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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.190 Lisboa  2009

 

Ana Isabel Sardinha Desvignes, António Sardinha (1887-1925). Um Intelectual no Século, 1.ª ed., Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2006, 291 páginas, ilustrado.

A historiografia que se tem debruçado sobre a primeira metade do século XX português atribuiu ao Integralismo Lusitano (IL) uma importância que, objectivamente, nunca teve (Martins, H., Classe, Status e Poder e Outros Ensaios sobre Portugal Contemporâneo, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 1998, pp. 19-28; Cruz, M. B. da, “O Integralismo Lusitano nas origens do salazarismo”, in Monárquicos e Republicanos no Estado Novo, Lisboa, D. Quixote, 1986, pp. 13-74). Depois de J. M. Quintas ter publicado alguns textos dispersos sobre o IL — em que analisou a conturbada relação deste e dos integralistas com o sidonismo, a ditadura militar e o salazarismo —, é pacífico reconhecer-se que a sua influência na história dos regimes políticos portugueses que vigoraram entre 1917 e 1974, assim como no pensamento político português de todo o século XX, foi praticamente nula no primeiro caso e modesta no segundo (Quintas, J. M., “O integralismo face à institucionalização do Estado Novo: contra a ‘salazarquia’”, in História, ano XXIV, II série, n.º 44, Abril de 2002, pp. 34-41). Não tendo sido absoluto o seu insucesso, até por ter galgado fronteiras para a Espanha e para o Brasil nas décadas de 20 e 30, ou por ter formado jovens quadros que serviram Salazar e o Estado Novo em posições de destaque (casos de Manuel Múrias, Pedro Theotónio Pereira e Marcello Caetano), certo é que se transformou numa agremiação politicamente inconsequente [Gutiérrez Sánchez e Jiménez Núñez, F., “La recepción del Integralismo Lusitano en el mundo intelectual español”, in Baiôa, Manuel, ed., Elites e Poder. A Crise do Sistema Liberal em Portugal e Espanha (1918-1931), Lisboa, Colibri — CIDEHUS-EU, 2004, pp. 303-321; Brito, Giselda, “O pensamento político de António Sardinha no Brasil”, comunicação apresentada no XXIV Simpósio Nacional de História, UNISINOS, São Leopoldo, RS, Brasil, Julho de 2007, no prelo].

Apesar de esta realidade melancólica marcar a história do IL, é bem-vindo o livro de Ana Isabel Sardinha Desvignes, redigido a partir da sua tese de doutoramento em História defendida no ISCTE e cujo âmbito cronológico se ficava pelo período da vida de António Sardinha decorrido entre 1903 e 1915. O trabalho de Ana Desvignes é a biografia “intelectual” de um homem que se notabilizou por ter liderado, com Luís de Almeida Braga, Hipólito Raposo, Alberto Monsaraz e Pequito Rebelo o IL e por ter tido também pretensões enquanto poeta, ensaísta e historiador. Para a sua redacção, a autora utilizou, além da obra de Sardinha publicada em vida e postumamente, as inúmeras cartas que este escreveu à sua prometida e depois mulher (as cartas enviadas por Ana Júlia Nunes da Silva a Sardinha foram por esta destruídas). O espólio cobre, principalmente, os períodos que vão de 1910 (último ano da estada de Sardinha em Coimbra) a Junho de 1912 (ano em que contraíram matrimónio) e do início de 1919 a meados de 1921 (anos do exílio de Sardinha em Espanha). Infelizmente, e sobretudo para o período posterior a 1921, quando Sardinha passou boa parte da sua vida em Elvas, a autora não utiliza a vasta e importante correspondência que lhe foi dirigida por figuras que iam de Manuel Múrias a Theotónio Pereira, de Alberto Monsaraz a Hipólito Raposo, de João Ameal a Rodrigues Cavalheiro ou de António Sérgio a Rolão Preto e que se encontra depositada na Biblioteca João Paulo II da Universidade Católica.

