, shinni, e pratos confeccionados. Seria uma humilhação receber sem dar algo em troca.

A parte destinada ao consumo próprio e à partilha com convidados nas horas e nos dias seguintes foi imediatamente confeccionada em caril para que fosse oferecida às visitas. Não houve lugar à distribuição de lillas, caridade, e portanto uma terça parte da carne não foi distribuída pelos mais pobres (ghorib manuch). As famílias no Bangladesh davam as lillas por eles, argumentou Mukitur, e, além disso, "não há pobres em Portugal" (ghorib manuch nai).

 

O sacrifício e a (re)produção de lugares de pertença

Os exemplos etnográficos anteriores revelam a relação intrínseca entre lugares de pertença, migrações e o sacrifício, o qurbani. Este é um idioma através do qual se reproduzem redes de relações sociais e sociabilidades que se mantêm no país de origem e, como tal, onde a "origem" continua a ser reproduzida enquanto espaço simbólica, económica e politicamente relevante.

Simultaneamente, a celebração do qurbani em Lisboa revela a produção de novos espaços de pertença, especialmente no contexto de projectos e trajectos migratórios bem sucedidos.

No caso da realização do sacrifício em Daca, o que parece estar em causa é o elo emocional e identitário que existe entre pessoas que partilham ou partilharam a mesma casa; é uma celebração do passado e a reinvenção da unidade doméstica como uma fonte de identidade. É a manifestação simbólica da relação continuamente mantida e fomentada através de circuitos de bens tangíveis e intangíveis entre Portugal e o Bangladesh. A maioria continua dependente do país de origem para ter êxito em Portugal e, nessa medida, a manutenção destes laços é indispensável.

O contacto com o Bangladesh é permanente e faz-se de várias formas. Os telefonemas, diários ou semanais, a Internet, o fax e as viagens sazonais são os exemplos principais. Estas visitas assumem uma tal importância que exigem meses de preparação e chegam a ser sucessivamente adiadas por ainda não se ter reunido o capital suficiente para o efeito. Regressar ao Bangladesh é uma ocasião que implica uma demonstração de êxito e isso só é possível através da poupança ao longo de meses e anos. Meses antes cobram-se e contraem-se dívidas com o intuito de oferecer presentes, gastar conspicuamente em compras para toda a família, emprestar dinheiro a amigos e a familiares, viajar pelo país, renovar as casas ou comprar propriedades. Não o fazer é sharam, algo vergonhoso, pois demonstra que não se foi bem sucedido quando outros, em circunstâncias idênticas, o foram. Todos conhecem alguém que emigrou e que enriqueceu, o que, aliás, é visível no estereótipo do próprio probashi (emigrante, em bengali) como alguém "moderno", sofisticado e rico (Mapril, 2008). Num tal contexto, regressar ao Bangladesh "sem dinheiro no bolso" é um evidente sinal de fracasso. Não constitui, pois, motivo de espanto que alguns passem anos sem visitar as suas famílias porque entre as quantias de dinheiro que enviam e as despesas que têm em Lisboa não conseguem reunir o capital desejável. De acordo com alguns dos meus interlocutores, são necessários, no mínimo, cinco a seis mil euros, para além do próprio bilhete de avião (no mínimo, 600 euros), para realizar esta viagem.

Estas viagens não beneficiam apenas aqueles que as realizam, mas também todos aqueles que por diversos motivos não conseguem ou não as podem fazer. Quando desenvolvi o trabalho de campo, nem todos os bangladeshis estavam na mesma posição face às viagens. Quem já tinha determinado tipo de documentos — passaportes, vistos de residência, etc. — viajava anualmente e por vezes em diversas ocasiões. Estas viagens eram amplamente publicitadas e quem não informava os demais era acusado de falta de preocupação pelos seus compatriotas e pelas circunstâncias adversas que alguns atravessavam. Tais acusações prendiam-se, obviamente, com o papel de intermediários que estes exerciam no estabelecimento de pontes mais tangíveis com os membros das unidades domésticas daqueles que, por um motivo ou por outro, não tinham essa possibilidade.

Estas redes de transporte de recursos têm por vezes uma base regional e, assim, quando regressam ao Bangladesh, é muito frequente que transportem consigo ofertas dos seus conterrâneos para os parentes. Por vezes, a entrega de bens tem lugar no próprio aeroporto internacional.

