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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.190 Lisboa  2009

 

Maurizio Cotta, Democracia, Partidos e Elites Políticas: Ensaios, Lisboa, Livros Horizonte, 2008, 245 páginas.

 

Depois de um período marcado por uma certa colonização económica e sociológica, a ciência política tem vindo a recuperar a sua autonomia nas últimas décadas com o regresso (em novos moldes, evidentemente) do estudo das instituições e das elites. Maurizio Cotta tem sido um importante protagonista neste processo, retomando, nas suas próprias palavras, o “trilho da gloriosa escola italiana de ciência política de Mosca, Pareto e Michels” (p. 10). Dele apenas conhecíamos, em edições portuguesas, o capítulo sobre a Itália (em co-autoria com Luca Verzichelli) no livro Quem Governa a Europa do Sul? (Pedro Tavares de Almeida, António Costa Pinto, Nancy Bermeo, orgs., Lisboa, ICS, 2006). A colecção “Estudos Políticos” da Livros Horizonte traz-nos agora a tradução de um conjunto de ensaios publicados por este politólogo nos últimos dezassete anos, apresentados em duas partes fundamentais: uma primeira mais comparativa e uma segunda mais centrada no caso italiano.

Nos primeiros dois capítulos do livro, Cotta discute e aprofunda o tema das relações entre partidos e governos nas democracias ocidentais, começando por redefinir os conceitos através de uma detalhada decomposição destas instituições, mais complexa, necessariamente, no que toca aos partidos (p. 20).

Partindo da literatura mais relevante sobre organizações partidárias — onde só falta, talvez, a referência ao contributo de Herbert Kitschelt, interessante, por exemplo, para a análise das motivações dos diferentes tipos de militantes (Herbert Kitschelt, The Transformation of European Social Democracy, Cambridge, Cambridge University Press, 1994) —, o autor apresenta-nos uma tipologia das relações entre partidos e governos (pp. 38 e 56). Teoricamente, o governo tanto pode ser o elemento principal desta relação como uma componente do elemento principal ou mesmo um elemento secundário. Tudo “depende da maneira como se organiza e funciona o jogo representativo” (p. 65), isto é, do sistema de governo, do grau de autonomia das organizações partidárias face ao poder executivo e da própria margem de manobra da burocracia que Cotta reconhece, sem identificar, contudo, as estratégias que têm sido seguidas pelos políticos para a contornar.

Assim sendo, importava perceber como teria evoluído nesta equação o peso relativo da instituição governo nas democracias ocidentais. Para Maurizio Cotta, à partida, o declínio das ideologias e da identificação partidária, bem como o aumento da volatilidade eleitoral, podem favorecer a autonomia dos grupos parlamentares face à organização (p. 31) e, hipótese mais provável, funcionar como incentivos para a integração no governo dos principais dirigentes do partido (p. 62). Mas a própria intensidade do papel da organização partidária no processo de decisão pode variar ao longo do ciclo político, aumentando, evidentemente, nos períodos imediatamente anteriores e posteriores às eleições (p. 98).

Relativamente ao poder da burocracia, o autor também identifica variações não só de país para país (mais conhecidas), mas no interior do mesmo governo entre diferentes ministérios: “Se compararmos, por exemplo, o Ministério das Finanças ou o dos Negócios Estrangeiros com os do Trabalho ou da Agricultura, é provável que os primeiros sejam mais autónomos e eficazes do que os segundos no exercício da influência política e na resistência a influências externas” (p. 55). É também para aí que aponta o caso português (v. Filipe Nunes, “Os directores-gerais: perfil social e político”, in António Costa Pinto e André Freire, orgs., Elites, Sociedade e Mudança Política, Oeiras, Celta, 2003).

No centro desta relação entre partidos e governos estão os ministros, tema do último capítulo desta primeira parte do livro aqui analisado nas suas duas perspectivas principais: recrutamento e policy-making. As conclusões, a saber, que “a maioria dos ministros tinha experiência parlamentar” (p. 106), poderão surpreender os leitores portugueses menos familiarizados com os dados comparativos (designadamente os referentes à Europa ocidental) e habituados à valorização pública do recrutamento de “técnicos independentes” na formação dos governos nacionais. Mais, se à experiência parlamentar juntarmos a experiência política local e regional, “com esse indicador múltiplo as diferenças entre países estreitam-se” (p. 107). Isto leva Cotta a concluir que “a carreira ministerial tem vindo a politizar-se cada vez mais” (p. 117), apesar (ou por causa) das crescentes funções técnicas e sociais do Estado. E não parece que se estejam a sair mal em comparação com os colegas da “sociedade civil”, uma vez que “os ministros que ocupam mais tempo o cargo governativo tendem a ter mais experiência” (p. 119). Esta tendência, observada no início da década de 90 em relação a várias democracias ocidentais, é confirmada no estudo comparado do recrutamento ministerial na Europa do Sul (o já citado Quem Governa a Europa do Sul?). A excepção é, de facto, Portugal. Daí que, face à relação que o autor estabelece entre democratização e politização dos governos (p. 102), sejamos levados a questionar se a abertura nacional aos ministros independentes não representará, afinal, mais um sintoma (e mais uma causa) do frágil enraizamento do sistema partidário português.