Concluída a leitura do trabalho de Desvignes, o leitor pode ficar com uma certeza. A obra e o pensamento de Sardinha têm interesse em si, mas não muito mais do que isso. Recordei-me, por isso, de uma avaliação que Alfredo Pimenta fez ao menos uma vez sobre uma e outro. Cheio de bom senso, Pimenta disse praticamente tudo sobre a estatura intelectual do homem de Monforte (Sardinha era natural desta vila do Alto Alentejo) ao ter sentenciado que, embora este tivesse morrido “cedo” para “a sua família e para os seus amigos”, desaparecera, “porém, a tempo para o seu nome”, concluindo em seguida que Sardinha tinha sido um daqueles “homens que só lucram em não sobreviverem a certos acontecimentos”. O mesmo Pimenta, que conhecia as fracas qualidades de Sardinha como doutrinador, foi ainda lapidar na avaliação que dele fez enquanto historiador. Não hesitou em considerar absurda a pretensão de Sardinha em escrever uma história de Portugal à luz da doutrina integralista e em acusá-lo de não dominar as técnicas do ofício de historiador, censurando-o por escrever história como se de tratasse de pura ficção (não quanto ao estilo, mas quanto à substância). Sardinha, segundo Alfredo Pimenta, era sobretudo um espírito vivo e eficaz no modo como polemizava, na forma que imprimia à sua escrita jornalística e no jeito que dava às palavras e aos gestos para electrizar alguns jovens espíritos no ambiente próprio da conspiração política (Pimenta, Alfredo, A propósito de António Sardinha. Carta ao Escritor Brasileiro Guilherme Auler com Quatro Cartas de António Sardinha, Lisboa, ed. do autor, 1944, passim). Como se não bastasse, e como Ana Isabel Desvignes reconhece através das reacções que recolheu à publicação da obra poética de Sardinha nas décadas de 10 e 20, nem sequer neste género que tanto cultivou pôde o biografado sair da mediania, para não dizer da mediocridade (pp. 36 e 204).

António Sardinha passou mais de vinte anos da sua curta vida a tentar ler, escrever e fazer política de forma original. Oriundo de uma família burguesa de Monforte ligada à terra, mas com crescentes dificuldades em travar a sua curva descendente na escala social, Sardinha interessou-se pelas letras, pelo pensamento e pela acção política e pelo fenómeno religioso. Frequentou Direito na Universidade de Coimbra entre 1906 e 1911. Durante esses anos foi republicano. Rejubilou (às vezes com reservas) com o radicalismo político-ideológico e social da jovem república. Neste período, muito por influência dos seus amigos aristocratas de Coimbra, como Alberto Monsaraz, foi “esotérico”. Ainda em Coimbra procurou cultivar as amizades certas que lhe permitissem escapar ao exílio penoso que seria um regresso a Monforte. Apostou na protecção de Teófilo Braga, de quem esperava elogios públicos e um lugar na Faculdade de Letras de Lisboa. Teófilo Braga acabaria, aliás, por fazer parte de um júri que, naquela escola, no ano de 1914, o reprovou nas provas de acesso à docência ao considerar que a dissertação apresentada não possuía “solidez científica” (p. 133). Da sua fase republicana, que Ana Isabel Desvignes classifica bondosamente como juvenil e romântica (p. 89), sobrou o culto do “municipalismo” (uma influência transmitida pelo pensamento do já citado Teófilo Braga e de José Félix Henriques Nogueira).

Como republicano heterodoxo que foi, Sardinha nunca desdenhou o convívio social e uma boa dose de cumplicidade política com meios conservadores, monárquicos e tradicionalistas de Coimbra. Será essa cumplicidade e as amizades ali feitas e mais tarde consolidadas que lhe darão o lastro para que, por volta de 1914-1915, iniciasse uma actividade política e doutrinal no IL (cujo primeiro momento verdadeiramente importante serão as conferências da Liga Naval em Lisboa). Estas solidariedades permitir-lhe-ão publicar regularmente os seus livros de poesia e de ensaios (como é o caso de O Valor da Raça, que, editado em 1914, reproduz grande parte da tese chumbada na Faculdade de Letras de Lisboa). Pelo meio, e já em Monforte (onde é colocado como oficial do Registo Civil), abandona o republicanismo e casa-se com Ana Júlia, uma jovem pertencente a uma família abastada de Elvas.