Estas viagens são, portanto, e juntamente com a Western Union, um meio através do qual é possível enviar remessas regularmente. Embora argumentem que, na realidade, os familiares não necessitam deste dinheiro, os meus interlocutores enviam estas bideshi takas (Garbin, 2004), literalmente dinheiro estrangeiro, porque consideram que é sua obrigação contribuírem para a manutenção da casa donde são oriundos. Para além de um acto altruísta, procuram também corresponder à expectativa daqueles que ficam no Bangladesh. Estes esperam, independentemente da necessidade, que aqueles que estão em bidesh partilhem a sua prosperidade com os restantes. Relembrando as imagens do eldorado, a Europa é vista como um espaço de abundância, onde as ruas não têm lama e estão cobertas de dinheiro, um local de enriquecimento para os que para aí emigram. Perante tal perspectiva, quem fica no Bangladesh espera que essa riqueza seja partilhada. Na maior parte dos casos enviam-se pequenas quantias de dinheiro (100 a 200 euros), frequentemente em euros, que são posteriormente trocados nos mercados informais, onde as taxas cambiais são mais favoráveis (o que desde logo constitui uma vantagem face aos meios formais de canalização de remessas, como a Western Union, por exemplo). Estas remessas em dinheiro são frequentemente usadas para suportar as despesas com a educação dos irmãos mais novos, para comprar novas propriedades, para montar negócios, para comprar e arrendar novas casas ou para construir casas de raiz e fazem parte, portanto, de um processo de manutenção e/ou de ascensão social.

Mas estas remessas não incluem apenas capital económico. Relógios, cosméticos, perfumes, computadores portáteis, consolas, peças de roupa, brinquedos, são alguns dos bens enviados. Muitos já existem no Bangladesh; no entanto, acredita-se que esses mesmos produtos, quando oriundos da Europa, são mais prestigiantes e de melhor qualidade do que um bem igual comprado no centro comercial local ou nos mercados centrais (situação, aliás, que se verifica também noutros contextos migratórios).

Outros bens enviados através destas viagens incluem cartas pessoais, fotografias e DVD. Estes continham fotografias de muitos dos meus interlocutores tiradas em passeios por zonas consideradas particularmente bonitas ou "modernas", nas casas compradas ou arrendadas e em ocasiões festivas.

Mas qual a relação entre estas viagens e o qurbani?

Os bangladeshis viajam durante todo o ano para o Bangladesh. Contudo, no período em que fiz trabalho de campo, estas viagens ocorriam com maior frequência a seguir ao final do ano. Esta era uma altura de rescaldo da época natalícia e, como tal, um momento adequado para passar, no mínimo, um mês no Bangladesh. Simultaneamente, muitas destas viagens coincidiam com a festa do sacrifício. Nessa medida, financiar ou ajudar a financiar tal ocasião constituía mais um elemento de afirmação de êxito, para além de ser também um momento de consumo desregrado.

Assim, a realização desta cerimónia no país de origem parece remeter, juntamente com o envio de remessas, para a (re)produção de um sentido de pertença a um espaço considerado próximo e familiar (James, 2003; Sarró, 2008), mais concretamente uma forma de (re)produzir sociabilidades ao nível da própria unidade doméstica.

Recorde-se que a unidade doméstica, a bari9, surge em quase todos estes casos como o destinatário final da maior parte destes bens tangíveis e intangíveis. É que, em todo este processo migratório, a unidade doméstica donde se parte tem um papel essencial enquanto estrutura de suporte e apoio. Para além da organização dos matrimónios, que abordaremos à frente, é junto dos membros da unidade doméstica, frequentemente dos pais, que se contraem empréstimos para conseguir chegar à Europa. Esta mobilização e investimento são igualmente visíveis no próprio financiamento de negócios na Europa através da venda de propriedades e empréstimos (Mapril, 2008).

Se concordarmos com Roger Ballard (1994) quando argumenta que a emigração é antes de mais uma actividade empresarial, então certamente que se espera que ela tenha algum retorno face aos restantes membros da unidade doméstica. Estas visitas, as remessas e o patrocínio de rituais pelos probashi são exactamente esses retornos. Eles expressam uma ideologia da casa como um conjunto de pessoas que partilham uma unidade doméstica, cujos membros partilham um sentido de co-responsabilidade (Gardner, 1995; Khanum, 2001). Como um dos meus interlocutores dizia: "[...] estou constantemente a pensar naquilo que os meus irmãos e os meus pais estão a fazer, se estão bem, se precisam de alguma coisa." A isto acrescentaria a noção da bari como um espaço, físico e simbólico, onde a identidade do grupo, a identidade primária, como definida por Pina Cabral (2003), é criada e reproduzida não só no quotidiano, mas também em momentos cerimoniais específicos, como o qurbani (Jansen, 1987; Mamoon, 1993; Gardner, 1995).

