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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.191 Lisboa abr. 2009

 

Dulce Freire, Inês Fonseca e Paula Godinho (coords.), Mundo Rural. Transformação e resistência na Península Ibérica (século XX), Lisboa, Edições Colibri, 289 páginas.

 

 

O conteúdo desta obra colectiva apresenta-se duplamente interessante. Em primeiro lugar, decorre da colaboração de cientistas sociais portugueses e espanhóis. A relação entre os estudiosos ibéricos tem sido fluida, mas não suficientemente intensificada, ficando patente nesta obra as potencialidades de uma colaboração mais estreita. O esforço de plasmar ambas as realidades deve ser alargado no futuro, principalmente no que se refere à componente espanhola, onde os estudos sobre a Galiza assumem a quase exclusividade. A compilação honra o espírito interdisciplinar, tantas vezes enunciado e tão poucas materializado, o que constitui a segunda aliciante deste livro. As visões sobre o passado trazidas por historiadores, sociólogos e antropólogos, juntamente com o contributo da agronomia, mostram as analogias e as coincidências das análises assentes em concepções, metodologias e também vocabulários bem diferentes. Evidenciam, ademais, a necessidade de congregar esforços por parte de vários cientistas sociais para se poder chegar a apreender a poliédrica realidade histórica. A origem deste livro, que remonta a um colóquio realizado em finais de 2000 na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa, está precisamente associada a esse esforço de intensificação dos debates interdisciplinares no quadro da Península Ibérica.

Esta obra é, em si mesma, o melhor legado em prol da realização de estudos comparados. Um valor que não diminui, inclusive, quando se reconhece que não se tem apostado decididamente em empreender análises que agrupem as realidades espanhola e portuguesa. No texto introdutório, esta árdua tarefa foi levada a cabo por Fernando Oliveira Baptista, que, demonstrando uma vez mais ser um excelente conhecedor da bibliografia ibérica, estabelece o quadro de referência em que se pode ancorar a leitura das restantes contribuições. Nos artigos seguintes procurou-se abarcar ambos os lados da fronteira a propósito de um mesmo aspecto, pelo que a tarefa comparativa fica a cargo do leitor interessado.

Oliveira Baptista traça a evolução da questão da terra nos dois lados da fronteira, atendendo às reformas agrárias ensaiadas no século xx. A análise leva-o a concluir que um assunto historicamente tão relevante como a possessão da terra perdeu a sua centralidade tanto para a sociedade rural como para o sector agrícola. Quer dizer, económica e socialmente, uma vez que os critérios definidores da agricultura actual menosprezam cada vez mais essa componente produtiva. O autor acompanha esta temática com o comentário de dois dos debates dedicados ao atraso e à questão ambiental mais frutíferos da história agrária espanhola dos últimos anos. Constata, porém, que estes assuntos não suscitaram o mesmo interesse na historiografia portuguesa.

As restantes onze contribuições que compõem o livro articulam-se em torno de três temáticas. A primeira constitui uma releitura de algumas das políticas agrárias promovidas pelo franquismo e pelo salazarismo, procurando apreender o afã por inovar, o desejo de estabelecer uma clara continuidade com o passado e a intencionalidade em relação à sociedade rural a que se dirigiam. A segunda estrutura-se a partir do estudo do surgimento, desenvolvimento e implicações dos diferentes movimentos sociais que afectaram a sociedade rural ibérica contemporânea. A última centra-se no estudo da conflitualidade rural.

Um artigo de Juan Pan-Montojo e outro de Inês Fonseca formam a primeira parte do livro. Ambos analisam a política agrária empreendida pelas ditaduras, acabando por sublinhar aspectos antagónicos. O historiador espanhol ressalta as oportunidades que a legislação agrária franquista ofereceu a pequenos proprietários e camponeses para aceder à terra, quer dizer, explicita aspectos de consenso. Pelo contrário, a antropóloga portuguesa analisa as resistências sociais decorrentes da implantação da legislação salazarista, atendendo, portanto, a posturas de contestação. Pan-Montojo refuta a teoria clássica, que atribui à grande propriedade e aos seus donos o papel de objecto central na política agrária franquista. Nega que a mensagem subjacente ao que se definiu como "soberania do campesinato" não tivesse tido um reflexo nas principais políticas que Franco implantou no mundo rural espanhol. A partir da releitura de três aspectos dessas políticas — legislação sobre arrendamentos, organização corporativa e mercado negro — avalia as possibilidades que estas abriram à gestação de uma nova elite e à consolidação de pequenos proprietários rurais. Este artigo, com uma perspectiva inovadora, oferece uma oportunidade para reflectir sobre as bases do consenso social do franquismo.