A estada de Sardinha em Monforte a partir de finais de 1911 fá-lo-á abandonar o republicanismo e abraçar a fé católica. Aparentemente, foi pela razão que redescobriu o cristianismo, que para si só podia ter a forma católica. Passou então, no que ao catolicismo diz respeito, de uma fase estética e superficial para uma outra político-ideológica, instrumental, “matriz de uma ideologia conservadora”: o IL. A sua conversão foi influenciada por autores franceses, como Maurice Barrès e Henri Bergson, ou seja, o nacionalismo de Sardinha e do IL, como bem viram os seus adversários republicanos, muito pouco tinha de português. No essencial, e para responder aos desafios políticos colocados pelo regime republicano, inspirou-se no modo de pensar e de agir dos contra-revolucionários franceses seus contemporâneos. Ainda que conhecesse a obra de alguns teóricos portugueses da contra- revolução, a verdade é que foi na França de finais do século XIX e do início do século XX que encontrou a matéria-prima que permitiu dar ao IL um conjunto de ferramentas que lhe garantiram algum êxito político. Se não estivesse disponível no mercado internacional das ideias políticas um pensamento e uma prática contra-revolucionária franceses prontos a serem aproveitados por potenciais contra-revolucionários portugueses, dificilmente Sardinha e os integralistas teriam sido aquilo que foram.

A chegada de Sidónio Pais ao poder em Dezembro de 1917 revelar-se- -á uma bênção para o IL e para a generalidade de um campo monárquico dividido em várias facções. Entre Dezembro de 1917 e Dezembro de 1918, o IL funda o diário A Monarquia. Sardinha (que será deputado), com outros correligionários, terá uma oportunidade única para se aproximar do exercício do poder e, mais tarde, iniciar um processo de afastamento de Sidónio, ao ponto de, em vésperas do assassinato deste, estar em marcha, com colaboração integralista, um golpe monárquico contra o presidente-rei e a sua República Nova.

Uma vez que Ana Desvignes prefere a biografia intelectual à política, o texto para o período posterior a 1914 perde densidade pelo facto de nesta data se ter consolidado, por via ideológica, aquilo que designa como o seu processo de “afirmação integralista”. No entanto, a narrativa não perde interesse. Por exemplo, nas cartas trocadas com a sua mulher durante o exílio em Espanha (após o fracasso da Monarquia do Norte) são de assinalar as referências, embora curtas, às divergências políticas existentes no seio do IL (p. 238) e à Junta Central [exigências no sentido de o integralismo reduzir a sua acção política a um trabalho metódico de doutrinação através da publicação de uma nova série da Nação Portuguesa (p. 238)], a influência que a Action française e Charles Maurras tiveram nas opções políticas impostas por Sardinha depois da sua chegada do exílio e a análise que é feita do impacto que o exílio em Madrid teve na formação política de Sardinha, quer na forma como Sardinha examina a política portuguesa e o papel que nela o IL deve desempenhar, quer no modo como interpreta aquilo que deveria ser o novo relacionamento político entre os dois Estados ibéricos e a sua projecção no mundo (que explicará na Aliança Peninsular publicada em 1924).

O livro de Ana Desvignes tem o mérito de não ocultar o anti-semitismo de Sardinha, mas é demasiadamente compreensivo com a sua “germanofilia” (analisa-a não no contexto do combate político da época, mas no estrito domínio do confronto de ideias em que Sardinha e outros integralistas, para sua conveniência, o colocaram). Finalmente, não explora aquele que é um filão importante na vida política de Sardinha depois de 1921. Ou seja, o facto de este ter iniciado paulatinamente uma estratégia de acção política — de que jovens integralistas dos liceus e das universidades eram seus importantes aliados — cujo objectivo era patrocinar, e talvez até liderar, um projecto de união política da direita nacionalista e autoritária, mas que a morte precoce impediu de tentar concretizar e que, a partir de 1928, já em plena ditadura militar, Oliveira Salazar, oriundo do Centro Católico, conseguiria realizar.

Fernando Martins

Universidade de Évora

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