Como ocorre entre os sylhetis no Reino Unido (Gardner, 1995), também entre os bangladeshis em Lisboa não existe uma ruptura entre o país de acolhimento e o país de origem. Ambos são percepcionados como um continuum que leva à manutenção de contactos económicos, políticos e religiosos regulares. Neste contexto migratório, os laços sociais da bari parecem sair reforçados e recriados através do fluxo de recursos materiais e simbólicos entre Portugal e o Bangladesh, mas também em ocasiões como o qurbani id.

Mas será então que o local de residência deixa de ser, em alguma ocasião, apenas isso e se aproxima de algo como uma outra casa, entendida aqui num sentido filosófico mais vasto? Como Avtar Brah (1996) perguntava, quando é que o local de residência se torna home? Quando é que um lugar se torna familiar?

Para obter uma resposta sugiro que comecemos por fazer uma pequena lista com apenas dois critérios — a data de chegada a Portugal e os familiares que aqui se encontram —, relativos às pessoas que participaram no qurbani no segundo episódio etnográfico. O resultado é o seguinte:

Baboul — 1996 — esposa e três filhos;

Rashid — 1991 — esposa, um filho e o irmão;

Aktar — 1996 — esposa, três filhos (dois rapazes e uma rapariga) e o irmão dela;

Faisal — 1996 — esposa, um filho e o irmão;

Chowdury — 1996 — (não disponível);

Kamal — 2001 — ninguém.

Esta lista revela dois aspectos a explorar para interpretar a relação entre o sacrifício e a produção de lugares. De todos os presentes, apenas Kamal chegou em 2001, enquanto os restantes fazem parte dos dois primeiros fluxos de bangladeshis para Portugal, na sequência dos dois primeiros processos de regularização extraordinária. À data desta cerimónia, Kamal estava ainda "indocumentado" e aguardava notícias do seu processo de regularização. Dos restantes, todos tinham vistos de residência, excepto Rashid, que era já portador de um passaporte português.

Além disto, e à excepção de Chowdury, com quem nunca consegui chegar à fala, os restantes tinham todos "construído" as suas unidades domésticas e já tinham as esposas e os filhos em Portugal. Em três dos casos, outros familiares, como os irmãos e um cunhado, dos presentes estavam também em Portugal. Portanto, quatro dos seis participantes nesta cerimónia tinham constituído as suas unidades domésticas em Lisboa.

Com base nas categorias "tempo de chegada" e "constituição de casa própria", pode afirmar-se que a posição dos sujeitos muda no que diz respeito à realização do sacrifício em Portugal. A maior parte dos que fazem esta cerimónia no Bangladesh, ou apenas enviam dinheiro para os familiares para ajudar no seu financiamento, chegaram em 2001, no último processo de regularização. Nestes casos, o projecto migratório encontra-se ainda numa fase de indecisão e incerteza, os indivíduos têm empregos pouco privilegiados e estatutos legais dúbios e, portanto, a não realização do sacrifício em Lisboa parece traduzir em parte a afirmação dessa condição.

No caso daqueles que chegaram em 1996 e no início dos anos 90 continua-se a enviar dinheiro para a realização desta cerimónia no Bangladesh, na casa ou nas casas donde se é oriundo, mas, em vez de esta ficar a cargo dos parentes no Bangladesh, surge também a necessidade de a fazer em Portugal. Fazer tal cerimónia é um fenómeno que se relaciona com o facto de muitos terem constituído e fundado as suas unidades domésticas e nessa medida espera-se deles, enquanto chefes de família, que organizem o qurbani. Importa então saber o que implica constituir uma unidade doméstica neste contexto.

O processo de constituição de casas é muito dispendioso e demorado e apenas quem já tem um rendimento considerável pode dar esse passo em Portugal.