Inês Fonseca dá conta de alguns dos resultados da investigação que, juntamente com Paula Godinho e Dulce Freire, realizou em todo o país com o objectivo de fazer um levantamento das resistências que o Estado Novo encontrou nos campos. A autora estrutura o artigo em torno de três casos concretos da actividade da Junta de Colonização Interna. Mostrando-se seguidora das teorias de James C. Scott, rejeita as explicações que condenam as atitudes das comunidades camponesas como "irracionais" quando estas não estão em consonância com medidas "modernizadoras" por parte do Estado. Adverte, pelo contrário, que é necessário procurar a motivação existente por detrás dos episódios de protesto.

A segunda parte do livro começa com um artigo de Paula Godinho de grande interesse, dada a escassez de oportunidades para desenvolver uma reflexão sobre questões teóricas e metodológicas. Recorrendo a contributos históricos e antropológicos e à experiência em diferentes trabalhos de campo, a autora analisa o aparato teórico e metodológico necessário ao estudo dos movimentos sociais em contexto rural.

Os artigos seguintes apresentam como preocupação comum a politização dos campos. O sociólogo João Freire averigua a relação que o movimento operário manteve com os jornaleiros nos campos do Sul em Portugal, mais especificamente no Ribatejo e no Alentejo, durante a I República. Nega a teoria de que estes movimentos tenham permanecido afastados da realidade "um do outro". Reportando-se à mesma área geográfica, João Madeira investiga as redes do Partido Comunista nos campos desde a Segunda Guerra Mundial até ao fim do Estado Novo. As conclusões indicam que o Partido Comunista, apesar de uma inegável influência social e política, não foi capaz de enquadrar e de dar cobertura à ampla conflitualidade existente entre jornaleiros e grandes proprietários.

O artigo de Raul Soutelo traduz o contributo galaico para esta secção do livro. Apresenta um retrato das realidades estruturantes e condicionantes da evolução do agro galego no primeiro terço do século xx. Identifica os camponeses, os emigrantes e os caciques como os principais actores do rural galego neste período. Revisitando o debate historiográfico em torno do sistema político da Restauração, oferece uma visão diligente acerca do agrarismo, referindo a actuação sócio-política dos emigrantes retornados.

Na última parte da obra coloca-se a questão da resistência e dos conflitos sociais através de dois processos concretos: a luta pela continuidade dos modos de uso das terras comunais e a ocupação de terras nos latifúndios no Sul de Portugal. A questão dos conflitos sociais nos baldios e pelos baldios é levantada em dois artigos. Os autores — Lourenzo Fernández Prieto e David

Soto, no caso galego, e Dulce Freire, para Portugal — partem do mesmo princípio: o papel fundamental das terras comuns nas economias camponesas. Em ambos os casos inventariam e analisam as respostas dadas pelas comunidades rurais perante o que consideravam ser uma usurpação de direitos ancestrais e uma ruptura com as suas formas de vida.

Existem conclusões muito interessantes nos artigos que encerram esta obra. Os contributos de Constantino Piçarra e Margarida Fernandes permitem fazer uma leitura complementar dos movimentos sociais ocorridos no distrito de Beja depois de 25 de Abril de 1974. Os autores prestam especial atenção ao processo de reorganização do sindicalismo rural e aos debates relacionados com a estrutura da propriedade protagonizados por proprietários e jornaleiros. Piçarra demonstra que o episódio mais característico assumido pelo protesto, que se traduziu na ocupação de terras nos latifúndios por parte dos jornaleiros, estava em consonância com a reivindicação histórica de emprego e salários dignos. Fernandes ilustra este processo de reforma agrária a partir da perspectiva local. A pesquisa focada em Baleizão possibilita a compreensão dos diferentes ritmos das ocupações e expropriações de propriedades, mostrando também as dificuldades de adaptação dos "novos proprietários" às exigências da organização e exploração da terra.

Neste livro juntam-se riqueza empírica e diversificados contributos interpretativos em torno da questão da terra e das respostas sociais perante as políticas agrárias em Espanha e em Portugal durante o século xx. Estamos, por fim, perante um bem sucedido cruzamento entre autores ibéricos que demonstram a impossibilidade de se desenvolver pesquisa em compartimentos estanques. Evidenciando também que a vinculação, seja a que nível for, entre Estados e entre várias disciplinas científicas permite o enriquecimento da análise sobre a realidade histórica.

 

Ana Cabana Iglesia

Universidade de Santiago de Compostela

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