A segunda parte do livro é exclusivamente dedicada ao caso italiano, o que se apresenta, desde logo, tanto mais interessante quanto se trata de um país ao qual Portugal dedica pouca atenção, apesar das semelhanças que, aliás, aqui ficam patentes, por exemplo, na forma como os partidos de governo se legitimam eleitoralmente e no tipo de relação que estabelecem com a União Europeia (v. capítulo 6).

O primeiro capítulo desta parte é uma análise da consolidação da democracia e da transformação das elites políticas italianas à luz do modelo teórico desenvolvido por John Higley e Richard Gunther (eds.) (Elites and Democratic Consolidation in Latin America and Southern Europe,Cambridge, Cambridge University Press, 1992). Através de uma série de episódios históricos devidamente periodizados em função do tipo dominante de relações entre elites políticas, temos acesso a temas essenciais de mais de cem anos de história política do Estado-nação italiano. Fica, no entanto, a dúvida acerca da pertinência da publicação isolada de um capítulo cuja leitura só funciona se for acompanhada pela clarificação conceptual que Higley e Gunther fazem na introdução do livro donde foi extraído (estamos a falar de conceitos como “acordo”, “cooperação”, “convergência” ou “unificação” de elites).

Neste sentido, torna-se mais interessante, por exemplo, a leitura do capítulo seguinte, centrado na crise do sistema partidário italiano nos anos 90. Depois de quarenta anos em que, como lembra Cotta (p. 165), a II República superou quase tudo (reconstrução no pós-guerra, clivagens ideológicas em torno da guerra fria, terrorismo e choques petrolíferos), o “governo de partidos à italiana” não resistiu nas eleições legislativas de Março de 1994. Para se ter uma ideia da dimensão da ruptura basta um número: “71% dos novos deputados foram eleitos pela primeira vez [em 1994]” (p. 167). A Democracia Cristã e o Partido Socialista Italiano, partidos dominantes não só no plano institucional, mas em várias esferas da vida social (banca, empresas, cultura, comunicação social), praticamente desapareceram. Não surpreende, assim, que este se tenha tornado um motivo de romaria historiográfica e politológica.

A explicação de um fenómeno com este alcance não podia, evidentemente, ser reduzida ao efeito da operação “mãos-limpas”; era necessária uma análise mais fina, capaz de recuar e perceber as características específicas deste modelo de governo de partidos. Foi precisamente o que fez Cotta.

Entre 1945 e 1994, o modelo italiano assentou numa espécie de “governo atrelado” em que “era normal a maioria da direcção do partido ficar fora do executivo” (p. 174). Fora do governo, os principais dirigentes dos partidos podiam mobilizar mais facilmente os temas metapolíticos (ideologia) e exigir micropolíticas (para as clientelas), sem nunca se sujeitarem às consequências das mesopolíticas (reformas estruturais) a que eles, aliás, militantemente resistiam.

Mas, progressivamente, a extensão das nomeações partidocráticas que o modelo implicava “levou a opinião pública a identificar com os partidos um vastíssimo conjunto de instituições, entidades, empresas e aparelhos burocráticos” (p. 176). Por outro lado, no final dos anos 80, o fim do comunismo, associado à integração económica e monetária da Europa (tema do último capítulo), colocou sérios constrangimentos à prossecução desta estratégia de consolidação partidária. No fundo, à medida que as ideologias declinavam e que as dificuldades orçamentais aumentavam, a dimensão “meso” ganhava força e a centralidade do governo tornava-se incontornável (p. 175). A política de cortes orçamentais teve, segundo Cotta, “um resultado provavelmente louvável do ponto de vista económico, mas que significava que os partidos estavam a cortar o último ramo em que se encontravam sentados. O governo de partidos à italiana ficou assim preso por uma espécie de tenaz. Os dois níveis fundamentais da competição política — o das metapolíticas e o das micropolíticas […] tinham esgotado completamente ou de maneira muito significativa as suas potencialidades” (p. 195).

Este texto foi escrito pouco tempo depois da crise de 1994 e, como tal, não foi possível ao autor avaliar as estratégias de legitimação dos novos actores partidários. Mas depois de ler este capítulo apetece perguntar se o segredo do persistente sucesso eleitoral de Berlusconi, muitas vezes inexplicável para o observador internacional, não assentará na sua capacidade de reinventar — com a retórica anticomunista, as políticas dirigidas a clientelas, a relutância reformista e a desresponsabilização via Bruxelas — aqueles que foram os dois níveis fundamentais de legitimação e competição eleitorais até ao fim dos anos 80: a ideologia e as micropolíticas.

Não há livro académico sobre o qual não se diga que interessa a estudantes, investigadores e ao público em geral. Mas neste caso é mesmo verdade. Em Democracia, Partidos e Elites Políticas temos um conjunto de textos onde funciona uma boa combinação entre a perspectiva comparada e o estudo de caso; entre o estudo dos actores e das instituições políticas; entre as elites e o eleitorado; entre a análise longitudinal e a análise mais intensiva. Além disso, genericamente, os textos são de leitura acessível, sem que isso implique menos rigor ou valor teórico. Neste sentido, estamos perante a ciência política no seu melhor — análises informadas que interpelam o leitor a discutir as ideias feitas que, diariamente, lhe são fornecidas pelo senso comum.

 

Filipe Abreu Nunes

ICS/Universidade de Lisboa

 

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