Quando chegam a Portugal, muitos dos meus interlocutores são ainda solteiros e só regressam ao Bangladesh para se casarem depois da obtenção de um documento — passaporte, visto de residência e autorização de permanência. Ter um documento de um país europeu é encarado de forma vantajosa pelos imigrantes; consideram que este os torna mais "atraentes" para um matrimónio, uma vez que pressupõe a possibilidade de reunirem mais capital e riqueza, da qual as próprias unidades domésticas, e consequentemente as esposas, podem beneficiar. Em certo sentido, funciona como uma garantia, uma protecção para uma filha que se dá a casar.

Como os montantes envolvidos nos casamentos costumam ser elevados, muitos bangladeshis em Lisboa preferiram organizar celebrações modestas, com um número reduzido de convidados, deixando a realização de uma cerimónia mais imponente e opulenta para uma fase de maiores possibilidades financeiras. Além disso, muitos dos meus interlocutores que se casaram durante o período de trabalho de campo tinham autorizações de permanência, que apenas permitem uma ausência do país por um período nunca superior a sessenta dias, e, uma vez que uma cerimónia de casamento exige uma longa preparação, muitos optaram por fazer cerimónias menos exigentes.

Como noutros contextos, estes enlaces costumam ser arranjados pelas famílias. Embora os casamentos por amor aconteçam com mais frequência, como Kate Gavron demonstrou na sua pesquisa (1996 e 2005), os casamentos são na maior parte arranjados pelos membros da unidade doméstica e pela patrilinhagem. Foi com a ajuda de vários contactos entre casas e patrilinhagens e com a ajuda das ghothuk, as casamenteiras, que se conseguiram organizar algumas destas cerimónias. Depois do casamento, o mais frequente é que as esposas continuem a residir patrilocalmente, enquanto os maridos regressam a Portugal para prepararem a chegada das mesmas.

Esta preparação é um processo frequentemente dispendioso e longo, demorando entre seis e oito meses, quando não mais. Uma das primeiras acções a empreender é arrendar um apartamento, cujo contrato tem de incluir o nome do marido. Este contrato é posteriormente entregue às autoridades portuguesas e constitui um comprovativo de que a esposa dispõe de um local de residência em Portugal. Frequentemente, alguns celebram contratos de arrendamento em seu nome e posteriormente subarrendam a outros bangladeshis enquanto o processo da esposa não está resolvido e a situação desbloqueada. Outra estratégia é dividir a casa até o processo de reunificação estar terminado, altura em que os co-residentes têm de sair.

Além disso, arrendar uma casa para a chegada da esposa é uma obrigatoriedade uma vez que seria impensável partilhar um apartamento com outros homens e também com a esposa. Recorde-se que muitos dos meus interlocutores, ao chegarem a Portugal, optaram por partilhar apartamentos com outros bangladeshis, todos do sexo masculino. Um desses apartamentos localiza-se na Costa da Caparica e há mais de dez anos que está nas mãos de bangladeshis, tendo albergado alguns dos pioneiros. Estas casas hospedam frequentemente um número de pessoas superior ao número de camas, atendendo a que os moradores trabalham em turnos desencontrados e por isso a mesma cama serve para duas pessoas nela dormirem. Estas casas são partilhadas por homens com laços de parentesco entre si ou com as mesmas origens regionais. Por exemplo, uma das casas que melhor conheci era dominada por pessoas oriundas de Daca, enquanto outra albergava pessoas de Tangail. Esta é, por vezes, a única forma de conseguirem arrendar uma casa, tendo em conta os pequenos rendimentos que muitos auferem e a necessidade de pouparem dinheiro, situação que se mantém inalterada até à reunião familiar.

Outra das tarefas conducentes à reunião familiar é mandar vir os certificados de casamento do Bangladesh. Estes são enviados pelo correio ou através de alguém que se saiba que vem a Portugal. Estes certificados são posteriormente canalizados para o Consulado-Geral do Bangladesh, no Porto, para serem traduzidos de bengali para português a troco de um pequena quantia. O consulado recorre a dois dos pioneiros bangladeshis para fazer este trabalho, um na cidade do Porto e outro em Lisboa.

Uma vez reunida, a documentação é enviada para a Embaixada Portuguesa na Índia, em Nova Deli, e aguarda-se pela marcação de uma data para se realizar uma entrevista à esposa. Marcada a data, têm de se enfrentar duas situações: a primeira é que a esposa do probashi não pode ir sozinha e, portanto, tem de haver alguém para a acompanhar nessa viagem. Os membros da unidade doméstica de origem são os mais implicados neste processo, sendo o pai, o irmão ou mesmo a irmã e o marido dela que frequentemente a acompanham; a segunda é que estas viagens acabam por ser extremamente dispendiosas, uma vez que o mais frequente é a esposa ter de regressar várias vezes ou mesmo permanecer algumas semanas na capital indiana por causa dos sucessivos adiamentos e das várias entrevistas a que é sujeita.

Globalmente, este processo é tão dispendioso que normalmente só aqueles que já têm negócios apresentam capacidades financeiras para o suportar. Como tal, só os pioneiros e aqueles que chegaram em meados dos anos 90 é que têm vindo a trazer as suas famílias para Portugal, numa fase em que já montaram as suas lojas e fazem negócios suficientes para mobilizar tais quantias de capital.

Ao todo, desde 2001, reconstituíram-se em Portugal mais de 162 poribar (famílias). Quem accionou estes processos chegou entre 1992 e 2002, sendo que foi entre aqueles que chegaram em 1993 e 1996 que se registou o maior número de processos de reunificação familiar.

 

Fonte: Consulado-Geral do Bangladesh

Estas são quase sempre famílias nucleares compostas pelos pais, filhos e um irmão do marido ou o cunhado, o que é corroborado pelos dados constantes dos registos consulares. Estes mesmos dados revelam igualmente que, em média, o intervalo de tempo entre a chegada destes probashis a Portugal e a constituição de novas casas varia entre os cinco e os dez anos. Pelo meio, claro, temos o acesso e a constituição de negócios, os casamentos e os seus preparativos e os processos de reunificação.

Um dos aspectos mais interessantes, e que começou a ocorrer durante o meu trabalho de campo, era a compra de propriedades. Pelo menos 15 bangladeshis compraram casas em Lisboa, nomeadamente entre a Avenida Almirante Reis, a Praça do Chile e São Jorge de Arroios e nas imediações do Martim Moniz (no Campo de Santana, por exemplo). Estas compras originaram uma enorme competição entre famílias, pois queria-se saber quem fazia os melhores negócios. As inaugurações das casas eram momentos reveladores, uma vez que todos queriam saber que casas os membros "notáveis" da "comunidade" tinham comprado.

Com a constituição destas unidades domésticas começaram a surgir novas sociabilidades, entre as quais se destacam os circuitos de visita e apoio diário entre mulheres. A criação de tais sociabilidades estava relacionada com redes de troca em que diversos tipos de ofertas circulavam entre casas _ doces, carne, prendas. Nestas redes, outros produtos circulam como bens alimentares previamente preparados e que são oferecidos em ocasiões festivas, como as festas anuais do calendário islâmico. Por exemplo, aquando do id ul-Fitr e do id ul-Adha é muito comum os bangladeshis circularem entre as casas e partilharem refeições. Preparam-se vários pratos salgados e doces, que estão dispostos numa mesa, para oferecer às visitas. Mesmo no quotidiano, quando alguém vai a casa de um bangladeshi, é-lhe sempre oferecido algo para comer.

Noutros momentos organizam-se refeições aos fins-de-semana, sendo o domingo o dia mais comum para estas reuniões. Mesmo que não se tenha disponível uma refeição com arroz, carne ou outros géneros, oferece-se sempre um aperitivo de muri (arroz tufado), bombay mix, chotpuri, entre outros.

Esta comensalidade e, finalmente, a circulação de bens alimentares previamente preparados são vistas pelos meus interlocutores como uma forma de criar laços de reciprocidade através da hospitalidade (otithia) e são ocasiões centrais na constituição de sociabilidades e de redes de relações (Kotalová, 1993; Khanum, 2000).

É também desta forma que devemos interpretar a realização do qurbani em Lisboa por parte destes pioneiros. Fazer o sacrifício aqui é uma afirmação de êxito, e as ofertas da carne são um veículo de afirmação de sucesso, estatuto e dominação. Estes foram os primeiros bangladeshis a fazer um sacrifício de uma vaca em Portugal e isso, por si só, mostra a importância política e económica dos envolvidos. Este é um grupo de bangladeshis que representa o êxito na Europa, que conseguiu constituir as suas bari fora do Bangladesh, e a realização desta cerimónia é reveladora desse sucesso. Simultaneamente, estas ofertas são uma forma de reforçar laços com conterrâneos e uma estratégia de consolidação de sociabilidades. A presença dos filhos revela bem a forma como esta cerimónia foi apropriada para ensinar a estes jovens o que é fazer o qurbani e o que é fazê-lo num país como Portugal.

Por último, a realização desta cerimónia por parte deste grupo de pioneiros, para além de uma afirmação de êxito, representa também uma estratégia de produção de Lisboa como um lugar, que é encarado aqui num sentido de espaço de pertença, que é apropriado e construído como tal. Aliás, estas duas dimensões são como as duas faces da mesma moeda. Ter êxito é construir uma unidade doméstica, ser o seu próprio patrão, ter um negócio, comprar um apartamento, investir na educação dos filhos e, como tal, reterritorializar-se. Em certa medida, poder-se-ia argumentar que o sucesso passa também pelo acto de se produzir não só em relação ao Bangladesh e aos laços com a "origem", mas também em relação a outros lugares de pertença, neste caso Lisboa e Portugal. Assim, estes parecem ter passado também a fazer parte dos lugares aos quais muitos dos meus interlocutores consideram pertencer.

 

Conclusão

Na literatura sobre as migrações e as diásporas sul-asiáticas espalhadas pelo mundo, um dos temas mais recorrentes prende-se com as dinâmicas religiosas. A relação triangular entre a religião, os países de origem e os países onde residem tem sido um dos mais importantes temas de pesquisa (Hinnels, 2000; Brown, 2006; Levitt, 2007). Um exemplo é um artigo de 1987 em que Ninian Smart procura relacionar as dinâmicas e processos de (re)construção da vida religiosa e os fenómenos diaspóricos, argumentando, com base no caso das populações hindus oriundas da Índia, que neste processo existem elementos religiosos que parecem não viajar tão facilmente como outros10. O que o autor argumenta é precisamente que um dos aspectos mais interessantes para pesquisar é ver como vários temas da tradição hindu — a casta, o ioga, as peregrinações, os rituais no templo, os rituais na unidade doméstica, os pundits, entre outros — estão presentes em contextos não indianos e que outros elementos estão ausentes. E o que nos diz acerca da relação entre diásporas e religião, o facto de existirem elementos que não viajam?

No caso dos muçulmanos bengalis em Lisboa, o problema não se coloca nestes termos, mas sim em saber por que é que algumas pessoas fazem viajar certos elementos da tradição islâmica, enquanto outras não. Para alguns, o qurbani parece ser uma prática que viaja, enquanto para outros essa questão não se coloca. Para interpretar tal facto sugeri ao longo do presente texto que a realização do qurbani fosse pensada no contexto da experiência migratória transnacional dos meus interlocutores.

Como Grillo e Gardner argumentavam num artigo publicado em 2002, uma das dimensões mais descuradas na literatura sobre o transnacionalismo e as migrações contemporâneas na sua relação com a religião tem sido a dimensão ritual das unidades domésticas donde os migrantes são oriundos. A ritualização dos espaços transnacionais tem merecido uma atenção relativamente reduzida, pelo que o material aqui apresentado tenta ser um contributo para a compreensão desta dimensão através de um estudo de caso. O que este material parece revelar é que, de facto, e como Ruba Salih (2002) sugere, o espaço ritual está transnacionalmente dividido e, portanto, há cerimónias que se dividem entre os espaços onde os "imigrantes" se encontram. No caso da autora, a realização dos matrimónios é certamente um exemplo bem pertinente para pensar tal divisão e, até certo ponto, o sacrifício entre os bangladeshis em Lisboa também. No entanto, a posição dos sujeitos face ao sacrifício e à sua realização varia consoante a posição em que se encontram no processo migratório. Para muitos, esta cerimónia continua a fazer parte da reprodução da unidade doméstica donde saíram para emigrar e continua, por isso, a ser realizada no Bangladesh. É aqui que se encontram os parentes e a maioria das relações sociais relevantes para os sujeitos e, portanto, a sua relação com o qurbani realça esse lugar como espaço de pertença. Encontrando-se num contexto imigratório em que as certezas são escassas, esta cerimónia continua a ser realizada onde os laços do sujeito são mais perenes. Porém, à medida que o processo migratório se desenrola e os sujeitos começam a conseguir abrir os seus negócios e, principalmente, a constituir as suas unidades domésticas, ou seja, à medida que conseguem atingir algum êxito e segurança no processo migratório, a sua posição face a esta cerimónia muda consideravelmente. Eles são agora responsáveis pela organização desta cerimónia na sua unidade doméstica. Ora, como esta se encontra em Portugal, fazer o qurbani aqui pode ser visto como uma forma de mostrar que este espaço passou também a ser um lugar de pertença. Digo também porque, obviamente, as remessas de dinheiro para o Bangladesh prosseguem, nomeadamente para a ajuda do financiamento desta mesma cerimónia na unidade doméstica de origem. Assim, não só o espaço ritual está dividido transnacionalmente, mas há alguns rituais que só viajam consoante a posição dos sujeitos face ao processo migratório e, nessa medida, a posição dos sujeitos face aos rituais revela as próprias posições destes face ao processo migratório.

Mais, o qurbani é uma cerimónia que mostra como os sujeitos se tornam transnacionais. Como eles passam de migrantes a sujeitos transnacionais, processo este que a literatura existente tende a considerar evidente. Os migrantes passaram actualmente a ser tratados como sujeitos transnacionais; no entanto, transnacionalizar a migração é um processo e não uma realidade estática e "naturalmente" resultante da própria migração. Como se tornou claro ao longo deste artigo, nem todos os migrantes são igualmente transnacionais e, portanto, há alguns que conseguem mover-se mais facilmente do que outros. Existem mesmo alguns que nem conseguem mover-se. Conseguir manter relações entre dois países é algo que se encontra perpassado por hierarquias sociais em virtude do capital que tais actividades exigem. Nessa medida apenas alguns o conseguem fazer e um dos idiomas que melhor revelam esta segmentação da mobilidade é certamente a realização de rituais, neste caso o qurbani. Poder-se-ia argumentar que tal parece ser verdade mesmo para outros fenómenos migratórios, tais como a organização dos "impérios" pesquisada por João Leal (1996, 2005a e 2005b). Também aqui, a preparação de tais eventos e cerimónias passou para as mãos dos emigrantes açorianos como uma clara demonstração de êxito e sucesso a que nem todos acedem.

Mas as implicações do presente texto estendem-se também à própria relação entre rituais, lugares e migrações globais. Apesar da crescente desterritorialização e diversificação de fluxos globais dos quais fazem parte, os migrantes continuam a produzir lugares e é indispensável etnografar aquilo que Gupta e Ferguson (1997) designaram por place making, isto é, os processos sociais, históricos e políticos envolvidos na produção de lugares. Estes não são naturais, a priori, mas sim algo ordenado, vivido e nomeado, enfim, socialmente construído, sendo essa construção não apenas histórica e política, mas processando-se também quotidianamente (Olwig, 1997 e 2007) através de pequenos gestos, como os telefonemas ou o patrocínio e a organização de rituais. O ritual surge aqui como uma metáfora para identificar espaços próximos e familiares, mas também como uma forma de os produzir enquanto tal. O sacrifício, que abordámos ao longo deste texto, actualiza e produz familiaridade com determinados espaços e, nesse sentido, transforma-os em lugares de pertença e identidade num mundo de fluxos globais e mobilidades múltiplas.

 

 

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Notas

1 No Bangladesh, como noutros contextos, o sacrifício é também um ritual de expiação, de dessacralização, para usar as palavras de Hubert e Mauss (1899) e de Evans-Pritchard (1956). É usado para agradecer a Deus a saída de uma situação de grande aflição, como uma doença na família ou de alguém querido. Kotalová (1993) relata o exemplo de uma das suas interlocutoras que, no contexto de uma grave doença contraída pelo filho mais novo, fez uma promessa, um voto, a Alá, dizendo que, se o filho se salvasse, ela mataria a sua melhor vaca. Uma terceira forma de sacrifício que ocorre no Bangladesh, bem como noutros contextos etnográficos, é a aqiqa, o sacrifício de um animal por altura do nascimento de um filho: uma vaca, no caso do nascimento de um rapaz; uma ovelha, se se tratar de uma rapariga (Kotalová, 1993; Mehta, 2000).

2 Convém salientar que, embora a noção adoptada esteja directamente relacionada com o fenómeno migratório, a verdade é que o transnacionalismo não se esgota nele. As corporações multinacionais e os seus actores institucionais são o outro lado do transnacionalismo, desta feita de "topo", por oposição ao transnacionalismo de "base" desempenhado pelos migrantes (Cohen, 1997; Portes et al., 1999). Todas as traduções são da responsabilidade do autor.

3 Para alguns, esta transnacionalização das migrações estava relacionada com a internacionalização de capitais e a revolução tecnológica ocorrida a partir do pós-Segunda Guerra Mundial, nomeadamente no âmbito dos transportes e das comunicações. Estas tecnologias de compressão de espaço-tempo (Harvey, 1990) deixariam de ser apenas acessíveis a uma elite, como o foram nos primeiros quarenta anos do século xx, para se tornarem globalizadas e acessíveis a todos, permitindo contactos regulares entre os indivíduos, mesmo que separados por longas distâncias (Portes et al., 1999; Vertovec, 1999; Schiller et al., 1997). No entanto, este não é um fenómeno apenas característico da pós-modernidade. Bem pelo contrário, os contactos através das fronteiras dos Estados e sociedades sempre existiram, sendo que a grande diferença com o momento histórico recente reside, por um lado, na sua frequência e consequências e, por outro, no enfoque que as ciências sociais atribuem a uma perspectiva macro (Wallerstein, 1978; Wolf, 1982; Schiller, 1997).

4 Samaj, também conhecida por reyia, é um termo cuja origem reside na noção de "fazer em conjunto". No quotidiano tem vários significados e pode ser traduzido como "sociedade" ou "associação" e frequentemente significa a comunidade a que se pertence e que está para além da família e da patrilinhagem. Os seus limites territoriais são normalmente contíguos aos limites de uma unidade administrativa. Num sentido estrito, a samaj é uma assembleia de anciãos, para a qual todas as patrilinhagens da para (bairro ou zona residencial) devem contribuir com um membro e cuja função é manter e estabelecer a ordem entre os membros (para um aprofundamento deste conceito, v. Kotalová, 1993, e Bertocci, 1996 e 2002).

5 Aliás, a presença de altos dignitários do Estado na principal congregação do id no eidgah — termo que designa o recinto onde se fazem as orações colectivas do id ul-Fitr e id ul--Adha —, criado pela Dhaka City Corporation, é bem reveladora da importância política do evento e as preocupações de Azan não constituem, a este nível, uma excepção.

6 É o termo usado para classificar o marido da irmã de ego.

7 Estes grupos são organizados pelos vários talhantes espalhados pela cidade, que, perante a impossibilidade de responderem adequadamente à procura, organizam grupos de pessoas, entre as quais se encontra alguém com experiência nas actividades de talhante que coordena as actividades. Os próprios talhantes, nesta altura do ano, fazem os sacrifícios e depois entregam a carne aos clientes que os encomendaram.

8 Através deste acto, o sangue, enquanto substância halal, portanto imprópria para consumo, abandona o corpo da vítima.

9 Entre os meus interlocutores, assim como no Bangladesh, a unidade doméstica é designada pelo termo bari e, embora na literatura sobre o tema se reconheça que bari não é o mesmo que família, limitarei as minhas observações às casas de família. A composição destas varia, consoante as mudanças cíclicas, no tamanho e composição de grupos domésticos viáveis, baseados na família. Idealmente, os membros da bari correspondem ao grupo de descendência até à morte do patriarca, podendo ir de uma família nuclear a uma família extensa com várias gerações — os pais, os filhos adultos com os respectivos filhos e esposas e as filhas solteiras. Após a morte do pai é frequente os irmãos permanecerem na residência conjunta, continuando a administrar colectivamente os bens da unidade até à morte da mãe, formando assim uma família alargada ou indivisa. Depois disto, a médio prazo, a autonomização dos irmãos é frequente, fundando a sua própria casa. A bari é, para além de uma unidade de consumo, uma forma de produção conjunta, é uma unidade corporativa. Todos os bens são colectivamente administrados e estão normalmente sob a autoridade do pai. Depois da sua morte são divididos entre os filhos e a mãe.

 

* CRIA, Instituto Superior da Empresa e do Trabalho, Av. Forças Armadas, s. n., ed. ISCTE, salas 2N7 e 2N9/cacifo 237, 1600-083 Lisboa, Portugal. e-mail: jmapril@gmail.com.

** Gostaria de agradecer o apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia através da bolsa SFRH/BD/13237/2003, sem a qual toda esta pesquisa teria sido impossível. Agradeço as leituras e sugestões dos referees da revista Análise Social, que tiveram um papel imprescindível na reformulação do texto original. Gostaria ainda de agradecer a Cristiana Bastos, Ramon Sarró, Ruy Blanes, Luís Vasconcelos e Joana Ramalho pelas suas inestimáveis sugestões. Todas as incorrecções são, obviamente, da minha exclusiva responsabilidade.

 

 

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